Adriano Cirino

Especial para o EM

 

Para celebrar a reedição de “O último conhaque” e a eleição de Carlos Herculano Lopes para a Academia Mineira de Letras, preparei coquetéis literários para o Pensar inspirados no romance existencialista – sim, existencialista! – do escritor mineiro (os nomes dos drinques são angustiados, depressivos... Que dizer? Eles refletem o espírito do protagonista: alcóolatra, enlutado, solitário, tendência autodestrutiva).

 

Sorvi o primeiro capítulo – como aperitivo – na rede de uma pousada na Serra do Cipó; e, de volta a meu apartamento em Belo Horizonte, todo o livro num shot. Mas você deve prová-lo a gosto! Leia sem moderação.


Enterro de mãe

 

A postura apática do protagonista de “O último conhaque” no enterro de sua mãe (“uma mulher que ele não conhecia”) lembra um pouco sr. Meursault em “O estrangeiro”, de Albert Camus. Enquanto o primeiro esconde a atração por uma prostituta (“ele achou muito esquisito, escabroso até, desejar uma mulher logo após o enterro da mãe”), entra num bar, compra conhaque e cigarros, o segundo sente calor, tem sono e, no dia seguinte ao velório, vai à praia, ao cinema e flerta com uma antiga colega. À primeira vista, ambos parecem ingratos ou ter o sangue-frio; contudo cada um vive o luto à sua maneira. Quando o primeiro – antes do enterro – visita seu antigo quarto, ele derrama lágrimas: “Chorar, desde pequeno, causava-lhe muita vergonha”. No fundo, como Meursault, sente-se culpado: “Meu Deus, eu nunca mandei nada para ela.”


Túnel sem saída

 

“[...] nada era pior do que conviver com o passado, sobretudo quando este doía, envolvia-o em suas teias e tecia, cada vez mais, fios difíceis de se desfazerem e que iam levando-o, e ele não via saída, a obscuros caminhos, onde só existia o medo. E a solidão.”


O isolamento do protagonista (identificado uma única vez com o apelido de infância “Nando”) lembra, a seu turno, o personagem Juan Pablo Castel em “O Túnel”, de Ernesto Sábato, outro existencialista: “[...] em todo caso, havia um só túnel, escuro e solitário: o meu.”


Quando Socorro – o nome da namorada é significativo – se separa de Nando, ela lhe diz: “[...] de solidão, cara, já estou farta da minha.”


Viagem à terra (Pedido de mãe)

 

Ao contrário de Juan Preciado em “Pedro Páramo”, de Juan Rulfo, o qual cumpre a promessa feita à mãe moribunda e vai à aldeia Comala em busca do pai, um lendário assassino (“Não deixe de ir visitá-lo”), Nando desobedece o pedido insistente da mãe e regressa a Santa Marta (lugarejo mineiro fictício) para seu enterro, também atrás de vestígios do pai, assassinado há trinta anos em uma disputa política: “Nem que eu morra, meu filho”; “Não volte, meu filho”, ela repete.

 

Além de velar o corpo da mãe, a motivação do protagonista é abrir seu guarda-roupa e suas gavetas, encontrar cartas e fotos do pai – revelar memórias e segredos do passado familiar. Essa é “a única razão de sua permanência naquela casa”. “Não pensava em vinganças.” Ele enfrenta, contudo, a indecisão, a obsessão, a procrastinação: “Daqui a pouco eu começo”, engana-se “– não conseguia abrir [as gavetas], como se uma força misteriosa o impedisse.”


O álcool e o fundo do poço

 

“O último conhaque” é regado a álcool (em vários momentos nos perguntamos do que seus personagens são “capazes quando embriagados”), porém possui estilo seco, sóbrio; cheio de vazio existencial. Seu protagonista é “alcóolatra”, chegou a ser internado duas vezes; bebe um litro de conhaque barato (“Presidente, pois não tinha o Macieira”) na sua primeira noite em Santa Marta, após o enterro da mãe – a descrição da ressaca é palpável. Ele vomita e alcança o fundo do poço com uma esperança paradoxal: “E era bom que fosse assim, pois, quando não houvesse mais nada e só lhe restasse no estômago, além da queimação, a sensação do vazio, certamente começaria a melhorar.”

 

O abuso e a dependência do álcool, associados à solidão, são, para esse homem, uma forma de punição e purgação, mas também de “ficar tonto, e, assim, não pensar em nada” ou, ainda, de “passar a limpo sua vida”. Antes do suicídio, ele oferece sua última dose a Maria Tereza – paixão de infância inconfessável, recém-desperta – em um gesto de abstinência e sacrifício que é igualmente amor: “Prima, toma esse último conhaque por mim.”


Repetição: ritmo e tensão

 

O romance é composto de parágrafos longos e 29 capítulos curtos; não tem diálogos, mas usa o discurso livre indireto; vale-se de flashbacks (as passagens que rememoram a infância de Nando) e uma boa dose de insinuações e sugestões. A repetição do conectivo “e” – contra regras e manuais – confere ritmo aditivo, tensão crescente e um toque de relato oral à narrativa, cujo suspense deve-se ainda à montagem paralela, tendo sempre em vista a morte anunciada.


Desfecho anunciado

 

Como ocorre em “Crônica de uma morte anunciada”, de Gabriel García Márquez, em “O último conhaque” pressentimos desde o início – com o descumprimento do pedido feito pela mãe – que o protagonista será morto: entretanto não sabemos como. Cada vez mais Rodrigo Lima – o assassino do pai – e seus capangas desferem ameaças contra Nando. A certa altura, sua prima Maria Tereza lhe adverte: “[...] é para o seu bem: vá embora.”

 

O ataque ao cachorro da vizinha é uma reviravolta terrível: “Isso é apenas o começo...”. O bilhete, com prazo para deixar a cidade, outra surpresa de arrepiar: “Te picamos igual ao cachorro”. Apesar de tudo, Lima – à semelhança de Santiago Nassar, vilão colombiano – desiste de executar sua vítima: “E os tempos eram outros, e seu tio Rogério estava morto. [...] Além do mais, ele, Rodrigo, queria mesmo era só um pouco de paz. Estava cansado.”

 

O clímax do romance coincide com seu desfecho fatal, trágico e – assim mesmo – enigmático e surpreendente: o suicídio de Nando. Ele se mata com um tiro “bem em cima do coração” após abrir as cartas da mãe: concluiu que ela teve um amante? vários deles? Foi ela uma “putinha safada” (isso dizia o bilhete ameaçador), assim como a prima Ruth? “[...] qual seria o trabalho de sua prima?”, questionava-se quando criança. 

 

Adriano Cirino é jornalista e crítico literário, colaborador também da revista piauí e do jornal Rascunho

 

“O último conhaque”
De Carlos Herculano Lopes
Record
160 páginas
R$ 64,90

 

Lançamento da reedição na próxima terça-feira, às 19h30, na Biblioteca Pública Estadual (Praça da Liberdade), em conversa com Wander Melo Miranda, pelo projeto Sempre um papo. Entrada franca

 

Trecho

 

De “O último conhaque”
(escolhido pelo autor Carlos Herculano Lopes)

 

“... E aquele homem, recém-chegado à sua terra para o enterro da mãe e também para cicatrizar antigas feridas ou, então, abri-las de vez, tomou o resto do conhaque, que quase já não estava descendo, e prometeu que seria o último, pelo menos enquanto estivesse na casa onde havia nascido. Fumou mais uns cigarros, teve ânsias de vômito e dormiu ali mesmo, recostado na velha poltrona de Maria Lucas, Maria Lucas Lasmar, sua mãe, que acabara de deixá-lo. E naquela noite, entre a realidade, o sonho e a bebida, algumas imagens, muito antigas, voltaram à sua cabeça, que fervilhava. E, entre tantas lembranças, ele, já com quase quarenta anos, os cabelos grisalhos e muitas histórias, viu seu pai caído, os olhos parados e fixos neles: sua mãe, Rita e ele próprio. Ouviu de novo os tiros, os estampidos que ainda ecoam em seu coração, viu sua mãe chorando, com as mãos no rosto, gritando e se arranhando toda, viu sua irmã que fazia o mesmo e também a ele e ao padre Thomaz, o velho espanhol que chegou em seguida, chamado não se sabe por quem, viu sua batina preta, o chapeuzinho também preto, o missal já velho e as velas acesas; viu o enterro, as pessoas, a maioria desconhecidas, em filha para os cumprimentos e as coroas de flores.....”

 

Capa do livro

Reprodução

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