Alexandre Marino
Especial para o EM
A vida do escritor, compositor e cantor canadense Leonard Cohen sempre foi fértil em musas. As cantoras Janis Joplin, Joni Mitchell e Andjani. Suzanne Elrod, mãe de seus filhos Lorca e Adam. Suzanne Verdal, que inspirou e deu título a um de seus maiores sucessos musicais. E aquela que foi confessadamente sua maior paixão, Suzanne Ihlen, a bela norueguesa que ele conheceu em 1960 na ilha de Hydra, na Grécia, inspiradora de um de seus refrões mais cantados, “so long, Marianne”, paradoxalmente uma despedida.
Haveria muitas outras a citar aqui, mas nos concentremos na mais inusitada de suas musas – Catherine Tekakwitha, a primeira santa indígena do Canadá, que viveu entre 1656 e 1680 e Cohen transformou em personagem de seu romance “Belos fracassados”, que a Editora Todavia está lançando no Brasil.
Catherine é um símbolo dos povos aborígenes do Canadá. Indígena iroquesa, da tribo mohawk, é a personagem-guia de uma narrativa caótica, um mix de poesia, cartas, linguagem publicitária, mensagens políticas, preces e discursos aparentemente sem sentido.
Escrito ao longo de dois anos, de 1964 a 1965, com alguns intervalos, “Belos fracassados” (“Beautiful losers”, no original) mantém sua atualidade ainda hoje por alguns temas que aborda e pelo alto grau de experimentalismo, mas certamente Cohen não tinha qualquer intenção nesse sentido ao escrever o livro. Ele era um jovem de 30 anos, tentando se desvencilhar do peso de suas origens numa família tradicional judaica que tentava transformá-lo em homem de negócios.
O então poeta e romancista havia comprado uma casa em Hydra com os 1.500 dólares que recebera de herança da avó. E foi naquele paraíso, povoado de hippies e artistas, que ele mergulhou na criação de seu projeto mais ousado, com o auxílio de álcool, anfetaminas, haxixe e LSD. Marianne, no entanto, já não estava mais na ilha, depois de uma relação de três anos.
“Belos fracassados” reproduz os tempos intensos que Cohen viveu em Hydra, desde quando lá aportou pela primeira vez, em 1960, a convite de um amigo. Ele havia publicado três livros de poemas, que lhe deram prestígio nos meios literários canadenses, embora sem grandes vendas. Em fevereiro de 1964 ele anunciou que se isolaria para “trabalhar num romance lunático”.
Mas em outubro teve que interromper a escrita, para ir ao Canadá receber o Prêmio Literário do Québec por seu primeiro romance, publicado em 1963, “The favorite game” (“A brincadeira favorita”, lançado no Brasil em 2011 pela Cosac Naify, com tradução de Alexandre Barbosa de Souza).
Este é um romance de formação. Agora, sob o sol escaldante da Grécia, seu objetivo era criar um livro que chocasse os que apreciaram seus poemas e quebrasse as regras do romance tradicional.
Durante sua estada no Canadá, encontrou muita agitação política, especialmente na província de Québec. Um ano antes, a Frente de Libertação do Québec aprofundara sua luta separatista, com atos violentos.
Em 12 de julho de 1963, uma bomba derrubou a estátua de bronze em tamanho natural da Rainha Vitória, na rua Sherbrooke, e a cabeça foi arremessada a quinze metros de distância. Cohen incorporou a cena em “Belos fracassados”. No livro, o responsável pela explosão é o personagem F., que perde um dedo no incidente.
Três personagens, além de Catherine, dão fluidez ao romance: o narrador, um antropólogo que pesquisa a história de um povo aborígene chamado no livro de A__s; Edith, uma das indígenas sobreviventes desse povo, casada com o narrador, e F., grande amigo que o narrador conheceu no orfanato, amante de Edith e perseguidor de todo tipo de excesso, até morrer louco e sifilítico num hospital.
Durante a colonização do Canadá, a chegada da Igreja Católica e dos jesuítas provocou um choque cultural que transformou a vida da comunidade iroquesa. Quando criança, Catherine sobreviveu à varíola, doença que marcou seu rosto e matou sua família.
Acolhida por um tio, ela vivia feliz em sua tribo, em perfeita interação com a natureza, os deuses e os humanos. Em contato com a religião alienígena, Catherine converteu-se, fez voto de castidade e passou a flagelar-se e a jejuar, até morrer, aos 24 anos.
Nas páginas finais de “Belos fracassados”, são relatados milagres atribuídos a ela. O conflito entre Igreja e governo e indígenas persiste. Em junho de 2008, o governo canadense se desculpou formalmente pelos males causados aos aborígenes, e em julho de 2022 o Papa Francisco, em viagem ao Canadá, fez o mesmo.
Catherine foi sepultada próxima ao encontro entre os rios Portage e Saint Lawrence, mas seus restos foram trasladados. Sua cabeça foi transferida, em 1754, para uma igreja em Saint-Régis, para celebrar a fundação de uma missão iroquesa. Um incêndio destruiu a igreja e não restaram traços do crânio.
“Catherine incorporou em sua própria vida, em suas próprias escolhas, muitas das coisas complexas que sempre enfrentamos”, disse Leonard Cohen em 1990. “Ela falou comigo. Ela sempre fala comigo.”
Provavelmente ele tomou conhecimento de sua história por meio de sua amiga Alanis Obamsawin, de origem indígena. Desde então, sua obsessão cresceu. Ele tinha uma estatueta de Catherine sobre a lareira de sua casa em Montreal, e fotos dela nas paredes de sua casa e escritório em Los Angeles. Em Nova York, depositava flores em sua estátua de bronze diante da Catedral de St. Patrick. Catherine foi beatificada pelo Papa João Paulo II em 1980 e canonizada por Bento XVI em 2012.
“Belos fracassados”, segundo e último romance de Cohen, teve suas vendas impulsionadas pelo sucesso de seu primeiro álbum de canções, lançado em 1968, justamente com o título de “Songs of Leonard Cohen”. Ali já apareciam alguns dos sucessos que o fizeram um dos grandes compositores da música popular.
As baladas suaves, com letras elaboradas, são um contraponto à narrativa delirante do romance, às vezes beirando o pornográfico, eventualmente escatológica, embora os vínculos entre história e sexo, política e religião, obscenidade e poesia, o sagrado e o profano sejam quase sempre um pano de fundo para a obra de Cohen.
Talvez ele sintetizasse ali alguma coisa de sua própria trajetória, passada e futura. Nascido de família tradicional judaica, durante toda a vida buscou sua verdade pessoal na música, na poesia, nas religiões, nas drogas.
Acusou a comunidade judaica de Montreal de “abandonar o espiritual em prol do material”. Livros como o “I Ching”, “O livro tibetano dos mortos” e “O crepúsculo dos ídolos”, de Nietzsche, o acompanharam ao longo da vida, e eram vistos no terraço de sua casa em Hydra, ao lado da máquina de escrever Olivetti, na mesma pilha com tratados sobre a vida de Catherine Tekakwitha e sobre os jesuítas na América do Norte, entre outros que lhe serviram de inspiração para escrever “Belos fracassados”.
Na década de 1980, chegou a viver durante cinco anos em mosteiro budista, cumprindo tarefas como qualquer monge iniciante e se submetendo aos ensinamentos de um mestre. Em seus anos finais, depois de encerrar uma vitoriosa turnê de cinco anos, mergulhou na escrita de seu último livro (“A chama”, publicada no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Caetano W. Galindo) e nas canções de um álbum que seria lançado postumamente.
Cohen admirava a mitologia católica, mas era um crítico da Igreja. “Eu acuso a Igreja Católica Romana de Québec de arruinar minha vida sexual e de espremer meu membro num relicário destinado a um dedo, eu acuso a I.C.R. de Q. de me fazer cometer atos libidinosos e horríveis com F., outra vítima do sistema, eu acuso a Igreja de matar indígenas, eu acuso a Igreja de não permitir que Edith trepasse comigo como devia”, diz o antropólogo narrador de “Belos fracassados”, enquanto relata flashes da vida de Catherine.
Ao escrever “Belos fracassados”, Cohen pensou numa viagem de ácido, que abordasse a história de seu país, questionasse os limites do sexo, discutisse a espiritualidade e as relações de amor e amizade. Em sua biografia não há traços homossexuais, mas ele faz descrições ousadas de homossexualismo no romance. Sexo a três, adultério, perversões, tudo é permitido.
“Entre outras coisas, é o mais revoltante livro já escrito no Canadá. Longe de encorajar os impulsos sexuais, irá, no mínimo, silenciá-los. O livro é um fiasco importante. Mas ao mesmo tempo é o mais interessante livro publicado este ano no Canadá”, disse o jornalista e crítico Robert Fulford logo após o lançamento.
O livro chega ao Brasil quase 60 anos depois, e certamente tem motivos para ser comentado. A competente tradução de Daniel de Mesquita Benevides entrega ao leitor uma face de Leonard Cohen pouco conhecida por aqui.
Sua escrita libertária explode as estátuas enferrujadas da literatura bem-comportada e oferece possibilidades múltiplas de leitura. Um livro como “Belos fracassados” jamais sairia de uma oficina literária onde se ensinam as mesmas receitas de bolo, nestes tempos de padronização de tudo. Irreverente como os anos 1960, é uma obra que exige fôlego e leitura atenta. Boa sorte a quem tentar.
Alexandre Marino é jornalista e poeta, autor de livros como “Terra sangria” (Penalux, 2022)
“Belos fracassados”
De Leonard Cohen
Tradução de Daniel de Mesquita Benevides
Todavia
280 páginas
R$ 79,90
Trecho
"Já faz algum tempo que venho escrevendo sobre esses fatos reais. Será que estou mais perto de Kateri Tekakwitha? O céu é muito estranho. Acho que nunca ficarei próximo das estrelas. Acho que nunca terei uma coroa de flores. Acho que nunca haverá fantasmas sussurrando mensagens eróticas nos meus cabelos acolhedores. Nunca acharei um jeito elegante de carregar um saco marrom de lanche num ônibus. Irei a funerais e não terei lembranças de nada. F. disse, há muitos anos: A cada dia você vai ficar mais sozinho. Isso foi há muito tempo. O que será que F. quis dizer quando me aconselhou a trepar com uma santa? O que é um santo? Um santo é alguém que alcançou uma remota possibilidade humana. E é impossível dizer que possibilidade é essa. Acho que tem algo a ver com a energia do amor. O contato com essa energia resulta num tipo de equilíbrio em meio ao caos da existência."