Laura Cohen Rabelo
Aos oito anos apreciava Liszt, e sua família não via nada de prodigioso nisso. Se viam, não declaravam. B ouvia os discos de ópera do avô, que nem chegara a conhecer, antes que sua tia os reclamasse, trancando-os à chave no armário da sala do piano. Ele tenta se convencer de que teve uma infância bem normal, porque parece impossível passar pelo crescimento sem desastres. Ruim foi ter demorado tanto para reconhecer o que era a maldade e o mal incorporado em uma pessoa.
Aos nove anos, seu mundo era Bach, Haydn, Mozart. Quando escutou Música aquática e os Concertos de Brandemburgo, sentiu que poderia explodir de alegria. Um músico de gosto, experiência e formação clássicos. E o que isso queria dizer? Gostava de música grandiosa, feita para comover, para levá-lo a outros lugares que não a cidade natal, longe do violão corriqueiro de seu pai. Depois, e sem aviso, a música se tornou a coisa mais importante de todas, acima dos quadros, acima dos livros, B conclui de pé no banheiro do quarto de casal, olhando para o porta-retrato.
Enquanto estudava com seu primeiro professor sério de violão, B se sentiu tão parte da música que supôs que havia certa tolice em descrevê-la com palavras. Falar em brilho, cor, textura para algo que não podia ser visto, algo que não tem língua. Comparar a harmonia às tramas de um tapete ou a uma fonte de água, ou até mesmo a um arco-íris, como lia nos encartes dos discos ou em livros e revistas de música, falar em sonoridade de ouro, em riqueza, boa projeção.
Ele tinha vontade de rir: a linguagem das palavras era insuficiente; a música parecia ser a coisa mais universal inventada pela humanidade e, por isso, perfeita. Esse era o tamanho de seu deslumbre. Anos depois, já na faculdade, Fontana, um professor de regência, colocaria fundos a todas aquelas indagações: “A música não é uma linguagem”, “A música pode ser uma linguagem assim como a matemática pode ser uma linguagem”. E música atonal, e Theodor Adorno, e Ravi Shankar, e Teatro Noh. Será que, na época daquela fotografia tirada por Sandra à soleira da casa de Mimi, ele ainda conservava aquelas ideias sobre universalidade? Ou caíra em si? Quando realmente se conhece o mundo, a universalidade deixa de ser uma questão.
Mas se os professores não utilizassem metáforas e descrições para explicar como uma música deveria ser tocada, como fariam? O puro solfejo? O silêncio (às vezes tão vago) da partitura? A idiotice da imitação? Monkey see, monkey do. Bater nos alunos com a colher de pau quando eles errassem? Bem que sua tia desejara isso. Mas B sabe que, por mais que goste de música de concerto contemporânea, com seus compositores vivos ou recém-mortos, por mais que goste de diferentes artes e culturas, por mais que goste de música popular, como se diz, aquilo que toca com mais facilidade é o cânone do violão. Não o repertório gorduroso de seu pai.
Das primeiras vezes que tocou violão, achou dificílimo: era um instrumento grande e desajeitado, mais complicado do que o piano que a professora da escola lhe apresentara, sempre nos breves minutos de duração da aula de música semanal. Os colegas não demonstravam se sentir tocados, simplesmente faziam barulho, catarses, cantavam gritando, e isso soava desrespeitoso. B se sentia, sobretudo, racional, pelo menos mais racional que os colegas. Sem o piano (que suas primas possuíam e o pai não podia comprar), só restava o violão que havia em casa: uma esmola. Mas ao encontrar o piano aberto na casa da tia, sentou-se sem pedir licença, tocou o que aprendera com a professora da escola e impressionou a todos. A tia, aparentemente surpresa, ofereceu ajuda. “Precisamos ensinar esse menino direito”, disse, com um rigor que encheu B de felicidade. Mas ali estava a armadilha.
A partir disso, B passou a tolerar os quarteirões de torreira que tinha de enfrentar depois do almoço na caminhada até a casa da tia. Tolerava seu bafo, seu mau humor vaidoso, tolerava a indolência e a preguiça das primas, o tédio machucado que elas traziam nos olhos, o ressentimento com o qual elas recebiam a música. Ele lia as partituras mais rápido do que elas, naturalmente tocava melhor, sorvia cada minuto com o instrumento. Não se distraía nem reclamava, atitude que acabou por transformá-lo em uma espécie de Judas.
Na verdade, por mais que a tia fosse azeda, que as primas fossem tristes e que a situação fosse desconfortável, estar diante do piano continuava sendo uma das melhores coisas da semana. Era o que tinha à mão, então agarrou sem pensar, sem suspeitar, afinal, era apenas uma criança e os adultos sabem o que fazem.
Sobre a autora
Laura Cohen Rabelo nasceu e vive em Belo Horizonte, é escritora e editora. É mestre em Estudos Literários pela FALE/UFMG. Publicou os romances “História da água” (Impressões de Minas, 2012), “Ainda” (Impressões de Minas, 2014), “Canção sem palavras” (Scriptum, 2017) e “Caruncho” (Impressões de Minas, 2022), vencedor do prêmio Academia Mineira de Letras de 2023. Também lançou os livretos de poesia “Ferro” (Impressões de Minas, 2016), “Escrever é uma maneira de se pensar para fora” (Impressões de Minas, 2018) e “O ano do boi” (edição da autora, 2021).
Publicou contos em diversas revistas e portais. É idealizadora e coordenadora do projeto Estratégias Narrativas, onde dá oficinas de criação literária e edição desde 2013. Em 2019, participou do projeto Arte da Palavra, do Sesc, com oficinas em algumas cidades brasileiras. Leciona no curso de pós-graduação em Escrita Criativa da PUC-Minas desde 2020.
O trecho nesta página é do mais recente romance, “Duas línguas” sobre um homem identificado apenas pela letra B, violonista de renome internacional que, a partir da observação de uma fotografia de si mesmo tirada trinta anos antes, relembra (em fluxo de consciência, narrado em um parágrafo único) a juventude em uma cidade do interior de Minas.
“Duas línguas”
• Laura Cohen Rabelo
• Editora Zain
• 184 páginas
• R$ 69,90
Lançamento neste sábado, às 11h, na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274), com autógrafos da autora e apresentação musical com o violonista Davi Avansini.