Breno Kümmel
Especial para o EM
Nascido no Texas em 1958, George Saunders é o contista americano mais renomado da atualidade, com uma produção constante e uma lista de prêmios que mal caberia nesta resenha. Seu único romance, “Lincoln no limbo”, de 2017, ganhou merecidamente o Booker Prize, e suas aulas de escrita criativa, em parte reunidas no ótimo “A swim in a pond in the rain”, são as mais disputadas nos EUA.
É pouco lido no Brasil, em parte por motivos editoriais (a primeira edição brasileira de Saunders veio somente em 2014, com “Dez de dezembro”), mas também pela matéria que trata: um país saturado de abundância material e de miséria emocional, tanto pela desigualdade econômica crescente quanto por certa homogeneização da experiência humana totalmente colonizada pelas lógicas da publicidade e do utilitarismo.
A linhagem realista e discretamente emotiva da literatura, tendo atingido certo ápice nos anos 80 com os contos de Raymond Carver (que também só recentemente ganhou mais leitores brasileiros), foi previsivelmente subvertida na geração seguinte e a produção que se consagrou nos anos 90 tratou com enorme irreverência os assuntos da cultura de consumo e da subjetividade humana a ela submetida.
Um crítico desdenhoso tachou essa irreverência de ‘realismo histérico’, que buscaria uma vitalidade que na época parecia só ser alcançável por meio do esgarçamento da verossimilhança. Os traços largos, satíricos e caricatos dessa estética abafariam a humanidade dos personagens (reduzidos a títeres) e dos dilemas, à mercê da enxurrada de trocadilhos e insights de um autor, cuja inteligência afinal, seria desde o princípio, a protagonista real do livro.
David Foster Wallace (1962-2008) investiu nessa estética que encontrou leitores no Brasil por motivos que evocam muito mais Kurt Cobain e Francesca Woodman do que questões propriamente textuais. A obra do fim da vida de Wallace foi uma tentativa de se desfazer dessas práticas de exagero incessante.
Apontar que pouco se lê nesse estilo por aqui não é uma acusação de atraso e nem de que esses autores não nos interessam. A leitura exige paciência ante a referências a pequenezas da vida nos EUA que não nos são de conhecimento comum. Mas o melhor da obra de Saunders mostra que não existe dilema separando inventividade e expressividade emocional. Entre movimentos imaginativos impressionantes, é possível encontrar uma humanidade brilhante, indicando que, em vez de buscar o melhor texto possível em uma direção específica, o ato de grandeza literária é o que busca a todo tempo o melhor texto impossível.
“Dia da libertação” reúne contos de um autor sexagenário consagrado, com livros elogiadíssimos já incorporados à linguagem literária corrente a ponto de textos de outros autores fazerem lembrar (à revelia) o que já foi feito por Saunders. Não surpreende que alguns procedimentos mais avançados de elipse, troca de perspectiva e referência implícita, apareçam aqui intensificados, na busca de algo que não seja repetição de obras anteriores.
Esse adensamento formalista é comum em artistas no período tardio, como em Joyce ou Coltrane, porém faz com que este livro seja uma porta de entrada difícil para quem não conhece sua obra, por exigir uma confiança do leitor de que o esforço de recosturar os sentidos valerá a pena. O conto-título, por exemplo, traz uma espécie de distopia de cárcere privado de reencenações do genocídio dos indígenas americanos, narrado por um dos atores que sofreram lavagem cerebral; a premissa de reprogramação de consciência de personagens é frequente nos contos, sem um parágrafo no início (ou mesmo mais adiante) para situar o leitor: ele que se vire.
Em “A mamãe da ação audaciosa”, uma escritora que é mãe busca alguma ideia nova para uma história enquanto tenta parar de se preocupar com o filho, sem marcações textuais para distinguir sua imaginação criativa da imaginação paranoica da maternidade. Os conteúdos se misturam, e uma distração de quatro linhas faz com que o leitor se perca. O conto “Carta de amor”, de um avô que faz um apelo à discrição política ao seu neto, a forma cifrada de fazer referência aos acontecimentos que devem ser ignorados pode deixar o leitor para trás.
É admirável o poder de Saunders para criar uma complexidade humana meio natural, sem que ela pareça um refinamento precioso do artista e sim algo imprescindível à experiência humana. Um contista banal colocaria o avô da carta como um covarde, e a ação contra o autoritarismo como o caminho mais nobre. Seu apelo, contudo, nos atinge com grande contundência emocional, pois a vida não é feita apenas dos momentos grandiosos (como os de resistência) e sim dos pequenos, que são esmagados por decisões pontuais na direção errada.
Para os que não conhecem Saunders, fica a indicação de começar pelo último conto do livro, “Minha casa”, o mais curto e tradicional, sobre um homem que se recusa a vender a casa caindo aos pedaços, ou o romance “Lincoln no limbo”.
Breno Kümmel é escritor, autor dos romances “Uma noção ainda vaga de todo o dano” (Zouk) e “Sendo ele quem ele era” (Patuá)
“Dia da libertação”
• De George Saunders
• Tradução de Jorio Dauster
• Companhia das Letras
• 256 páginas
• R$ 84,90