Faustino Rodrigues

Especial para o EM

 

A psicanalista, crítica de arte, curadora e professora Tania Rivera lança dois livros neste sábado (20/4), na Livraria Scriptum, em Belo Horizonte. O primeiro, “Lugares do delírio: arte e expressão, loucura e política”, propõe um debate sobre o lugar do delírio em nossa sociedade, tomando como ponto de partida a exposição homônima que contou com sua curadoria, no Museu de Arte do Rio (MAR).

 

O segundo livro, “Hélio Oiticica: cartas 1962-1970”, resgata uma das mais importantes personalidades da arte brasileira em correspondências diversas, proporcionando um contato com o tropicalista como nunca antes visto. As obras, aparentemente, seriam desconexas. Porém, ler uma após a outra faz todo sentido.

 

Em “Lugares do delírio”, como diz o próprio título, Tania questiona sobre o lugar que o delírio ocupa em nossa contemporaneidade. A arte, sua especialidade, é tomada como referência para que tal fato seja pensado de maneira ampla. Para isso, a autora resgata uma produção bibliográfica em torno do tema da loucura, traçando paralelos com inúmeras interpretações de especialistas quanto a obras de artistas do último século.

 

Quando avançamos na leitura, fica clara a preocupação de Tania quanto à distinção entre loucura e delírio. A maneira como nos coloca o problema é justamente uma forma de questionar essa associação. É preciso ser louco para delirar? Tania aposta que não.

 

Ademais, da maneira como incorre, com bastante propriedade, assegura que a loucura jamais poderia ser definida pelo fato de o sujeito delirar ou não. Naturalmente, a autora impõe a necessidade de não se ter uma visão negativa sobre um ou outro. É com isso que sublinha que muito pode ser dito e descoberto a partir do delírio.

 



 

Assim é que a autora se volta para a identificação do delírio em algumas obras de arte, chegando a tomar como referência as biografias de alguns artistas. As referências são riquíssimas. Por trás de sua empreitada, notamos como que por meio de uma reconsideração do delírio enquanto mecanismo estabilizador de um sujeito – algo já observado em Freud através do chamado caso Schreber – acabamos obrigatoriamente por repensar a loucura. Um movimento de extrema relevância em tempos de debate da luta antimanicomial.

 

Porém, a inflexão de Tania para o presente caso se dá quando exige do leitor um olhar específico sobre o delírio, de modo que as pessoas comuns passem a considera-lo como um mundo possível. De alguma maneira, isso poderia soar destoante.

 

Mas, é justamente ao recorrer às mais infinitas obras de arte, muitas delas mobilizadas pelo delírio de seu autor, que ela nos faz ver que nem se trata de um tema tão estranho assim. Isto é, sempre tivemos o delírio à nossa frente. Ele sempre participou de nossa realidade. A arte é onde ele tem a liberdade necessária para a sua manifestação, encontrando os instrumentos para uma tradução efetiva de seus significados.

 

“Podemos dizer que na arte, delira-se – ou seja, o pensamento sai dos trilhos habituais, dos eixos imaginários que fixam a realidade ‘comum’ na qual nos alienamos. A arte ensaia modelos de mundo e nos convida a revirar os eixos imaginários prevalentes, colocando-nos fora de nós mesmos – nos lugares múltiplos nos quais cada um encontra o outro e encontra-se como outro” (pag. 41).

 

Não se trata de dizer que tudo deve ser admitido enquanto possibilidade a partir do delírio como justificativa. O mais importante aqui é, segundo as palavras da autora, tomar o delírio como noção performativa ou metodológica para avaliar eventuais padronizações autoritárias e universalizantes. E a arte, bem como a psicanálise, tem um papel essencial nisso ao jogar luz sobre mundos desviantes permitindo uma visão mais acurada da realidade.

 

Nada mais condizente com os tempos atuais em que perseveram narrativas multifacetadas. Tania Rivera encaminha questionamentos, por meio da arte e da psicanálise, para o eventual autoritarismo de noções hegemônicas. Algo que, talvez, seja o primeiro pressuposto para uma autocrítica.

 

A título de ilustração: até que ponto nossas instituições sociais e políticas estão realmente aptas a conferir a cidadania necessária, aquelas mesmas por elas sustentadas e defendidas? A evidência de singularidades legítimas, visíveis, por exemplo, através do delírio, contribuiriam para respostas a perguntas como esta.


Cartas de Oiticica

 

Hélio Oiticica (1937-1980) dispensa apresentações. É inviável um olhar sobre a sua arte sem tomar por referência o período histórico no qual viveu, bem como o exílio em Londres. Através das palavras do próprio artista, conseguimos ter uma dimensão de sua obra, entendendo os elementos que impulsionaram a sua concepção e o lugar que, em seu entendimento, elas ocupavam na história.

 

O artista plástico expõe parte de suas ideias de suas produções bem como das experiências vivenciadas, com os mais distintos interlocutores. Através desse movimento epistolar, passamos a ter uma dimensão de como o movimento tropicalista, vigoroso na década de 1970 em seu potencial de descrição de nossa realidade, foi construído. E, mais importante ainda, por que ele foi construído e o seu sentido na história.

 

Lendo as cartas, tenho a impressão de que o tropicalismo era algo praticamente inevitável. E, por conseguinte, logramos dimensionar a sua importância e coerência para a constituição das artes brasileiras em um período tão brutal, como o da ditadura militar.

 

Tania sublinha que a obra de Oiticica surge como algo assaz inovador e radical, transcendendo fronteiras tradicionais da arte, ao se propor uma exploração de novos materiais, técnicas e conceitos. A partir disso, abrem-se espaços para novas formas de expressão, mais amplas e, claro, mais inclusivas.

 

Com Oiticica, o horizonte criativo parecia infindável. E, claro, outros questionamentos são produzidos neste momento – afinal, como mencionamos antes, essa é uma das funções do delírio quando evidente na arte. Um ótimo exemplo seriam os seus já conhecidos parangolés: capas de tecido vestidas pelas pessoas para o uso em performances coletivas.

 

A iniciativa permitia a indução à coletividade, buscando a quebra de uma hierarquia ao ponto de promoção da inclusão social. E tudo isso era feito em um momento de narrativa hegemônica, autoritária, a apontar para a opressão e consequente marginalização social. Nota-se, no caso, uma postura claramente política, de resistência.

 

Hélio Oiticica insiste com isso ao longo de suas correspondências. E o mais interessante é que não se trata apenas de uma postura profissional – o artista plástico, seu ofício. Digo isso ao me deparar com sua coerente indignação até mesmo nas missivas enviadas para amigos e familiares. Obviamente, não sei se posso dizer que Hélio Oiticica delirava em sua produção artística. Mas, por certo, nada nos impede de ver a incidência de uma convicção singular, organizadora de um mundo particular, o seu mesmo, na estruturação de um questionamento a uma hegemonia evidente então.

 

“O Perreault fala em mim porque escrevi para ele; havia lido o artigo dele sobre “Street Works” que me interessou bastante, e resolvi escrever; deu certo; agora farei sempre assim; penso em escrever para Marcuse, em San Diego, sobre problemas de minha obra e ideias dele [...] ele é o filósofo mais famoso da atualidade [...]” (Carta à família Oiticica, p. 290).

 

Tania é bem coerente na apresentação das duas obras. Se, num primeiro momento, a autora se preocupa com o potencial do delírio na reconstrução do mundo, dependendo, exclusivamente, do artista – e o delírio é único, permitindo que se fale de infinitas possibilidades de mundos reconstruídos que poderiam conversar entre si – posteriormente, através das cartas de Oiticica, nos deparamos com o investimento de um dos maiores artistas brasileiros, em um momento crítico de nossa história, empenhando-se não em negar a sua realidade, colocando-se à margem, mas, sim, reconstruindo-a, cobrando-a, exigindo a inserção de todos, inclusive os que pudessem ser os mais diferentes.

 

Ao final, Tania revigora a arte em seu potencial de leitura do mundo e, sobretudo, de leitura do sujeito. Simultaneamente, convoca a psicanálise para um olhar acurado sobre esse mundo e suas infinitas singularidades e possibilidades. 

 

Faustino Rodrigues é psicanalista e professor de sociologia na Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg)

 

“Lugares do delírio: Arte e expressão, loucura e política”
De Tania Rivera
N-1 Edições e Sesc Edições
402 páginas
R$ 130

 

“Hélio Oiticica. Cartas: 1962-1970”
Organização de Tania Rivera
Editora UFRJ
456 páginas
R$ 150

 

Lançamentos na Livraria Scriptum (rua Fernandes Tourinho, 99, Savassi), neste sábado (20/04), a partir das 11h. Às 15h, a autora profere conferência no Programa de Pós-Graduação em Artes, da UEMG, na rua Paraíba, 232.

compartilhe