Uma história narrada em tempo presente, nascida da raiva da vontade de uma denúncia. Assim é “Água turva”, thriller da gaúcha Morgana Kretzmann. Vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura em 2020 com o romance de estreia “Ao pó” (Patuá) e formada em gestão ambiental, a escritora decidiu ambientar o seu segundo livro na região onde nasceu: noroeste do Rio Grande do Sul, na fronteira com a Argentina.
No Parque Estadual do Turvo fica o Yucumã, maior salto longitudinal de queda d’água do mundo, ameaçado no livro de ser engolido pela construção de uma hidrelétrica bancada por um partido enrolado por denúncias de corrupção. Qualquer semelhança com fatos ocorridos no Brasil nos últimos anos não é mera coincidência.
Em “Água turva” (Companhia das Letras), a realidade nacional bate à porta de uma trama ágil protagonizada por personagens femininas com “destinos traçados pelo sangue”, título de um dos capítulos. “É uma narrativa vigorosa que entrelaça o mundo político, familiar e a luta de uma comunidade”, aponta outro gaúcho, Jeferson Tenório (“O avesso da pele”), na apresentação do livro.
“Algumas editoras europeias viram ‘Água turva’ como uma literatura que denuncia crimes ambientais em um Brasil pouco conhecido”, conta a autora, revelando ainda que o romance será traduzido para o alemão, por uma das maiores casas editoriais da Europa, e para o francês. Kretzmann lançará “Água turva” em Belo Horizonte na próxima terça-feira, como convidada do projeto Sempre um Papo, na Biblioteca Pública Estadual, com entrada franca. Leia, a seguir, a entrevista da autora ao Estado de Minas sobre o livro e sobre a situação de seu estado.
Como nasce “Água turva”?
Nasce da raiva seguida da vontade de fazer uma denúncia. Depois de me formar em Gestão Ambiental por um Instituto Federal e escrever meu trabalho de conclusão justamente sobre a importância da Literatura na abordagem didático-pedagógica como forma de discutir e fazer pensar as questões ambientais mais urgentes, aquecimento global, recursos finitos e crimes ambientais, tivemos no Brasil um governo negacionista que flexibilizou a legislação e a regulação ambiental e com isso receberam apoio inúmeras ações ligadas a crimes contra a natureza. Foi também por esses motivos que surgiu “Água turva”.
O livro foi pesquisado e escrito ao longo de quatro anos, durante o mandato de um governo que atacou as pessoas que trabalhavam em prol do meio-ambiente. Não é à toa que os brutais assassinatos, praticados com requintes de crueldade, de Bruno Pereira e Dom Philips aconteceram nessa época.
Claro que também tenho uma questão afetiva com o lugar. A região do Parque Estadual do Turvo, no noroeste do Rio Grande do Sul, fronteira com a Argentina, é o local em que nasci, em que meus antepassados nasceram e viveram e minha família vive até hoje. E realmente houve – e ainda há – a tentativa de construção de uma hidrelétrica que iria deixar não só parte do Turvo debaixo d’água, como também o maior salto longitudinal de queda d’água do mundo: o Salto do Yucumã.
Em qual gênero literário acredita que o livro melhor se encaixa?
Escrevi “Água turva” querendo escrever um livro policial. Mas eu não tenho controle absoluto sobre o que vai nascendo no decorrer do processo criativo. Minha agente internacional e sua equipe chamaram de thriller ecológico, minha editora no Brasil, Stéphanie Roque e outras pessoas da equipe da Companhia das Letras gostaram do termo e passaram a usá-lo.
Eu o vejo como um livro que trata de questões políticas, sociais e ambientais numa linguagem de livro policial.
Um livreiro do Rio de Janeiro me disse se encaixar em literatura brasileira mesmo, outro aqui de São Paulo acha que se encaixa em realismo mágico, outro usou o termo suspense ambiental. Eu concordo com todas as opiniões.
O livro se passa em uma época no qual “as concessões para o desmonte ambiental no Brasil passaram a ser toleradas com o pretexto de mais empregos e progresso”. Como a realidade inspirou a sua ficção?
Sem tratar especificamente da realidade que cerca o projeto de hidrelétrica binacional que existe mesmo e se chama Garabi-Panambi, eu crio no livro um contexto de ficção e um projeto de nome fictício: Gran Roncador, que, como aconteceria na vida real, se um dia saísse do papel colocaria boa parte do Turvo debaixo d’água, assim como faria sumir o Salto do Yucumã da mesma forma como sumiram as Sete Quedas no Paraná, mas sem produzir nem um quinto da energia elétrica que a Itaipu produz.
Há também a realidade particular daquela região fronteiriça em que realmente acontece a caça ilegal de animais silvestres dentro do Parque. E, entre outros crimes, há também o descaminho de bebidas e artigos de luxo, como perfumes. Por isso a importância desses anos todos de pesquisa. Fui cinco vezes ao Parque do Turvo para entrevistar guardas-florestais, funcionários e moradores das proximidades.
Entrevistei funcionários do ICMBio e Ibama que trabalham em outras UC (unidades de conservação) do estado. Atravessei o rio Uruguai e fui para a Argentina conversar e entender as pessoas que do lado de lá do rio vivem do descaminho, do contrabando e de outras ações ilegais. Acompanhando os guardas-florestais, entrei no âmago do Parque do Turvo em busca de acampamentos de caçadores ilegais, de trepeiros (lugares de madeira, no alto das árvores, que caçadores ficam), cevas (armadilhas com comidas para matar os bichos).
Além disso tudo, há o fato do meu avô, Armin (que no livro eu coloco como filho de Sarampião, a figura mística de ‘Água turva’), ter vivido em uma casa ao lado do parque na década de 1950 até 1980, casa que ficava em uma pequena propriedade rural (ele era muito pobre, e lá não havia luz elétrica, nem água encanada e a casa era de chão batido).
Nas décadas de 1950 e 1960, ele, minha avó, minha mãe (filha mais velha deles) e alguns dos meus tios, algumas vezes, infelizmente, só conseguiam suprir a fome, depois de uma safra que não desse o suficiente para o sustento daquela família de oito pessoas, com a caça de algum animal do parque, como um porco do mato, por exemplo, que era dividido entre toda a comunidade que passava as mesmas necessidades naquele lugar esquecido pelo governo e políticos.
Sendo a fome maior do que qualquer compromisso de preservação de algumas espécies, naquela época, o crime de caça de animais silvestres nem sequer era discutido na região.
Apesar de alguns fatos reais terem inspirado o livro, principalmente pela pesquisa que fiz, a história toda foi criada, inventada por mim. É um livro de ficção, com personagens totalmente ficcionais e territorialidades ficcionais, como é o caso, por exemplo, da cidade de Dourado. Ela não existe na realidade. Eu a criei, criei suas ruas, sua geografia.
A título de curiosidade: as ruas da cidade de Dourado (no livro) vieram de uma pesquisa que fiz sobre os nomes de pássaros silvestres que só existem dentro do parque do Turvo, como a Viuvinha, nome de uma das avenidas no Água. Cheguei a desenhar um mapa da cidade inventada e suas ruas, a praça, o hotel, a entrada e a saída da cidade. Assim como o mapa do meu Parque do Turvo, que não tem a mesma conformação geográfica do Parque do Turvo real. A estrada e a cascata do Sarampião, por exemplo, eu também inventei. Assim como inventei a Vila do Turvo, a Cidade de Moconá e o território dos Pies Rubros do lado argentino.
Acredita que o Brasil não conhece o Brasil que aparece no livro?
Com certeza. Ainda temos um Brasil que precisa ser conhecido na sua profundidade, no sentido de sair do superficial, de só se conhecer as grandes cidades, a costa litorânea (o lado leste do país), as capitais.
Nossa história passa por esse Brasil profundo, minhas histórias e de tantas e tantos outros brasileiros passam por esse lugar, que é um lugar rico em cultura, diversidade, geografia, pessoas e seus desafios.
Tudo que sou, todo o meu trabalho, toda a matéria prima do que produzo como artista vem de lá, daquela região que, para muitos, é mística. Dos panapanás que se formam na estrada de chão batido e cascalho às comunidades que vivem no seu próprio tempo, pequenas cidades em que todos se conhecem pelo nome e sobrenome, onde as tragédias e as alegrias individuais são sentidas e compartilhadas por todos, tudo isso ainda é muito mágico.
Esse Brasil existe. Ele não está só em ‘Água turva’, ele está em várias outras pequenas cidades espalhadas por esse país continental. O Brasil das pequenas cidades, das comunidades rurais, das comunidades que vivem nas fronteiras, o Brasil de terra vermelha, amarela, roxa, que ainda é pouco descrito na ficção, é o Brasil que me interessa e, tenho certeza, interessa a muitas pessoas.
Como o curso de gestão ambiental contribuiu para a sua criação literária?
‘Água turva’ foi praticamente uma continuidade do meu trabalho de conclusão de curso. No meu TCC eu falo da importância da educação ambiental e dentro dela da importância da literatura como ferramenta didático-pedagógica no aprendizado sobre as questões ambientais mais urgentes que vivemos, como os recursos finitos, a crise e os crimes ambientais que assombram nosso país.
Acredito na literatura como instrumento de mudança do pensamento corrente, do senso comum, que pouco percebe a proximidade dos cataclismas, e, assim, ajudar a transformar nossa geração e com isso as gerações futuras. Acredito, insisto, na literatura como instrumentalização de uma consciência ecológica e climática que precisa começar a nascer em todos nós, acredito que a literatura possa trazer emoções relevantes e com elas o afeto por aquilo que precisamos preservar para preservar nossas vidas: o meio ambiente.
O que diferencia o parque do Turvo e a fez levá-lo para o seu romance?
O afeto que tenho por aquele chão; o pouco conhecimento que as pessoas têm daquele lugar; o Salto do Yucumã (o grande roncador que tudo engole); as histórias (reais ou não) que se passaram lá e as que ouvi dos meus avós e dos meus pais; as histórias que criei na minha cabeça e acreditei serem verdadeiras ainda menina, quando passava os finais de semana na casa dos meus avós, ao lado do parque; o rio Uruguai que banha aquele lugar; e ser o Turvo a primeira UC (unidade de conservação) criada no sul do Brasil; ser um lugar místico.
As personagens femininas têm o protagonismo do romance. Quem são essas mulheres e o que as une?
São três personagens muito diferentes entre si: Chaya, a guarda-florestal, quer defender o parque e o lugar que para ela é sagrado, pois ela acredita que Sarampião, seu bisavô e figura mística que desaparece dentro do Turvo logo no início da história, vive lá. Olga, a jornalista e assessora parlamentar quer se vingar dos homens poderosos que lhe causaram tanto mal no passado, além de ser o fio condutor da história, pois ela traz a notícia da tragédia ambiental que se aproxima e busca também por uma solução. Preta, prima de Chaya, é a líder do grupo Pies Rubros, um grupo de caçadores e contrabandistas que vive do lado argentino.
Preta é a personagem que mais gosto, ela faz o que tem de ser feito para defender e cuidar da sua comunidade, ela tem suas próprias regras. Dentro de sua vivência marginalizada, é ela quem decide o que é certo e errado. São três mulheres que tiveram problemas no passado, umas com as outras, e agora se unem para um bem maior: combater homens poderosos que querem construir uma hidrelétrica criminosa e acabar com a região em que elas nasceram e com os animais e a natureza que há nela. Nessa situação-limite, acaba nascendo algo grandioso entre elas, o verdadeiro amor entre três mulheres: a amizade incondicional.
Foi uma surpresa para você o que tem acontecido em seu estado nas últimas semanas?
Surpresa, não. Eu diria: tristeza, dor, revolta. A crise ambiental que vivemos há muitos anos é também uma crise política e social. Quando quase nenhum político, seja de esquerda, centro ou direita, vê como vantajosa a estratégia de falar e combater o aquecimento global, pois esse tipo de manifestação tira votos, percebemos que tragédias continuarão a surgir e os mais pobres serão os mais afetados e marginalizados. As perdas e fatalidades classi-climáticas (termo que trago no trabalho de conclusão de curso) seguem acontecendo com quem está vivendo em encostas, beiras de rios, morros, pequenas propriedades rurais e outros lugares.
Preconceito classi-climático é isso: direcionar a culpa à classe baixa, por viverem nesses lugares, não à desigualdade socioeconômica desumana que existe. Desigualdade essa que é também responsável pelo aquecimento global que continua crescendo para deixar alguns poucos mais ricos em cima de muitos pobres. Precisamos começar a discutir as questões ambientais como questões econômicas, como questões de saúde, como questões de educação. Se não houver urgência e seriedade, que também passa pelo campo político, não saberemos como prevenir e nem como salvar vidas nas próximas catástrofes que, por certo, virão.
O que mais a impressionou até agora? E o que mais a incomodou?
O que mais me incomoda ainda é o negacionismo climático de muitos, por isso volto a falar da importância da educação e da literatura como ferramenta de mudança de pensamento para essa a para as próximas gerações. É preciso nascer uma consciência ecológica e uma consciência climática que busque também combater a desigualdade classi-climática.
O que mais me incomoda são as fake news criadas por políticos e por pessoas que se dizem “de bem” que rezam para um Deus que jamais apoiaria esse tipo de discurso, que atacam, por exemplo, religiões de matrizes africanas do Rio Grande do Sul (temos no RS o maior número de terreiros do Brasil, são 65 mil) lhes imputando a culpa do que acontece lá nesse momento como se fosse um castigo divino do seu Deus, que para elas, dentro de um pensando fascista, é o único que importa.
O que mais me incomoda é a falta de políticas públicas voltadas a combater tragédias causadas pelo clima, principalmente para proteger o povo, os mais pobres (que são muitos no RS) e políticas públicas voltadas ao interior do Brasil, às comunidades rurais e pequenos agricultores destas localidades. A nossa salvação planetária passará por esses lugares e por essas pessoas, é o que acredito.
Sobre o que mais me impressionou até aqui, bem, foi justamente a força do único sentimento possível em relação ao povo gaúcho hoje: o sentimento de solidariedade que se espalhou por todo o Brasil. Não há nenhuma região que não esteja buscando ajudar aquele que hoje é um estado inteiramente devastado. Não foi uma cidade, uma região, foi o estado inteiro.
“Sempre um papo” com Morgana Kretzmann
Na próxima terça-feira (21/5), às 19h,na Biblioteca Pública Estadual, na Praça da Liberdade. Entrada franca.