Danielle Curi

Especial para o EM

 

“Conheço Lol V. Stein da única maneira que posso, através do amor. É em razão desse conhecimento que passei a acreditar nisto: dos múltiplos aspectos do baile de T. Beach, é o final que fascina Lol. É o momento preciso de seu fim, quando a aurora chega com uma brutalidade inacreditável e a separa do casal formado por Michael Richardson e Anne-Marie Stretter, para sempre, para sempre. Lol progride a cada dia na reconstituição desse instante. Consegue até mesmo captar um pouco de sua velocidade fulminante, estendê-la, cercar os segundos numa imobilidade de extrema fragilidade, mas que é, para ela, de uma graça infinita” (página 65).


Uma noite. Um baile. Uma dança. Na aurora, um grito. É Lola Valérie Stein, aquela que desde sua juventude parecia estar sempre longe do instante, escorrendo como água por entre as mãos daqueles que dela se aproximavam. Terna e indiferente ao mesmo tempo, sua história é contada/inventada por Jacques Hold, personagem que irá compor, a posteriori, na realização do gozo de Lol, o segundo triângulo amoroso para a constituição de seu ser-a-três.


No aclamado romance da francesa Marguerite Duras (autora de livros como “O amante”) e que chega ao Brasil em edição da mineira Relicário com texto de Jacques Lacan incluído no posfácio, Lol assiste sem sofrimento, atrás das plantas verdes do bar, seu noivo partir para sempre com a memorável dama de negro durassiana ao final do baile no cassino de T. Beach. Quando não mais consegue ver Anne-Marie Stretter e Michael Richardson, Lol cai no chão, inconsciente.


Nos dias que se seguem ao acontecimento, Lol, em seu quarto, sem sair em absoluto por algumas semanas, dirá sempre as mesmas coisas: “que o horário de verão enganava, que não era tarde” (p.40). A primeira vez que saiu, entretanto, foi à noite, sozinha, sem avisar, em um movimento errático que a levará ao encontro do músico Jean Bedford, seu futuro marido. Com ele, ela terá três filhos e, por dez anos, Lol manterá em uma ordem imutável a rigidez dos horários, da localização de todas as coisas, em sua nova casa em U. Bridge, local para o qual o casal se mudará.

 




De volta a S. Tahla, sua cidade natal, uma vez sua casa já pronta, também na mesma perfeição dos cuidados domésticos da habitação anterior, Lol, do seu jardim, nota, com certa familiaridade, a mulher que passara acompanhada de um homem e que pronunciara algumas palavras acerca do lugar. A partir daí e da cena do beijo promovida pelo casal diante de Lol escondida atrás de uma cerca-viva, ela inventa sair à rua. Enquanto caminha, com seu casaco cinza, vestido em tons escuros e um chapéu preto sem aba, acredita que sua visibilidade está preservada.


O olhar na dimensão de objeto a, em estado de objeto puro, como apontou o psicanalista francês Jacques Lacan em sua homenagem proferida a Marguerite Duras, levará Lol a fabricar esses amantes, agora na triangulação amorosa formada por Jacques Hold, Tatiana Karl – sua amiga de infância e seu duplo – e Lol V. Stein. Retomada a aproximação entre as duas, em um jantar oferecido em sua casa Lol admite, ao ser questionada por Tatiana, que o que ela queria na cena do baile de T. Beach era vê-los: aquele casal recém-formado por seu noivo à época, Michael Richardson, e a até então desconhecida Anne-Marie Stretter.


Com o consentimento de Jacques Hold, ele agora enredado no roteiro promovido pela jovem de S. Thala, o romance avançará para o enquadramento da cena no cinema de Lol V. Stein. Em um quarto de hotel, Tatiana, nua sob seus cabelos pretos, aparecendo sucessivamente na moldura da janela, com Jacques Hold dirigindo-lhe palavras de amor. Lol, com os olhos colados no frame iluminado, sozinha, deitada no campo de centeio localizado próximo ao hotel dos amantes, volta a respirar.

 


Quem é quem? O que vem antes ou depois? Aquele instante absoluto diluído no tempo; aquela noite eternizada na memória. No esquecimento. O primeiro dia como agora. As coisas tomando forma. O baile voltando à vida. Os três contidos na noite, nesse acontecimento, na felicidade de Lol V. Stein. Contudo, de volta a T. Beach, após o reconhecimento de todos aqueles lugares indeléveis, apenas Lol e Hold estão em uma cama de um quarto de hotel. Ela já não mais o reconhece. Ela duvida da identidade que parecia até então sustentar.


Pertencente ao chamado Ciclo Indiano da obra de Marguerite Duras, “O arrebatamento de Lol V. Stein” foi considerado pela autora como um momento de transição em seu trabalho. No romance que se tornou famoso entre os psicanalistas a partir da leitura entusiasmada de Lacan, é central o lugar ocupado pelo olhar, pela fantasia e pelo enlouquecimento da personagem que dá título ao livro. Na tentativa de resgatar algo do gozo uma vez experimentado, seguimos com a escritora os (des)caminhos de Lol através de seu passado, por fim, irrecuperável, a não ser momentaneamente, por onde algo aí se realiza, a realiza.


Retomados mais uma vez os temas propriamente durassianos, memória e esquecimento, paixão e desejo, fragilidade e loucura permeiam esta história que, sem dúvida, pode ser considerada uma das obras-primas da arrebatadora Duras.

 

 

Danielle Curi é psicanalista, doutora em Estudos Psicanalíticos pela UFMG, docente do Curso de Especialização em Saúde Mental do IEC/PUC Minas e conselheira editorial da revista Círculo de Giz.

 

Capa do livro "O arrebatamento de Lol V. Stein"

Reprodução

 

“Arrebatadora é Marguerite Duras, e nós, os arrebatados”
Jacques Lacan (1901-1981)
Sobre o livro da autora francesa

 

“O arrebatamento de Lol V. Stein”
• De Marguerite Duras
• Tradução de Adriana Lisboa
• Posfácio de Jacques Lacan
• Relicário Edições
• 244 páginas
• R$ 56

 

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