Escritor mineiro Luís Giffoni  -  (crédito: Marcos Vieira/Estado de Minas - 14/09/2006)

Escritor mineiro Luís Giffoni

crédito: Marcos Vieira/Estado de Minas - 14/09/2006

Não aguento mais pão de queijo. Já comi uns dez. Ou vinte. Comi sem fome. Sem vontade. Toda hora a moça vem com a travessa, a mesma travessa de louça branca que começou a servir desde cedo, cheia de esparramar, você não quer mais um, querida, tiraí, eu digo obrigada, ela insiste que eu coma esse pão de queijo mais murcho que maracujá murcho, eu fico sendo educada, pego outro, mastigo o tempo, o tempo dura tanto quanto o pão de queijo na boca, torce pra travessa cair e quebrar, e a moça sumir. Acho que está com dó de mim. Quer me encher de comida pra eu esquecer. Eu é que já enchi antes.


Quando ela me vê outra vez e parte pra cima de mim, eu levanto depressa, olho pra mamãe, peço um socorro que não vem, corro pra fora, chego até a porta da rua, as pessoas passam, levam a vida de correria nesta bosta de cidade metida a capital da galáxia, os carros zunem na Rua São João Paulo II, todos me ignoram, não querem saber o que aconteceu comigo, ou com ninguém além deles mesmos, um celular toca, o mesmo barulho do meu, nada mudou desde a manhã desse pesadelo, nem aqui nem no mundo, todos sentem o mesmo calor que eu, volto vítima de todos os olhares na sala que não largam do meu pé desde que aqui entrei, e penso que sou idiota. Muito idiota. Devia dizer não, fim, chega, não quero mais pão de queijo. Muito simples. O problema é que estou sem lugar. Mas lugar não falta. A sala é grande. Tem muito sofá e poltrona. E cadeira junto das paredes. Gente que nunca vi veio me ver, dar dois tapinhas no ombro, trazer o cumprimento deles e do fulano que não sei quem é, tem o beijinho no final, o olhar comprido pra mim, o comentário de duas palavras e, quando veem a mamãe, fazem o sinal da cruz que nem cruz faz de tão rápido. Ela está tranquila. Estranho que esteja tão tranquila. Eu não estaria. Poria muita revolta no rosto.


Ainda não acostumei com a ideia. Como não acostumei com esse cheiro pesado, que ocupa todo o ar, mas que nunca cai no chão, fica parado, cada vez mais largo e pesado, cada vez mais dentro da minha cabeça, cada vez mais espremendo meu coração. E esse zumbido do vozerio que não muda de assunto nem de tom. Igual colmeia. Gosto muito da minha mãe. Tive muita sorte de ter mãe assim. Ela é puro carinho. Papai também. Adoro eles. A gente era feliz. passo a mão nela outra vez e sento na cadeira ao lado que reservaram pra mim. Um segundo depois, levanto. Mais gente que nunca vi. Mais dois tapinhas nas costas e as duas palavras infalíveis. Depois ouço que Dona Aurora não pôde vir, mas adorava minha mãe. Abro meu sorriso e agradeço. Acho que percebem que sou fingida. Agora não importo mais. Podem achar o que quiserem.

 

 


Hoje não fui na escola. não teve como. A escola toda veio até aqui, as amigas chorando, os meninos com cara de quem fez coisa errada, olho no chão, mudos ou resmungando coisas que parecem ter engolido sem mastigar. Estão engasgados. Mas me dão energia boa. Até o Naldo foi gentil, ficou segurando minha mão um tempão, sem coragem de olhar direto nem falar gato. Eu que queria tanto segurar a mão dele não senti nada, fiquei bobalhona, encarando ele com um pouco de vontade de chorar, sem coragem de ir em frente. Era só destampar um pouco e meu mundo desmoronava de vez. Segurei, segurei o choro e a mão. O máximo que aconteceu foi eu deitar no peito dele, ficar ali fazendo ninho por quase um minuto. Um ninho que eu queria pra nós dois. Ele chorou, eu não.


Tio Zé chegou, fico feliz. Amo meu tio, meu favorito numa dúzia de um lado e do outro da família. É o irmão mais novo da mamãe, sempre brincou muito comigo, quando me via me levantava e rodopiava até a cabeça ficar zonza, hoje a gente toma sorvete no shopping toda sexta depois da aula e ri de tudo, me chama de Princesa desde que eu era menina. Mas ele me ignora e vai depressa falar com o tio Marcão, o mais transtornado dos parentes, solta a dor igual aqueles sapos que não tomam ar entre um coaxado e outro, e só fica alisando o cabelo da mamãe sem parar, de olho atravessado para mim. O olhar dele me dá um pouco de medo. Arrumou um amor diferente que não é amor, é uma coisa mais funda, vem de onde o amor desama. Tio Zé agacha no ouvido do tio Marcão. Eu dobro a atenção. Redobro. Sou muito curiosa, a mamãe sempre fala. E diz que isso é bom. Se ninguém fosse curioso, a gente ainda vivia na Idade da Pedra.

 

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“Tudo ok, Marcão”.


“Deu trabalho?”


“Não”.


“38?”


“Na cabeça”.


“Seguro?”


“Seguro”.


“Depois me conta o resto”.


“Estou preocupado com a Princesa, sem pai nem mãe”.


“Preocupa não. A gente junta e acaba de criar ela. Nosso sangue”.


“E eu, quando eles descobrirem?”


“Fica calmo, Zé. Calmo, viu? Finge que nada aconteceu. tudo dura uma semana neste mundo de Deus. Só a morte de nossa irmã é pra sempre” – tio Marcão acaricia a mão da mamãe por baixo do filó.


“O filho da puta mereceu” – tio Zé olha como se eu não existisse.


“Se mereceu. Matar a esposa pra pegar dinheiro pra crack… Puta que pariu. Puta que pariu. Nossa irmã, Zé, nossa irmã morreu por conta de crack. Não dá pra acreditar”.


“Não vou arrepender nunca”.
“Você vingou a nossa família. Fica tranquilo”.


O tio Zé levanta, passa a mão no cabelo da mamãe, beija a testa dela, faz o sinal da cruz e vem me abraçar. Fala, Princesa, Princesa, querida, te amo, minha fofa, tudo vai ficar bem, sempre vou estar do seu lado, ele não para de repetir essas coisas. Me aperta com tanta força, tenho vontade de pedir pra parar, ele insiste, Princesa, Princesa, minha querida. Chora tanto que eu percebo as lágrimas no meu pescoço. Eu afasto o chorão. Seu olhar tem ternura, mas não tem mais amor. Eu também esfrio. E esquento. Se pudesse, se tivesse coragem, eu dava três tiros nele. 38. Na cabeça, igual ele falou.


“Você quer um pão de queijo, querida?”


“Não quero não” – eu grito. – “Estou cheia dessa bosta de pão de queijo! Cheia!” Todos me olham como se eu tivesse matado alguém.

 

Na estante

 

Principais livros de Luís Giffoni

• “A jaula inquieta” (1988)
• “Os pássaros são eternos” (1988)
• “Sonho cigano” (1990)
• l “O ovo de Ádax” (1991)
• “Boirangos azuis” (1993)
• “A árvore dos ossos” (1999)
•  “Adágio para o silêncio” (2000)
• “A verdade tem olhos verdes” (2001)
• “Os chinelos da raposa polar” (Contos, 2002)
• “Riscos da eternidade” (Crônicas,2002)
• “O poeta e o quasar” (Crônicas, 2003)
• “Infinito em pó” (2004)
• “Retalhos do mundo” (Crônicas de viagem, 2005)
• “O caçador de yétis” (2005)
• “O reino dos puxões de orelha e outras viagens” (2006)
• “O pastor das sombras” (2010; o exemplar pode ser pedido no site da editora Patuá)
• “O acaso abre portas” (2014)