Marcílio França Castro não escreve com intenção de emocionar seus leitores. Não, para o belo-horizontino vencedor do Prêmio da Biblioteca Nacional pelo livro de contos – ou melhor, livro de “ficções”, como o autor prefere definir – “Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse” (7Letras), em 2011, a função primordial do livro é ser um meio para que a inteligência se reproduza.
“Existem três verbos que andam juntos: ler, perguntar e imaginar. Se existe uma razão para eu escrever, é fazer com que o leitor saia do meu livro para buscar outros livros”, afirma França Castro, em entrevista por telefone ao Estado de Minas. Com essa ambição, ele concebeu “O último dos copistas”, recém-lançado pela Companhia das Letras e com autógrafos em Belo Horizonte no próximo sábado (13/4), na Quixote Livraria. A obra transita entre ensaio, romance epistolar e divagações, com – por que não? – toques de autoficção.
Trata-se do primeiro romance do escritor que pavimentou sua carreira literária com suas “ficções”; com histórias transitam por diferentes gêneros, trabalhando quase sempre com metalinguagem ao construir personagens cujo contexto em que estão inseridos está intimamente ligado ao mundo da escrita (são, geralmente, redatores, copistas, revisores ou editores).
Trazendo sempre, em camadas mais profundas, novos entendimentos sobre o mundo, por meio do olhar atento às pessoas, aos espaços e aos objetos que normalmente não despertam muito interesse nos outros; as obras de França Castro jogam luz às questões existenciais e fantasmas que assombram homens e mulheres ordinários, mas são mantidos em segredo.
Foi assim em “A casa dos outros” (7Letras), livro de estreia do mineiro, lançado em 2009. Também foi assim no já citado “Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse” e em “Histórias naturais” (Companhia das Letras, 2016), terceira publicação de França Castro. Com “O último dos copistas” não é diferente.
Como bem descreveu a poeta mineira Ana Martins Marques em texto publicado neste Pensar, o romance de França Castro é “uma espécie de história de fantasmas para adultos, que, me parece, vai tocar muito especialmente (mas não apenas!) aqueles que, como eu, pertencem a uma geração que, tendo passado pela máquina de escrever e pelos cursos de datilografia, viu surgir o computador doméstico, que escreveram cartas de papel e lidaram com a expectativa de uma carta desejada, passaram pelo e-mail, pelo blog, pelo alvorecer das redes sociais, fizeram fotos analógicas, livraram-se dos vinis para comprá-los de novo vinte anos depois, assinaram jornais impressos, tiraram quilos de xerox na faculdade, enviaram e receberam postais”.
Partindo da biografia de Ângelo Vergécio, copista grego do século 16 que viveu a transição do manuscrito para o impresso, e, anos mais tarde, inspirou a fonte Garamond (por isso a alcunha de “último copista”), França Castro criou uma história paralela ambientada na Belo Horizonte dos dias atuais, transformando, inclusive, a capital mineira em ponto de intersecção com outras cidades do mundo.
No romance – narrado em primeira pessoa –, Eduardo é um especialista em gramática e ex-funcionário da Imprensa Oficial de Belo Horizonte que ganha a vida fazendo correções de trabalhos acadêmicos e, no momento que narra a história, trabalha como revisor de uma pequena editora junto de Lygia, designer responsável pelas ilustrações do livro que ele está revisando.
Assim como Vergécio, Eduardo vive a transição tecnológica e precisa se adaptar. No caso do personagem, a mudança ocorre do analógico para o digital, na qual ele vê minguarem suas oportunidades de trabalho.
“Se pudesse, se me fosse dada uma chance, iria para um jornal. Nunca trabalhei em jornal de notícias. Ainda tenho uma visão romântica das redações. Acontece que os jornais já não querem saber de revisores, as chances andam escassas nesse ramo também. Preferem a técnica da revisão póstuma — e gratuita. O jornal é publicado sem conferência, os leitores detectam os erros, os editores soltam as erratas”, diz o narrador-personagem em determinado momento.
VIRADA DO MILÊNIO
“O Eduardo é obrigado a lidar com essa virada, que não é uma virada qualquer, né? É uma virada milenar”, ressalta França Castro. “Coisas que estão desde os primórdios da escrita humana, como a carta, por exemplo, desapareceram. Foram substituídas por outras formas de comunicação. E o Eduardo é testemunha disso”.
O narrador-personagem, no entanto, vai se adaptando ao novo com certa facilidade. “Sim, uso frequentemente a internet. Consulto dicionários, enciclopédias, arquivos, museus”, conforme relata em outra passagem do romance. Mas ele não mergulhou na tecnologia como Betânia, a dona da editora onde ele está trabalhando com Lygia. Ela, sim, é alguém hiperconectada, que parece não viver sem conexão com a rede
Lygia, por sua vez, pode ser considerada o oposto de Eduardo. Nascida no fim da década de 1980, ela enxerga as coisas do passado com certo anacronismo, querendo saborear o último espasmo desse milênio que passou – mas ela chega atrasada. Nas viagens que faz pelo mundo, por exemplo, prefere se comunicar com os amigos – Eduardo incluso – por meio de postais e cartas.
Tal anacronismo, no entanto, dá para a estrutura da narrativa sua identidade. Os postais e as cartas de Lygia quebram a narrativa de Eduardo ao passo que acrescenta informações à história que ele conta.
“Ela faz uma espécie de costura na narrativa do Eduardo”, comenta França Castro. “Pode-se dizer que ela é uma Penélope ao contrário. Ao invés de ficar parada no lugar, bordando enquanto espera, ela viaja e traça esses bordados em sua jornada, enquanto Eduardo é que fica parado no lugar”, acrescenta, comparando Lygia com a personagem de Homero.
A referência à obra do poeta épico não é gratuita, diga-se. “O último dos copistas” bebe na fonte de Odisseia. Enquanto o poema grego tem 24 cantos, o romance de França Castro tem 24 postais enviados por Lygia. Além disso, as sereias, a deusa Leucoteia e Ulisses são citações recorrentes dos personagens.
Cada um deles, aliás, sejam os protagonistas ou os personagens secundários, travam sua odisséia pessoal ao longo da história de França Castro, quase sempre enfrentando questões e dilemas que se repetem ao longo da história da humanidade como um ouroboro em constante movimento até chegarem no seu destino final, que, ao contrário de Ulisses, pode ser ou não de redenção.
Com erudição, fineza e refinamento, França Castro mostra em seu romance que o século 21 não está tão longe do século 16 quanto imaginamos. “No século 16, havia a mudança para a modernidade. O pensamento religioso e medieval estava convivendo com os métodos científicos. É como se estivéssemos vivendo algo parecido hoje, com essas pessoas antivacinas e terraplanistas em plena época de alta tecnologia. É como se o século 16 acenasse para a gente ao mesmo tempo que estamos acenando de volta”, finaliza.
TRECHOS DO LIVRO
“Sim, uso frequentemente a internet. Consulto dicionários, enciclopédias, arquivos, museus. Mas Betânia, se você quer saber, parece ter ultrapassado o ponto de retorno. É como se ela já não pudesse agir sem conexão com a rede, como se dependesse de um hd externo para funcionar. No fim das contas, estamos indo todos para esse caminho, desejo que reste alguém em terra firme para nos resgatar.
Se eu acatar toda informação que sai do Google, digo a Betânia, chegará um momento em que não falarei mais uma língua, mas o eco de uma língua. E a sintaxe será robótica, o léxico, esdrúxulo, repetitivo, aproveitável talvez como experimento poético, não como recurso humano de comunicação. Pode ser exagero, mas imagino um novo modo de convivência e de evolução das línguas, um novo paradigma filológico. Penso na corrupção dos idiomas, por exemplo, que sempre aconteceu.
Essa corrupção se daria não mais pelo avanço de um povo sobre outro, de uma cultura sobre a outra, como fizeram os romanos na Ibéria, mas pela disseminação gradual, quase imperceptível, das regras de uma linguagem artificial. Imagine o sotaque dos algoritmos se impondo sobre as línguas naturais. Tenho lido textos que já soam assim. Avançam aos pulos, monossêmicos, capengando. Às vezes ligo o rádio, o locutor está falando, me parece um tradutor automático. Um sintagma mal engatado no outro, como as peças incongruentes de um Lego.
Digo isso a Betânia, ela me chama de retrógrado, de alarmista. Diz que a inteligência artificial produzirá línguas mais ricas do que jamais pudemos imaginar. Que criará sons raros e lindos. Que poderemos aprender acádio, sânscrito, copta, idiomas de todas as épocas e lugares, recuperar línguas mortas, indígenas, fundi?las, rasgá-las, fazer maravilhas faladas e escritas. Talvez ela tenha razão, talvez eu tenha também. Pode ser que o mundo visto por ela já esteja dividindo espaço com o meu.”
***
“Cheguei a pensar que Lygia me desprezava, quem sabe apenas me suportasse, seria a diferença de idade, os mais de dez anos que me separavam dela. Dez anos que, na verdade, significariam pouco se não tivessem decorrido entre o meio dos anos 1970, quando nasci, e o fim da década de 1980, a dela, se não houvesse uma revolução tecnológica entre nós. Então eu era aquele idiota que ficava lembrando das propagandas de Bombril. Um cara da geração X com dificuldade de se comunicar com uma mulher da geração Y.”
“O ÚLTIMO DOS COPISTAS”
• De Marcílio França Castro
• Companhia das Letras
• 208 páginas
• R$ 89,90
Lançamento em Belo Horizonte no sábado (13/04), às 11h, na Quixote Livraria