Paul Auster (1947-2024)

“Acha uma folha de papel nova. Põe o papel sobre a mesa à sua frente e escreve estas palavras com a sua caneta”

FOI.
NUNCA SERÁ DE NOVO.
LEMBRE.

A escrita de Paul Auster, talhada pacientemente entre tinta e papel, tem algo de translúcido, vibrante, em que uma história funciona como uma metáfora para outras histórias, como num espelho eterno

Foi no último dia 30 de abril que Paul Auster deixou este plano, levando com ele, talvez, os últimos resquícios de uma arte praticamente extinta. “Escrevo tudo à mão. Não consigo criar em um teclado, não sei por quê. Preciso de uma caneta ou de um lápis.” A confissão à revista “Vulture” sobre o modo de fazer literatura do nova-iorquino, morto aos 77 anos, indica algo que parece estar esquecido. Pois o ofício de escritor, mesmo que hoje banalizado na urgência vulgar do texto digital, pouco se difere daquele de um carpinteiro ou mesmo ao de um vidraceiro.


É claro que a tecnologia e a internet são uma ajuda. Visões, opiniões, análises e ficções pululam em qualquer canto das redes sociais numa velocidade estonteante. Mas até que ponto isso é literatura? E até onde esse próprio modo de fazer perdeu a essência e deu lugar a inúmeros processos que, como o nome bem diz, estão sempre inacabados?

 

 



 


Em outra entrevista, falando da sua própria casa no Brooklyn a uma TV do estado de Louisiana, Auster descreveu uma labuta totalmente inadequada ao atual mundo ultrassônico. “Considero um bom dia de trabalho se escrevi uma página no fim do dia. Duas são incríveis. Três são um milagre”, diria ele sobre a jornada de oito horas, com cerca de 15 “reescritas”, tudo à mão. Suponho eu que nesse escritório tampouco teriam lugar os computadores ou smartphones com suas notificações enlouquecedoras, a todo tempo e a todo segundo.


Citei o ofício de vidraceiro logo no primeiro parágrafo remetendo, de maneira óbvia, a “Cidade de vidro”, primeira história de uma das obras mais conhecidas de Paul Auster, a “Trilogia de Nova York” – e adaptado magistralmente para os quadrinhos pela dupla Paul Karasik e David Mazzucchelli.

 

Nela, um escritor decide atender a uma ligação, um engano, assumindo a identidade de um detetive particular chamado... “Paul Auster”. Numa miríade de enigmas insolúveis, que vão da prática macabra de uma teoria de linguagem universal à perseguição silenciosa atrás do velho Peter Stillman, pai do jovem Peter Stillman, pelas ruas de Nova York, os dois Paul Auster (o escritor e o detetive) se esfacelam.


E é a busca sempre impossível pela identidade, repleta de memórias e desmemórias, que vai deixando marcas nos outros livros do romancista, um enrolar em si mesmo que chega ao nada, a metáfora da cobra que morde o rabo até desaparecer. “Invisível”, de 2009, uma história de escritores, assassinatos e uma paixão incestuosa ou até inexistente, traz no título um resumo da marca do autor.


A escrita de Auster, talhada pacientemente entre tinta e papel, tem algo de translúcido, vibrante, em que uma história funciona como uma metáfora para outras histórias, como num espelho eterno. Ou seja, é o trabalho de um vidraceiro das palavras, mesmo que, quando são sobrepostas várias lâminas translúcidas, o resultado seja opaco.

 

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O poder de um desconectado papel em branco de multiplicar histórias também é tema de outra ficção do nova-iorquino, “A noite do oráculo”, no qual um dos principais personagens é um caderno de capa azul, capaz de salvar um autor do mais temeroso bloqueio criativo. Nas entrelinhas, Auster parece querer dizer que o ato de ir além de si mesmo é nada menos que o ofício de talhar pacientemente o próprio indivíduo até que ele se multiplique esquizofrenicamente, com cada pedaço tomando a vida própria.


Imagino agora Paul Auster em seu escritório, escrevendo sem parar. Como se eu fosse o personagem de “Fantasmas”, segunda história da “Trilogia de Nova York”, um detetive contratado para espionar outro detetive – e vice-versa. Mesmo lugar onde talhou sua arte até o fim. "Ele morreu no cômodo que amava, a biblioteca, um quarto repleto de livros, da janela até o teto, mas também com janelas que deixavam entrar a luz", escreveu Siri Hustvedt, mulher de Auster, em despedida publicada na última quinta-feira no Instagram da escritora.

 

Cinco livros indispensáveis

“A invenção da solidão” (1982)
Primeiro livro publicado pelo norte-americano, é uma não ficção. Na primeira parte, “Retrato de um homem invisível”, Auster mergulha nas memórias sobre a morte do pai para refletir sobre o que significa ausência. Na parte final, "O livro da memória", o escritor discute temas que abordaria na futura carreira como romancista: o absurdo e o acaso.

Capa do livro "A invenção da solidão" (1982)

reprodução

“Trilogia de Nova York” (1987)
As três novelas, que compõem, talvez, a obra mais conhecida de Paul Auster, colocam o leitor e o autor no centro de uma trama policial: “Cidade de vidro”, “Fantasmas” e “O quarto secreto”. Escritores e detetives trocam de figura a todo tempo – e ninguém está livre de ser o culpado.


“Invisível” (2009)
Dividido em quatro partes, o livro conta a história de Adam Walker, um universitário que testemunha um crime cometido pelo editor francês de uma revista literária. O roteiro de Auster se desloca entre a juventude e o fim da vida do protagonista, passando por Nova York e Paris – cidade na qual o autor viveu.

capa do livro "Sunset Park" (2010)

reprodução


“Sunset Park” (2010)
Ainda atormentado pela morte do meio-irmão, o jovem Miles Heller retorna a Nova York para viver em uma ocupação com mais três amigos. A crise do mercado imobiliário de 2008 é um dos temas desse romance, que também traz um dos assuntos preferidos de Auster: o acaso.


“4 3 2 1” (2017)
O romance com maior volume de Paul Auster é também um experimento. Nas quase mil páginas, a história de Archie Fergusen se desdobra. Cada capítulo traz versão diferente do que poderia ter sido a vida do personagem, naquilo que hoje é chamado de “multiverso”.

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