Porto Alegre,maio de 2024 - Nessas reversões irônicas da história, o que foi feito em nome de nossa autopreservação agora coloca em risco essa mesma autopreservação. Ou seja, ao tentar compulsivamente garantir nossa autopreservação criamos um processo de autodestruição, como vemos no Rio Grande do sul submerso
 -  (crédito: RICARDO STUCKERT/presidência da república)

Porto Alegre, maio de 2024

crédito: RICARDO STUCKERT/presidência da república

Diante das catástrofes ambientais que devastam atualmente nosso país, seria o caso de lembrar de uma frase de Theodor Adorno: “O progresso acontece lá onde ele termina”, Essa era a enunciação adequada de um horizonte fundamental de ação: parar o progresso, para que ele pudesse começar. Ou, antes: parar o progresso, não para operar alguma forma de retorno à origem ou regressão, mas para realizar o desejo de que, assim, o progresso enfim comece. Todas essas seriam variações de um mesmo tema: o tema do colapso do progresso como o primeiro movimento real de seu início.


No início dos anos 1970, apareceram relatórios que mostravam a inevitabilidade da articulação entre progresso e catástrofe. Um deles, talvez o mais conhecido, chamava-se exatamente: “Os limites do crescimento”, de Dennis Meadows, Donella Meadows e Jorgen Randers. Relatórios como esses alertavam que a concepção de progresso que organiza o desenvolvimento de nossas sociedades terminaria em “catástrofe do crescimento exponencial em um mundo de recursos finitos”, com as sequências de crise econômica, social, ecológica e política que isso pode produzir.


Lembrar dele hoje pode nos servir para entender como o progresso, até agora, foi o nome de um fracasso. De fato, a associação entre progresso e catástrofe é muito mais presente do que gostaríamos de admitir. A catástrofe representada pelo crescimento, pela exaustão de recursos em um meio ambiente finito e atravessado por uma crise ecológica, é apenas uma de suas figuras. Na verdade, as várias figuras da relação entre progresso e catástrofe apontam para uma articulação orgânica entre progresso e violência. Ela está presente no próprio conceito de “crescimento exponencial”: “O crescimento exponencial é um processo comum em sistemas biológicos, financeiros e em vários outros no mundo”.

 

 

Esse era o tipo de frase que se lia nos anos 1970. Mas seria possível criticar essa noção de crescimento exponencial como se fosse um fator biológico e, por isso, natural. Seria possível compreender a própria noção de “crescimento exponencial” como uma aberração social, e não como a expressão de um princípio natural. Pois devemos lembrar que crescimento exponencial é uma realidade totalmente dependente de um certo tipo muito específico de sociedade submetida ao processo de acumulação capitalista, da produção feita para gerar excedente em ritmo de guerra e ampliar exponencialmente o consumo.


Étienne Balazs, em um livro sobre a China intitulado “A burocracia celeste” lembrava, mais ou menos à mesma época, que a China tinha todas as condições tecnológicas e científicas para inventar o capitalismo no século 13. Se não o fez é, entre outras coisas, porque o Estado fechava as minas quando as reservas de metal eram suficientes. Ou seja, faltava-lhes a noção de crescimento exponencial como extração contínua de mais-valia.

 


Esse crescimento exponencial, quando aparecer, será indissociável do desenvolvimento de mercados mundiais cada vez maiores, da sujeição colonial, da exploração das condições de trabalho, do uso de trabalho não pago, com toda a violência que isso implica. Isso nos explica por que as eras vistas por uns como momentos históricos de aperfeiçoamento técnico e perfectibilidade humana foram compreendidas por outros como momentos de espoliação e destruição. O que para uns é visto como crescimento exponencial, para outros significa destruição contínua, significa uma guerra contra eles, seus saberes e modos de produção.

 

Quando Celso Furtado leu “Os limites do crescimento”, ele não pôde deixar de salientar ainda outro ponto, a saber, que o relatório involuntariamente mostrava que o padrão de desenvolvimento e consumo dos países centrais do capitalismo não poderia ser generalizado para todo o mundo, o que mostrava como o progresso, para além de estar até agora organicamente vinculado à guerra era, no fundo, um mito. Nunca houve e nunca poderia haver progresso para todos:

 

“Os limites do crescimento” fornece uma clara demonstração de que o estilo de vida criado pelo capitalismo industrial sempre será o privilégio de uma minoria. O custo desse estilo de vida em termos de degradação do mundo físico é tão alto que qualquer tentativa de generalizá-lo levaria necessariamente a civilização inteira ao colapso, colocando em risco a sobrevivência da espécie humana. Nós temos então a evidência clara de que desenvolvimento econômico – a ideia de que pessoas pobres podem um dia desfrutar do estilo de vida das atuais pessoas ricas – é simplesmente inalcançável. Sabemos de maneira incontroversa que as economias periféricas nunca serão desenvolvidas, no sentido de serem similares às economias que constituem o centro do sistema capitalista.

 


Ou seja, o progresso que conhecemos não apenas dependeu da violência da exploração e da conquista. Ele se mostrou um mito inalcançável, para além de limites geográficos muito estritos. Por isso, a maneira mais consequente de se livrar desse mito começa por negar o progresso – não mais procurar fechar os olhos para sua matriz violenta, recuperar aquilo que ele destruiu.


No entanto, há ainda um ponto a ser abordado se quisermos efetivamente fazer uma autocrítica do progresso. Se o primeiro ponto consiste em expor toda a extensão da relação entre progresso e violência, o segundo consiste em uma consideração de ordem psíquica. Se a noção de progresso esteve até hoje tão vinculada à ideia de dominar a natureza, de desencantá-la pelo cálculo, pela mensuração e quantificação, de poder organizar previsões que nos imunizassem contra a escassez, de controlar o involuntário e o contingente, é porque o desejo de progresso sempre esteve fundado no medo de estarmos diante de forças que não controlamos, que colocam em risco nossa autopreservação.

 

 

Ou seja, o progresso até agora foi fruto do medo, por isso ele pode e deve ser tão violento. E nessas reversões irônicas da história, o que foi feito em nome de nossa autopreservação agora coloca em risco essa mesma autopreservação. Ou seja, ao tentar compulsivamente garantir nossa autopreservação criamos um processo de autodestruição, como vemos no Rio Grande do sul submerso.


Livrar-nos desse medo seria uma condição necessária para o progresso enfim começar. Pois isso significaria não mais justificar a violência contra tudo o que aparece como insubmisso, involuntário e contingente. A crise ecológica, crise na relação entre sociedade e natureza, sempre será acompanhada de algo que poderíamos chamar de “crise psíquica”. Sua superação não exige apenas uma negação do desenvolvimento econômico, mas uma negação do tipo de sujeito que nos tornamos. Não há pacto ecológico possível sem que haja algo como um outro pacto psíquico. A violência que fazemos contra a natureza nunca foi dissociável da violência que fazemos contra o que não é imagem da maturação em nós, contra aquilo que aparece como natureza em nós.

 

Vladimir Safatle, filósofo e professor da Universidade de São Paulo (USP)

Vladimir Safatle, filósofo e professor da Universidade de São Paulo (USP)

Sabine Vielmo/Divulgação

 

Entrevista


Vladimir Safatle (filósofo)

 

“O Brasil é a explicitação das contradições imanentes à noção de progresso”

 

Como as enchentes no Rio Grande do Sul representam a associação do progresso com a violência?
Uma catástrofe como essa não tem nada de contingente, ela é o resultado necessário do tipo de crise ecológica que o progresso capitalista produziu. E é algo completamente previsível. Há pelo menos 50 anos sabemos que o crescimento exponencial do capitalismo, dentro de um de um sistema de recursos naturais finitos, produziria esse tipo de colapso climático e ambiental, com todas as consequências que estamos vendo hoje. Ou seja, essa dinâmica de progresso marcada pela noção de crescimento exponencial era uma forma brutal de violência contra a terra, contra a natureza, contra o trabalho, não é? Agora, a gente só está vendo as consequências disso.

 

Onde e quando o Brasil falhou na construção desse modelo de progresso?


Não, o Brasil não falhou nesse modelo de progresso. O Brasil é a representação mais bem acabada do que progresso efetivamente significa. A questão toda é entender que dentro do sistema capitalista não há outra forma de progresso a não ser essa que é completamente vinculada à consolidação de crises: crise ecológica, crise econômica, crise ambiental, crise social, crise política, crise psíquica. Então, o que a gente está vendo não é uma falha na construção do modelo de desenvolvimento. Pelo contrário, o que estamos vendo é um modelo de desenvolvimento bem-sucedido. E, quanto mais bem sucedido ele é, ou seja, quanto mais ele realiza os princípios normativos que lhe são próprios – princípios de acumulação infinita, baseada na crença de que terra e trabalho são fontes inesgotáveis de extração valor - mais evidentes ficam as suas verdadeiras consequências. Então, o Brasil, na verdade, é apenas o modelo mais bem acabado de progresso, é a explicitação das contradições imanentes à noção de progresso.

 

Por que a desinformação se amplia em casos extremos como na calamidade que atravessa o Rio Grande do Sul?


Porque um dos elementos fundamentais da extrema direita é a indiferença. Enquanto um de seus afetos fundamentais, a indiferença mobilizada pela extrema direita se baseia na ideia de que existe uma diferença social profunda que deve pautar todas nossas formas de relação. Então, quando você começa a insistir não apenas na necessidade de construir uma solidariedade com as pessoas que sofrem, mas também na necessidade da sociedade de refletir os seus caminhos de desenvolvimento e de progresso,é claro que isso vai encontrar resistência por parte da extrema direita. Pois o que ela defende é uma relação com os recursos naturais que é completamente predatória e extrativista, para eles os recursos naturais nada mais são do que o valor que pode ser atualizado a qualquer momento: a natureza nada mais é do que um estoque a ser mobilizado para a produção de mercadoria. Então, quando você coloca esse tipo de problematização, eles vão tentar fazer tudo o que for possível para impedir que a discussão se desenvolva nos termos adequados.

 

“Alfabeto das colisões: Filosofia prática em modo Crônico”
• De Vladimir Safatle
• Ubu Editora
• 160 páginas
• R$ 59,90
Lançamento em BH neste sábado (11/05), às 11h, com bate-papo com Gilson Iannini na Livraria Café com Letras (Rua Antônio de Albuquerque 781, Savassi)

 

Capa do livro

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