É o amor o contrário da morte, não a vida, pregou o escritor e psicanalista Roberto Freire (1927-2008) em suas entrevistas e obras ficcionais e analíticas (“O coiote”, “Cleo e Daniel”, “Ame e dê vexame”...). Se a morte é inevitável, o amor também é em suas múltiplas faces dóceis (paixão, afeto, carinho, abraços, tesão...) ou cruéis (traição, abandono, indiferença, ofensa, agressão...). “O amor é tão forte quanto a morte”, cita a pesquisadora e professora russa Elena Vássina – lembrando “Cântico dos cânticos”, de Salomão – no prefácio de “Alamedas escuras”, a última obra do escritor russo Ivan Búnin, que será lançada em Belo Horizonte pela editora Ars et Vita, com tradução de Irineu Franco Perpétuo, no próximo dia 17.


Primeiro escritor russo a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1933, Búnin, que escreveu “Alamedas escuras” no exílio, após fugir do regime stalinista, considerava “Alamedas escuras” o seu melhor livro. “A maioria dos contos de ‘Alamedas escuras’ foi escrita no período de 1937 a 1945, na época sombria e trágica da véspera e durante a Segunda Guerra Mundial”, conta Elena Vassina. Posteriormente, o escritor incluiu no livro “Primavera na Judeia” (1946) e Pernoite (1949)”.


“Na visão de mundo do autor de 'Alamedas escuras', sempre há a proximidade entre o amor e a morte, refletindo a natureza catastrófica da existência humana”. O livro reúne 40 histórias, entre contos novelas e “poemas em prosa”. Com seu grande talento estético, repleto de poesia em prosa, Búnin fala de amores conquistados e perdidos, traição e morte, do amor eterno que supera o abandono e o tempo, como nesse diálogo entre Nikolai e Nadiejda, no primeiro conto homônimo do livro:

 




“– Tudo passa, minha amiga – balbuciou. – Amor, juventude – tudo, tudo. É uma história vulgar, corriqueira. Com os anos, tudo passa. Como está dito no livro de Jó? “Lembrar-te-ás como de águas passadas”.


– A cada um, o que Deus dá, Nikolai Aleksêievitch. A juventude de todos passa, mas o amor é outra coisa. (...) Sabia que há muito tempo o senhor não era mais o de antes, que para o senhor era como se nada tivesse acontecido, porém...”

 

 

Da pobreza ao Nobel


As obras de Búnin e sua prosa poética inquietante ainda são pouco divulgadas no Brasil e, por isso, pouco conhecidas– se comparadas às Tolstói, Dostoiévski, Tchekhov e Turguêniev e mesmo a outros autores do século 20, como Górki e Nabokov. A principal razão, talvez, seja o apagamento de suas obras pelo regime soviético. Na própria Rússia, seus livros só voltaram a ser publicados na década de 1950, após a morte de Stálin.


Ivan Alekseyevich Búnin (1870-1953) nasceu em Voroniej, na Rússia agrícola, filho de uma família aristocrática decadente, diante da proibição da servidão no fim do século 19 e da conduta do pai, que perdeu o patrimônio em jogos. Desenvolveu seu talento literário desde cedo, inclusive pela necessidade de trabalhar. A fim de divulgar seus contos, Búnin procurou pessoalmente dois gigantes da literatura, Tolstói e Tchekhov, deste tornando-se amigo.


Nas duas primeiras décadas do século 20, já se destacou na Rússia imperial. Ganhaou duas vezes o Prêmio Puchkin (que levava o nome do fundador da literatura russa). A celebridade chegou aos 40 anos, com o polêmico “A aldeia”, de 1910, realidade crua sobre o cotidiano de “mujiques” (camponeses russos). Ele provocou fúria por quebrar a tradição literária russa de enxergar os mujiques pela docilidade.


Mas o mundo de Búnin na Rússia desabou em 1920, quando, inconformado com a vitória dos Exército Vermelho (bolcheviques) sobre o Exército Branco (europeus) na guerra civil decorrente da derrubada da monarquia dos Romanov, em 1917, Búnin se autoexilou na Europa. A ascensão de Stálin consolidou o banimento de sua obra na recém-criada União Soviética. Abrigado na França, Búnin continuou escrevendo e foi sucessivas vezes indicado ao Nobel, como também Maksim Górki. Mas levava vida de penúria, porque a literatura não garantia sobrevivência digna. Em 1933, a literatura russa, mundialmente consagrada pelos grandes autores do século 19, ainda não havia recebido um Nobel, prêmio que começou a ser concedido em 1901. Górki, mais uma vez, era o favorito, mas o seu alinhamento ao regime totalitário de Moscou e sua liderança no chamado “realismo soviético” que propagava a literatura sob a nova realidade do regime stalinista, acabaram impedindo sua premiação, que ficou então com Búnin. Na academia sueca, consta que o prêmio foi concedido “pelo rigoroso talento artístico com que Búnin recriou o típico personagem russo na prosa literária”, segundo Elena Vassina.


“Altezas, minhas senhoras, meus senhores, há exatamente entre vós pessoas de diferenes posições políticas, filosóficas e religiosas. Mas apesar de todas essas divervências de opiniões, há uma coisa que nos une estreitamente: é essa estima pela liberdade de espírito, este amor à liberdade de consciência que é um patrimônio comum à humanidade inteira, a base essencial de nossa civilização”. Essas são as declarações finais de Búnin no discurso de agradecimento diante da realeza sueca, em Estocolmo. em 1933. O trecho consta da edição de 1971 – dedicada a ele com suas obras “O amor de Mítia” (obra-prima) e “O processo do tenente Ieláguin” (tradução de Boris Schnaiderman) – da editora Ópera Mundi, incluída na coleção “Biblioteca Prêmios Nobel de Literatura”, patrocinada pela academia sueca e pela Fundação Nobel.

 

 

Fome na Segunda Guerra


A glória em Estocolmo, entretanto, não garantiu um futuro tranquilo para Búnin na França ocupada por nazistas. Com a recusa em ser colaboracionista, Búnin e a mulher, Vera, voltaram à miséria. “Búnin encontrou a Segunda Guerra Mundial com setenta anos, na mais absoluta miséria, chegando a passar fome e a sofrer de doenças causadas por inanição. (…) Búnin e Vera viveram de ajuda humanitária durante todo o conflito: recebiam caixas de alimentos da Cruz Vermelha, remessas de dinheiro de amigos suecos ou encomendas com víveres e roupas dos amigos russos que haviam partido para os EUA. Acobertando judeus em sua casa, Búnin negava-se a colaborar com jornais nazistas e, assim, ficava sem remuneração, já que a grande maioria dos veiculos russos estavam fechados”. É o que conta o jornalista e tradutor Irineu Franco Perpétuo em seu livro “Como ler os russos” (editora Todavia – 2021).


Passada a guerra, Búnin, debilitado, e já com 75 anos, não se recuperou mais. Na edição de 1971 da editora Ópera Mundi, Gueórgui Adamovitch, antigo professor da Universidade de Manchester e que viu de perto os últimos dias de Búnin, conta: “Sua agonia foi muito longa e dolorosa. De que morreu? No final das contas, ninguém o sabe ao certo. Seu médico afirmava que nem o coração, nem os rins, nem o fígado funcionavam mais, e era por milagre que aquele organismo consumido continuava a resistir à morte”. Adamovitch conclui: “Na noite de 8 de novembro de 1953, sentada à sua cabeceira, sua mulher lia em voz alta. Ele havia pedido Tchekhov e parecia seguir com atenção. De repente, sentiu-se muito mal. Alguns instantes depois estava morto”. Curiosamente Búnin morreu no mesmo ano, sete meses após Stálin, que baniu sua obra. Seus livros só voltaram a ser publicados em sua terra natal na segunda metade da década de 1950, portanto, após a morte do ditador.

 

 

Conto 'Alamedas escuras'

 

No tempo frio e ruim de outono, em uma das grandes estradas de Tula, inundada de chuva e recortada por muitas trilhas negras, aproximava-se de uma isbá comprida, em uma extremidade em que havia a estação postal do Estado e, em outra, um cômodo privado, em que se podia descansar ou pernoitar, comer ou pedir um samovar, um tarantasse [veículo de quatro rodas puxado por cavalos] enlameado com a cobertura erguida pela metade, um trio de cavalos bastante simples, com os rabos grudados pela lama. Na boleia do tarantasse, estava sentado um mujique robusto, de armiák [sobretudo de lã grossa com capuz] bem apertado, sério e de rosto escuro, com uma barba rala de alcatrão, parecendo um velho bandido, e, no tarantasse, havia um militar velho e elegante, de quepe grande e capote cinza de Nicolau [sobretudo longo de gola larga até a cintura] de colarinho vertical castor, de sobrancelhas ainda negras, porém bigodes grisalhos, que se uniam a costeletas similares; seu queixo era raspado, e toda a aparência possuía aquela semelhança com Alexandre II que era tão difundida entre militares na época de seu reinado, seu olhar era também interrogador, severo e, ao mesmo tempo, cansado.


Quando os cavalos pararam, ele jogou para fora do tarantasse o pé com bota militar de cano liso e, segurando as abas do capote com as mãos em luvas de camurça, saiu correndo para o terraço de entrada da isbá.


– Para a esquerda, Vossa Excelência – gritou rudemente da boleia o cocheiro, e ele, curvando-se de leve na soleira por causa de sua estatura elevada, entrou no saguão, depois no cômodo à esquerda.


O cômodo estava quente, seco e asseado: um ícone dourado novo no canto esquerdo, debaixo dele, uma mesa coberta por uma toalha limpa e austera, atrás da mesa bancos limpos e lavados; o forno da cozinha, que ocupava o distante canto direito, era novo, branco como giz; perto havia algo como uma otomana, coberta de um xairel malhado, apoiada no flanco do forno, de trás do tapador do forno vinha um cheiro doce de sopa – feita de repolho, carne de vaca e folhas de louro.


O recém-chegado largou o capote no banco e revelou-se ainda mais elegante só de uniforme e botas, depois tirou luvas e quepe e, com ar cansado, passou a mão pálida e magra pela cabeça – seus cabelos grisalhos, puxados nas têmporas para os cantos dos olhos, eram levemente encaracolados, o rosto belo e longo, de olhos escuros, conservava aqui e ali ligeiros traços de varíola.


No cômodo não havia ninguém, e ele gritou de forma antipática, abrindo a porta do saguão: – Ei, quem está aí? No instante seguinte, entrou no cômodo uma mulher de cabelo escuro, sobrancelhas também escuras e também ainda bela, apesar da idade, que parecia uma velha cigana, com uma penugem escura no lábio superior e ao longo da face, de passo leve, porém corpulenta, com peitos grandes sob a blusinha, barriga triangular, como de ganso, sob a saia negra de lã.


– Seja bem-vinda, Vossa Excelência – ela disse. – Deseja almoçar, ou prefere o samovar [utensílio para aquecer água e servir chá]?


O recém-chegado olhou por alto para seus ombros redondos e os pés leves nos gastos sapatos tártaros vermelhos e, de forma entrecortada, e sem prestar atenção, respondeu:


– O samovar. Você aqui é dona ou empregada?


– Dona, Vossa Excelência.


– Quer dizer que você mesma cuida?


– Exatamente. Eu mesma.


– Como assim? É uma viúva que mantém o próprio negócio?


– Não sou viúva, Vossa Excelência, mas tenho que viver de algum jeito. E gosto de cuidar da casa.


– Certo, certo. Está bem. E como sua casa é limpa, agradável.


A mulher fitava-o de forma escrutadora o tempo todo, apertando os olhos de leve.


– Eu gosto de limpeza – ela respondeu. – Pois cresci entre nobres, como não saberia me portar com decoro, Nikolai Aleksêievitch?


Ele se aprumou rapidamente, abriu os olhos e enrubesceu.


– Nadiejda! É você? – disse, apressado.


– Sou eu, Nikolai Aleksêievitch – ela respondeu.


– Meu Deus, meu Deus – ele disse, sentando-se no banco e fitando-a obstinadamente. – Quem poderia pensar? Há quanto tempo não nos vemos? Trinta e cinco anos?


– Trinta, Nikolai Aleksêievitch. Agora tenho quarenta e oito, e o senhor um pouco menos do que sessenta, não é?


– Algo assim… Meu Deus, que estranho!


– O que é estranho, senhor?


– Ora, tudo, tudo… Como não entende?


Seu cansaço e dispersão desapareceram, ele se ergueu e pôs-se a caminhar resolutamente pelo cômodo, olhando para o chão.


Depois parou e, corando por detrás do grisalho, começou a falar:

– Não sei nada de você desde aquela época. Como veio parar aqui? Por que não ficou com os patrões?

– Os patrões me deram a liberdade logo depois do senhor.

– E onde viveu depois?

– É uma história longa, meu senhor.

– Diga, não se casou?


– Não.


– Por quê? Com aquela beleza que você tinha?


– Eu não podia fazer isso.


– Por que não podia? O que quer dizer?


– O que explicar? Creio que se lembra de como eu o amava. Ele enrubesceu até ficar em lágrimas e, franzindo o cenho, voltou a caminhar.


– Tudo passa, minha amiga – balbuciou. – Amor, juventude – tudo, tudo. É uma história vulgar, corriqueira. Com os anos, tudo passa. Como está dito no livro de Jó? “Lembrar-te-ás como de águas passadas”


– A cada um, o que Deus dá, Nikolai Aleksêievitch. A juventude de todos passa, mas o amor é outra coisa.


Ele ergueu a cabeça e, detendo-se, riu-se, doído:


– Mas você não podia me amar para sempre!


– Pelo visto pude. Por mais que o tempo passasse, eu vivia só por uma coisa. Sabia que há muito tempo o senhor não era mais o de antes, que para o senhor era como se nada tivesse acontecido, porém… Agora é tarde para recriminações, mas veja, na verdade, o senhor me largou de forma muito insensível — quantas vezes eu quis erguer as mãos contra mim mesma, só pela ofensa, sem nem sequer falar de todo o resto. Pois houve um tempo, Nikolai


Aleksêievitch, em que eu o chamava de Nikólenka, e o senhor me chamava — lembra-se de quê? E todos os versos que quis ler para mim, sobre todas as “alamedas escuras” — ela acrescentou, com sorriso rancoroso.


– Ah, como você era bonita! — ele disse, balançando a cabeça. – Que ardente, que linda! Que corpo, que olhos! Lembra como todos olhavam para você?


– Lembro, meu senhor. O senhor também era extraordinariamente bonito. Pois foi ao senhor que dei minha beleza, meu ardor. Como pode se esquecer de uma coisa dessas?


– Ah! Tudo passa. Tudo se esquece.


– Tudo passa, mas não se esquece.


– Saia — ele disse, virando-se e indo até a janela. – Saia, por favor. E, tirando um lenço e apertando-o contra os olhos, acrescentou, atropelando as palavras: — Se Deus me perdoasse. Pois você, pelo visto, perdoou.
Ela se aproximou da porta e se deteve:


– Não, Nikolai Aleksêievitch, não perdoei. Já que a conversa tocou em nossos sentimentos, digo de forma direta: nunca pude perdoá-lo. Como não havia nada mais querido para mim no mundo naquela época, não houve também depois. Por isso não posso perdoá-lo. Bem, para que lembrar, os mortos não voltam da tumba.


– Sim, sim, não há por que, mande que tragam meus cavalos — ele respondeu, afastando-se da janela, já com rosto severo.


– Digo-lhe só uma coisa: nunca na vida fui feliz, por favor, não pense. Desculpe por, talvez, ferir seu amor próprio — amei minha esposa perdidamente. E ela me traiu, largou-me de forma ainda mais ultrajante do que fiz com você. O filho eu adorava – enquanto crescia, que esperanças nele eu não acalentava! Mas saiu um imprestável, esbanjador, descarado, sem coração, sem honra, sem consciência… Aliás, tudo isso também é uma história das mais


corriqueiras e vulgares. Fique com saúde, querida amiga. Acho que perdi em você a coisa mais preciosa que tive na vida.


Ela se aproximou e beijou-lhe as mãos, ele beijou as dela.


– Mande que tragam…


Enquanto seguia adiante, ele pensava, sombrio: “Sim, como era


encantadora! Uma beleza mágica!” Com vergonha lembrou-se de suas últimas palavras e de ter-lhe beijado a mão, e imediatamente envergonhou-se de sua vergonha. “Por acaso não é verdade que ela me deu os melhores minutos da vida?”


Ao poente, um sol pálido apareceu. O cocheiro tocava a trote curto, sempre trocando de trilha negra, escolhendo a menos lamacenta, e também pensava em algo. Por fim disse, com rudeza séria:


– E ela, Vossa Excelência, sempre olhava pela janela, conforme íamos embora. Na certa o senhor a conhece faz tempo?


– Faz tempo, Klim.


– Essa mulher é um poço de sabedoria. E dizem que está sempre enriquecendo. Empresta dinheiro a juros.


– Isso não quer dizer nada.


– Como não quer dizer? Quem não quer viver melhor? Se empresta com consciência, não tem nada de mau. E dizem que ela é justa nisso. Mas dura! Não pagou em tempo – a culpa é só sua.

– Sim, sim, a culpa é só sua… Apresse os cavalos, por favor, para não chegarmos atrasados no trem...


O sol baixo e amarelo reluzia sobre os campos vazios, os cavalos chapinhavam ritmadamente pelos prados. Ele olhava para as ferraduras a faiscar, unia as sobrancelhas negras, e pensava:


“Sim, a culpa é só sua. Sim, é claro, foram os melhores minutos. Não só melhores, mas verdadeiramente mágicos! 'Ao redor, a escarlate rosa silvestre florescia, erguiam-se as alamedas de tílias escuras...' [Alusão ao poema “Novela corriqueira”, de Nikolai Ogariov (1813-1877), que diz: “Perto florescia a escarlate rosa silvestre / Erguia-se a alameda de tílias escuras”.] Mas, meu Deus, como teria sido depois? O que, se não a tivesse largado? Que absurdo! Essa mesma Nadiejda, não como proprietária de uma hospedaria, mas minha esposa, patroa de minha casa de São Petersburgo, mãe de meus filhos?”


E, fechando os olhos, balançou a cabeça.


(20 de outubro de 1938)

 

“ALAMEDAS ESCURAS”
• Ivan Búnin
• Tradução: Irineu Franco Perpétuo
• Editora Ars et Vita
• 407 páginas
• R$ 80
• Lançamento: 17 de maio, às 19h, na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, BH)

 

Capa do livro

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