Viviane de Cassia Ferreira

Especial para o EM

 

Meu nome é Viviane de Cassia Ferreira. Estou com 58 anos. Sou uma performer ArTeVida. Isso significa que me esmero em viver a vida como arte e fazer arte com matéria da minha própria vida.Há 21 anos, rompi a tênue linha da saúde mental e transtornei. Desde então, nos períodos de estabilidade, ilumino os porões da minha loucura com a arte, buscando apaziguar o sofrimento psíquico, recolher aprendizado e amenizar a dor, a vergonha e o sentimento de inadequação que se arrastam depois das crises.


Sei que a autoexpressão, o autocuidado e o autoconhecimento são três chaves valiosíssimas para a saúde mental. O amor incondicional é a chave mestra, desconfio fortemente.


Tive meu primeiro surto psicótico em 1985, aos 19 anos. Naquela época, tive um filho que nasceu prematuro e faleceu com apenas três dias de vida. Depois de varar noites sem dormir, saí certa manhã logo que rompeu o dia, em direção ao cemitério onde estava enterrado meu filho Pedro. Ao tentar atravessar a Av. Amazonas, um carro vermelho passou e a inundou de sangue, até meus calcanhares. Ali mesmo perdi os sentidos, o juízo, e fui parar num hospital psiquiátrico.


Diagnosticada com esquizofrenia, passei a fazer uso diário de antipsicóticos, estabilizadores de humor, antidepressivos e ansiolíticos. Trataram-me por meses, eu não reagia. Por fim, fugi alucinada para o Rio de Janeiro. Minha mãe me resgatou e devagar fui me sentindo melhor. Mais forte psiquicamente, consegui até mesmo trabalhar no comércio, num regime especial oferecido por tios, e superei a crise.

 




Naquela época, minha família, amigos e eu não acreditamos no diagnóstico e entendemos o episódio como luto e severa depressão pós-parto. Abandonei o tratamento e só voltei a ter surtos psicóticos em 2003, aos 37 anos, pressionada com excesso de responsabilidades no trabalho, na família. Nessa época, comecei a sentir uma dor indizível no braço direito. Procurei tratamento, mas a médica me prescreveu um remédio para depressão monopolar, o que só fez aumentar a minha crise.

 

Até esse momento, eu havia tido uma vida produtiva, conquistando cargos importantes no mercado formal de trabalho, criando com sucesso minha filha que tinha três anos quando o irmãozinho faleceu. Formei em História e Teatro.


Depois desse novo surto, em 2003, passei a ser diagnosticada com transtorno bipolar tipo I. Vivi loucas escaladas maníacas, surtei feio algumas vezes e sofri depressões impiedosas que, pensava, roubaram-me anos e anos de vida.

 


Mas, finalmente, consegui acertar com um psiquiatra que,para minha felicidade, eu encontrei no SUS. A partir daí, segui uma rotina rigorosa de medicação, dosagem e psicoterapia, onde também “perdi” também algum tempo. Hoje, porém, considero que tudo foi fundamental para que me tornasse quem sou.


Sinto-me verdadeiramente uma cientista que estuda com diligência o meu próprio corpo. Fiz grandes encontros com profissionais da saúde mental, conheci a esquizoanálise, que me ensinou a enxergar minha loucura como diferença, não como inferioridade. Descobri e inventei estratégias, linhas, rotas de fuga da má loucura, da opressão social, do abuso do “bom senso”, das armadilhas dos jogos de representação neuróticos e capitalistas.

 

Aprendi a ressignificar traumas, reconhecer sintomas, aceitar e compreender o transtorno, identificar pessoas, contextos, assuntos, lugares, atitudes, projetos e comportamentos que me potencializam ou inversamente, que arruínam minha energia vital, fragilizando-me psiquicamente. Consegui na Justiça a aposentadoria por invalidez (trabalhei por 25 anos com carteira assinada) e entreguei definitivamente meu corpo à arte. E eu me recriei.

 


Sou uma faquiresa que tira partido da dor. Uma palhaça sagrada que transmite ternura e alegria na sua doida jornada. Expresso-me em performances, nas letras, nos palcos e recentemente entrei para aulas de desenho e mosaico no Centro de Convivência onde trabalho com meus pares.


Organizo meus pensamentos escrevendo, danço minhas glórias, desejos e misérias, desenho medos, coloro possibilidades, crio personagens no teatro que facilitam a compreensão da multiplicidade do meu ser. Encontro refrões no cancioneiro popular que me salvam das descidas aos infernos, dos tombos nos abismos e me permitem sonhar. Arrisco-me a compor músicas.


A arte tem um movimento mágico, pra dentro, pra fora, pra cima, pra baixo, pros lados, pro infinito. Nos tira do lugar. Eleva. Expande a consciência. Transforma tudo. Enriquece a vida.

 


Agora sou também estrela de cinema. Quando me vi na telona, no documentário experimental “As linhas da minha mão”, pensei com toda verdade e emoção:


– Amo essa linda mulher. Vou cuidar dela e fazer tudo para agradá-la e protegê-la. Não vou depreciá-la nem abandoná-la nunca mais. Ela é livre, corajosa e tem uma grande missão. Essa obra sincera tem absoluta coerência com sua vida e pode, com sorte, inspirar outras pessoas. Um conhecimento foi revelado ali, no vivo cinema de João Dumans.


São 21 anos diuturnamente na lida com as oscilações do transtorno bipolar eafecções de toda ordem (emocional, financeira, profissional, cognitiva, sexual, espiritual...).


Vê-la assim, uma artista tão loucamente dona de si, me faz acreditar que arte é medicina. Medicina é a arte de cuidar. Sou muitíssimo bem-cuidada no filme que se apresenta forte e a um só tempo delicado, poético...


Que precioso elogio à loucura, ao meu modo de existência! Sinto-me perfeitamente realizada e feliz. Com plena saúde integral! Viva o cinema brasileiro!

 

* Viviane de Cassia Ferreira


é protagonista do longa-metragem “As linhas da minha mão”, dirigido por João Dumans, premiado como Melhor Filme na 26ª Mostra de Tiradentes. Formada em Teatro pelo Cefart - Centro de Formação Artística e Tecnológica do Palácio das Artes - (2001) é performer ArteVida e dramaturga, autora do livro “Casa Breve: Uma atriz louca e três tempos”, publicado pela editora Javali.

 

“As linhas da minha mão”
• Documentário, 80min, 2023
• De João Dumans
• Com Viviane de Cassia Ferreira
• No dia 10/5, o filósofo Vladimir Safatle comenta “As linhas de minha mão” em BH, em sessão dupla com o filme “Sete anos em maio”, de Affonso Uchoa, no Minas Tênis Clube, a partir das 18h

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