Fatima Pinto Coelho

Desenhos de Isaura Pena

 

“A pomba, o querubim e os atlantes”
(Sabará II)

 

Com as veias em relevo e usando de toda a sua força, o atlantes sustenta o coro de onde sairão polifonias de séculos passados.


Em pares, querubins enaltecem o barroco num bailado irreverente. Panejamentos caem na direção do visitante estarrecido. No teto, a pintura nos conta cenas bíblicas.


Enquanto isso, em voos rasantes, pombas arrulham e desmancham as cimalhas marmorizadas, furando buracos no telhado da igreja, e avisam que a história do ouro em Minas entrou em decadência.

 

“Passeio triste (Sabará I)”

 

Acho até que eram árvores. Galhos enormes arrancados pela enxurrada de lama.


A população ribeirinha persiste em seus barracões precários e montados. Vejo que não há saneamento básico e que tudo corre para o curso da água lodenta. O rio assoreado. Nada da antiga beleza descrita por tantos escritores, historiadores e pela paleta do Guignard.


Margeando a estrada que corre ao lado da água poluída do Rio Sabará, o viajante se depara com a figura desproporcional de Borba Gato ao lado do portal de entrada para a antiga Vila Real de Nossa Senhora da Conceição, Sabarabuçu, hoje Sabará.


Caminho no calçamento de pedras da pequena cidade, hoje “grande Sabará”, formada por bolsões de pobreza que tocam os da capital mineira.

 




Confusa com o desastre ecológico e social que vejo, sigo em direção ao adro da igreja Nossa Senhora do Carmo. Aí estão os púlpitos e os atlantes de Aleijadinho. Tudo é de muita beleza. A proporção da edificação, a implantação, o frontispício, as portas, a imagem de São Simão Stock.


(A procedência é de um santo inglês propagador da ordem do Carmo na Europa do sec. XII. Vide Lúcia Machado de Almeida, Passeio a Sabará, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2010, p. 124).


O cemitério antigo emociona.


Tão perto daqui, o rio nos apresenta um contraste assustador.


Em seguida, tomo a direção da igrejinha de Nossa Senhora do Ó. Nossa Senhora da Esperança. Nossa Senhora da Expectação do Parto. Nossa Senhora do Ó. Encontro-a, envolta em andaimes que parecem estar lá segurando, já há muito, a história da linda capela chinesa.

 


“E eis que o mundo se pôs a aguardar o Messias anunciado pelos profetas do antigo testamento. Bem alto falaram eles, e de suas vozes de esperança e apelo foram tiradas as sete antífonas cantadas na véspera de Natal”. Cito a primeira delas: “Ó sabedoria que procedestes dos lábios do Altíssimo, atingindo de um fim a outro, dispondo tudo, forte e suavemente. Vinde-nos ensinar o caminho da prudência”.


Com a porta da igreja fechada, faço na memória minha visita à capelinha de estilo tão simples do barroco mineiro, impregnada do vermelho encarnado chinês vindo de mares distantes, após cruzar serras altíssimas e se fixar nestas pobres paredes. Na única torre do único sino, o telhadinho revira em pagode oriental.

 

Sobra um bar que vende cerveja ao lado, cujo proprietário não sabe informar sobre os possíveis horários de abertura ou ofícios no Ó.


Triste sina. Derrota. Abandono.


Que mais posso pensar? Nos textos do Drummond sobre Minas Gerais, em Murilo Mendes, Aníbal Machado, no Romanceiro da Inconfidência de Cecîlia Meireles! Veludos para a nossa alma.

 


Esperança na riqueza dos conteúdos.


Aqui, neste chão que piso agora, vejo a nossa história dourada esvaindo-se e encontrando o rio com galhos retorcidos de lama.


O Museu. O Museu do Ouro. Tenho bonita lembrança da visita que fiz com o Diretor Antônio Joaquim de Almeida e sua mulher, a escritora Lúcia Machado de Almeida.


Com passos pesados e melancólicos, fui devagar, temerosa.


Cheguei tarde. Já fechando, vi cena estarrecedora: de uma das janelas da antiga casa da Intendência da Vila Real de Nossa Senhora da Conceição, Museu do Ouro desde 1938, um vigia solitário tentava encaixar a almofada de madeira de uma das janelas que havia despencado.


Não procurei ver mais nada. Tentei só lembrar há quantos anos não vinha nenhum som do belo teatrinho construído durante o Primeiro Reinado.


Na rua, o clube Cravo Vermelho passou por mim, murcho.


Acho até que vi, com esperança, nas poucas janelas antigas, as palmas de papel douradas e prateadas que enfeitavam os altares das igrejas, brilhando ao sol à espera de um turista. Este, por sua vez, está à procura de um bar para tomar uma gelada.

 

 

Sobre a autora

Fatima Pinto Coelho nasceu em 1951 em Belo Horizonte. Formada em Belas Artes na Escola Guignard, foi professora de arte-educação (1971-1999), expôs na XIV Bienal de São Paulo (1977), fundou a galeria de arte Gesto Gráfico (1980-2009) e, nos últimos anos, tem se dedicado à escrita. Seu primeiro livro, lançado em 2018, é “Catas Altas do Matto Dentro”

 

“Paralelo 20”
• De Fatima Pinto Coelho
• Miguilim Editora
• 144 páginas
• Lançamento no sábado (04/5), das 12h às 14h, na Livraria da Rua (Rua Antônio de Albuquerque, 913, Savassi, BH)

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