Fabiano Azevedo
Especial para o EM
O mineiro Evandro Alves, o homenageado desta edição do Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte (FIQ) ao lado da gaúcha Ana Luiza Koehler, confirma uma insuspeita máxima do mundo das artes gráficas nacionais: a de que Minas Gerais, terra de Ziraldo, Henfil e Borjalo, dentre tantos outros, é um criadouro de excepcionais cartunistas. Natural de Itabira – mas crescido em Lagoa Santa, onde vive ainda – Alves é dono de uma extensa, premiada e, sobretudo, versátil obra. Se o seu traço é inconfundível (ele bebeu das férteis fontes dos anos 80, quando as bancas de revista eram replet as de Chiclete com Banana, Níquel Náusea, Circo, Animal, Mad, Piratas), é no discurso do autor que reside a singularidade de seu trabalho.
Apesar das múltiplas premiações em salões de humor no Brasil e no mundo, o que prova que Alves sempre soube ser engraçado, o brilho intenso de sua criação artística se encontra mesmo no bucolismo por vezes triste e autobiográfico de obras como “Material Poético”, reunião de cartuns atemporais recentemente publicada pela Brasa.
Ou, ainda, na defesa apaixonada da natureza e dos povos e comunidades tradicionais em suas tiras sobre o cerrado, que são ao mesmo tempo denúncia e ode ao bioma brasileiro. Estas tiras também viraram livro, pela Editora Peirópolis. Quando vai falar sobre o cerrado, aliás, ele consegue reunir duas maestrias: a de geógrafo e a de cartunista.
Nós nos conhecemos há uns 30 anos – éramos pouco mais que adolescentes -, quando Alves me apresentou as tiras que produzia na época, coisas como Gronk e Homem-galinha. Já era possível enxergar nelas o timing preciso, a centelha narrativa que dá vida ao humor bem-feito. A poesia apareceu pouco depois, em tiras que já anunciavam o cerrado como cenografia e que pendiam para a literariedade de Guimarães Rosa, de João Ubaldo Ribeiro, de Carlos Drummond de Andrade.
Antes que você imagine que o jovem Alves era por demais pretensioso, ou que minha comparação exagera, te digo que havia ali uma genuína e espontânea criatividade – e que de resto permanece em seus trabalhos poéticos atuais. Que, aliás, são definidos de forma ambígua pelo autor: podem ser “poemas quadrinizados ou quadrinhos poemados”.
Com efeito, trabalhos como a pequena série de tiras que começa com citação ao inglês Thomas More (“Nenhum homem é uma ilha”) e se encerra com Carlos Drummond de Andrade (“No meio do caminho tinha uma pedra”) são emblemáticos dessa dual relação narrativa entre poesia e quadrinhos, que vai se tornando mais sofisticada e concisa ao longo dos anos.
A coleção que compõe o “Material Poético” se insere, ela própria, numa métrica particular, em que cada cartum/poema traz quatro quadros/versos. São pequenos hai-kais ilustrados, onde as coisas adquirem personificação: a serra que segura as nuvens, o ar que sente saudades... A natureza e a vida no campo sendo contemplados à distância. Nesse universo de silêncio e fenômeno, o autor é, ao mesmo tempo, artífice engenhoso e ingênuo espectador.
Lidos em sequência no livro da Brasa, os cartuns do “Material Poético” acabam ganhando certa cadência, tornando-se, assim, uma grande poesia. Os cartuns assumem, aí, a forma de estrofes, em contraponto ao formato “pílulas” observados em suas publicações originais nas redes sociais de Alves.
Nosso longínquo primeiro contato, três décadas atrás, rendeu muitos frutos. Alves tornou-se um colaborador frequente da Graffiti 76% quadrinhos, revista que eu editava, e acabamos publicando seu primeiro livro, em 2010: “A rua de lá”, uma lírica homenagem, um tanto autobiográfica, à infância na roça. Foi o último álbum editado pela Graffiti, e certamente o de maior sucesso de vendas. Me parece – assim leio nas redes sociais – que Alves pretende colorir e relançar “A rua de lá”. Seria excepcional e, eu diria, necessário.
Quanto mais livros de Alves no mercado, melhor. Porque ler sua obra (seja o “Material Poético”, seja o “Cerrado em quadrinhos”, seja este álbum) não significa apenas um convite a passear e ver com olhos de poeta a natureza, o campo, a roça e as pequenas coisas. Significa também, e em última instância, refletir sobre a infinita premência a que somos prisioneiros hoje, que nos obriga a dispersar nossa atenção em tantas coisas e com tamanha pressa que, no fim das contas, não prestamos atenção em nada. O discurso de Alves trata exatamente do inverso: observar, ‘botar reparo’ nas coisas para transformá-las, é algo que se faz com tempo.
Fabiano Azevedo é quadrinista, autor de “O último táxi” (2021) e “Santelmo enfeitiçado” (2022), ex-editor da revista “Graffiti 76% quadrinhos”, e irá mediar a mesa de Alves no FIQ neste domingo, às 14h30, no Minascentro.