“A adaptação, em última instância, é uma forma intensa de leitura. Ao invés de resumir, tive o luxo de poder expandir, realmente criar espaço para os versos brilharem”. A definição é do quadrinista e ilustrador gaúcho Odyr Bernardi para a sua adaptação para quadrinhos de “Morte e vida severina”, poema clássico de João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Lançada há sete décadas, a obra do poeta recifense, que morreu há 25 anos, conta a fuga da seca do sertanejo Severino em direção à capital pernambucana e ao mar, margeando o rio Capibaribe em busca de uma vida melhor.


O extenso poema de 1.215 versos foi adaptado inúmeras vezes para televisão, musical, cinema, teatro e ainda celebrizado também por Chico Buarque. Surgiu como um auto de Natal para encenação do nascimento de Jesus, encomendado para o palcos pela dramaturga Maria Clara Machado na década de 1950. Mas João Cabral escreveu um auto muito maior do que a encomenda, tamanha a profundidade reflexiva.


Em seu caminho, Severino se depara várias vezes com a morte e vai percebendo que sua busca é inútil diante da miséria, do abandono e da violência, uma realidade comum a muitos outros severinos excluídos. “E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia”. Desiludido, Severino pensa em desistir da vida, um trágico fim para sua triste sina diante da cova próxima que parece inevitável: “Essa é parte que te cabe desse latifúndio”. Mas a esperança é renovada com o nascimento do filho de um carpinteiro chamado José, rodeado de visitantes com muitos presentes, uma forte esperança natalina. Severino, aliás, não é um nome aleatório para o protagonista de João Cabral. Seu significado trata de resiliência, determinação, coragem e trabalho.

 




Obra mais popular de João Cabral, “Morte e vida severina” (1956) compõe uma espécie de trilogia – formada por “O cão sem plumas” (1950) e “O rio” (1953), em torno do rio Capibaribe, o mais importante de Pernambuco. Em “O cão sem plumas”, o autor revela o rio e o ambiente que o cerca. Em “O rio”, o protagonista é surpreendente, é o próprio Capibaribe, que conta a sua história na primeira pessoa, observando as pessoas em suas margens. E em “Morte e vida severina” é o homem Severino que percorre o trajeto do rio em direção ao Recife e ao mar, numa sucessão de personagens e infortúnios.

 


DESLUMBRE VISUAL

 

Com seus versos imagéticos e sonoros, “Morte e vida severina” mescla poesia e realismo social para denunciar a dura vida de milhões de severinos. Pois agora, essa grandeza poética de João Cabral de Melo Neto, que tira beleza do sofrimento e da morte, ganha ainda mais atualidade com a adaptação feita por Odyr. É literal sua definição de que criou espaço para os “versos brilharem”. É exatamente essa a primeira impressão do leitor no manuseio de sua adaptação. A pintura acrílica da trajetória de Severino, sem quadros ou enquadramentos e sem contornos, de características que lembram o impressionismo, enchem os olhos, é impactante e deslumbrante, dá mais realismo ainda à obra original.

 


E embora seja possível dizer que o regionalismo dos retirantes nordestinos também seja universal ao tratar de severinos degredados pela injustiça social, como a falta de terra para viver e plantar, Odyr também faz de sua adaptação uma denúncia planetária. À figura do retirante são incluídos refugiados mundo afora, como os africanos que tentam chegar à Europa pelo mar em embarcações precárias. As ilustrações mostram o desespero e o afogamento de refugiados no oceano. Eles também são severinos, à mercê da sorte, da fome, da miséria e da crueldade de outros seres humanos.


Odyr vai mais além ao associar também as vítimas da pandemia de Covid-19 ao mundo severino. Foram mais de 700 mil mortes apenas no Brasil. Na página 100 da adaptação está a representação de uma cena chocante. Covas coletivas vistas de cima para incontáveis corpos, como ocorreu em Manaus, capital do Amazonas, imagem que correu o mundo. Aqui também são severinos, muitos anônimos e indefesos tragados pela negligência e pela indiferença. “Não teve uma intenção consciente, uma decisão, de universalizar ou modernizar. Como acontece nos melhores projetos, foi algo que me ocorreu de imediato ao reler o poema, uma consequência direta da leitura”, disse Odyr ao Pensar, como a revelar uma força poderosa e inconsciente dos versos de João Cabral.

 

“Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina”

 

 

TRÊS PERGUNTAS PARA

ODYR BERNARDI

 

Sua adaptação de “Morte e vida de severina” para HQ é uma pintura, diante da beleza impressionante – ou impressionista – e da ausência de enquadramentos. Você usou acrílica ou aquarela para dar tanto realismo social a um dos maiores clássicos da literatura brasileira?


Acrílica. Esse livro em particular foi muito amigável e apropriado pra pintura. Basicamente um personagem, muitos cenários, muito aberto, muitas texturas.

 

A obra de João Cabral segue atualíssima sete décadas depois de lançada, mas você a tornou ainda mais atual incluindo refugiados que tentam chegar à Europa pelo mar e covas coletivas representando vítimas da Covid. Neste sentido, buscou tornar universal a obra de João Cabral, afinal, os severinos são milhões de retirantes e excluídos mundo afora?


Não teve uma intenção consciente, uma decisão, de universalizar ou modernizar. Como acontece nos melhores projetos, foi algo que me ocorreu de imediato ao reler o poema, uma consequência direta da leitura. A adaptação, em última instância, é uma forma intensa de leitura. E meu método, se tenho algum, é exatamente esse: visualizar coisas a partir da leitura. Então, foi literalmente o que enxerguei ao ler os versos.


Você tem percebido nas adaptações de clássicos para HQ, obviamente resumidos, um estímulo para a leitura e a popularização dos originais? É um desafio pegar um poema tão extenso e intenso como “Morte e vida e severina” e manter sua essência?


É o que se espera: que a adaptação se sustente como obra e que o original mantenha sua aura intacta, continue sendo uma outra experiência. Ainda que seja um poema longo, é bastante curto enquanto livro, o que resulta numa vantagem pra mim: enquanto uma adaptação literária de um romance em geral acaba usando algo como 20% do texto original, nesse caso devo ter usado algo como 80% do texto. Então, ao invés de resumir, tive o luxo de poder expandir, realmente criar espaço para os versos brilharem.

 

“MORTE E VIDA SEVERINA”
• João Cabral de Melo Neto
• Adaptação para HQ de Odyr
• Quadrinhos da Cia.
• 176 páginas
• R$ 119,90

 

Capa do livro

reprodução

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