Curadora da 22ª Festa Literária Internacional de Paraty, a editora Ana Lima Cecilio foi diretamente responsável pelo sucesso no Brasil da italiana Elena Ferrante. “Foi a oportunidade de ver surgir um fenômeno literário, de acompanhar o número de leitores crescendo, de atestar, muito de perto, que o romance não morreu, porque os leitores sempre vão gostar de uma história bem contada”, lembra Ana Lima, à época no selo Biblioteca Azul, da Globo Livros, responsável pelas edições brasileiras da autora de “A amiga genial”.

 

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E é com base na experiência de duas décadas no meio editorial, com passagens também pela Carambaia e pela curadoria da livraria online Dois Pontos, que Ana Lima chega a um posto-chave na festa literária mais badalada do Brasil, realizada desde 2003 na cidade histórica no litoral do Rio. “A trajetória de Ana Lima reflete sua paixão pela literatura, essa poderosa ferramenta para a compreensão do mundo e para a construção de pontes entre culturas, pessoas, cidade e natureza. Sua proximidade com o público leitor é um ativo importante para o trabalho como curadora da Flip”, justificou Mauro Munhoz, diretor artístico da Flip, à época do anúncio da nova responsável pela seleção dos temas e atrações da festa, que deve voltar a ser realizada em setembro.

 



 


Ao Pensar do Estado de Minas, Ana Lima Cecilio lembra que, mesmo trabalhando numa livraria online, sempre se preocupou em fazer “vitrines”, ainda que virtuais, com livros importantes “para pensar e debater os temas incontornáveis, de fake news e autoritarismos à saúde mental e relacionamentos familiares”. Ela defende a ficção literária como uma ferramenta poderosa para reflexão da realidade. “Os livros, a literatura, a produção cultural refletem o mundo, nos ajudam a diagnosticar, a entender para onde devemos olhar”, acredita a curadora, formada em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Leia, a seguir, a entrevista de Ana Lima.

Ruas cheias em Paraty na Flip 2023

Sara De Santis/divulgação

 

Entrevista/Ana Lima Cecilio (livreira e editora)

 

É possível comparar o trabalho de livreira e de editora com o de curadoria? Como recebeu esse novo desafio?

Acho possível sim, mesmo porque o que eu fiz nos últimos anos foi a curadoria da livraria. Mesmo trabalhando numa livraria online, minha preocupação era fazer “vitrines”, ainda que virtuais, que mostrassem livros importantes para pensar e debater os temas incontornáveis, de fake news e autoritarismos à saúde mental e relacionamentos familiares. Tem livro pra tudo, de todo jeito, e a curadoria é saber transitar nesse mar das publicações para pescar as pérolas (e são muitas!).

 

Como a programação da Flip pode refletir sua vivência da proximidade com o público leitor, o seu “olhar de livreira”?

O livreiro está na linha de frente do mercado editorial. Essa experiência em livraria me fez entender o que as pessoas estão procurando, o que é importante debater, quais as tendências. Com isso em mãos, é possível oferecer ao público uma curadoria que consagre autores já queridos do público, mas também apresentar novos, que tenham coisas importantes a dizer para a gente hoje, no Brasil.

 

Poderia citar alguns momentos marcantes, em sua visão, de edições anteriores da Flip?

Ah, são muitos! Lembro da jornalista russa Svetlana Aleksiévitch, que tinha acabado de ganhar o Nobel de Literatura, numa fala brutal e humana sobre a guerra, o amor e a importância de escrever (a tenda e a praça lotadas, num silêncio total). Lembro a mesa do Eduardo Coutinho, em que ele finalmente era o entrevistado, e que foi uma consagração da sua genialidade. Lembro o brilho único do Ariano Suassuna, da doçura da Adélia Prado, da elegância da Toni Morrison. Enfim, a Flip é uma festa.


A discussão de temas atuais continuará predominando na Flip? Quais assuntos estão entre os que pretende levar para a edição de 2024? A literatura é capaz de refletir esses temas como faz a não ficção?

Ah, certamente. Os livros, a literatura, a produção cultural refletem o mundo, nos ajudam a diagnosticar, a entender para onde devemos olhar. Vivemos uma época em que livros foram tratados como “um amontoado de muita coisa escrita”, e é preciso sempre estar atento para reafirmar a importância dos livros, da educação, de todas as manifestações culturais na construção da sociedade que queremos ser. E isso em todos os livros: acredito que a ficção também oferece esses instrumentos. Alguns temas são incontornáveis, como as guerras, o avanço do autoritarismo, a crise da informação, a emergência climática. Quem pensa o mundo hoje não consegue fugir desses temas, e penso que a Flip deve ser um reflexo disso também.


Quais critérios serão levados em conta para a escolha do nome a ser homenageado em 2024?

Eu gosto muito da ideia de resgatar autores mais desconhecidos, para botá-los em evidência, como foi o caso com Maria Firmina dos Reis e Pagu, nos últimos anos. Mas também tenho vontade de trazer um autor que teve grande sucesso, mas anda esquecido: isso nos permite fazer relações, ver como sua obra se refletiu em tudo que veio depois etc. Mas ainda estamos conversando.


Como vê o crescimento de eventos paralelos, no chamado off-Flip, e a consolidação de uma programação não oficial?

Acho excelente. Uma das coisas que me impressionam muito na Flip é a pluralidade, a vontade de conversa, e como a Flip são dias em que tem espaço para toda discussão. Isso é fundamental para a festa, para o conceito que queremos incentivar de que quanto mais conversa, mais rica é a experiência. Quando a gente fala de cultura, tudo é crescimento, é soma.


O que foi mais marcante na experiência de editar Elena Ferrante no Brasil?

Ah, certamente a oportunidade de ver surgir um fenômeno literário, de acompanhar o número de leitores crescendo, de atestar, muito de perto, que o romance não morreu, porque os leitores sempre vão gostar de uma história bem contada, que é cheia de vida real, que envolve, que faz a gente pensar sobras as nossas relações, sobre como é a estrutura da sociedade, sobre como construímos nossas trajetórias. A Ferrante ocupou um lugar que parece que faltava. Foi muito prazeroso.


Entre os autores que editou, vivos ou mortos, quais você gostaria de promover um encontro hipotético numa mesa da Flip?

Eu adoraria ouvir o Balzac conversando com o Flaubert, disputando o século 19 francês! Ou então ouvir a Hilda Hilst junto com a Virginia Woolf, falando sobre suas experiências de ser mulher escritoras, tão diferentes, mas com tantas coisas em comum.


Quais foram os últimos livros que leu e que mais gostou? Por quê? E um clássico que sempre vale a pena reler?

A pergunta é difícil porque você deve imaginar que eu tenho lido muito, né? Mas eu li “O deserto e sua semente”, do Jorge Barón Biza, um escritor argentino que já morreu, que conta a história duríssima da família dele. Esse livro me deu um nó, porque revira o estômago, mas é a prova absoluta do poder da literatura. Também li “Uma mulher singular”, da Vivian Gornick, sobre sua vida em Nova York, mas sobre as pessoas, ela mesma, ser mulher, a literatura e o mundo. É um livro que dá vontade de escrever, mesmo pra mim, que nunca sonhei em ser escritora. Li também “O colibri”, do italiano Sandro Veronese, que é um romance encantador, com um narrador irresistível, bem-humorado e inteligentíssimo. Quantos aos clássicos, eu acho que sempre vale a pena voltar a qualquer um deles. Como diz o Italo Calvino, clássico é um livro que nunca terminou de dizer o que tem a dizer. Particularmente, gosto muito dos russos, o Tolstói tem edições novas incríveis, e do Balzac, como eu já disse. E o Machado, né? Que é o nosso maior de todos.

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