Adelaide Ivánova
“O xilindró”
Releitura de “O açúcar”, de Ferreira Gullar
O prédio cinza que abriga meu corpo
nesta manhã nesta cidade
não foi construído por mim
nem surgiu do chão por milagre.
Vejo-o robusto
e imponente ao olhar
quase como o corpo de Xerxes, meu Farol
na Barra, corpo
que me salva do escuro. Mas este prédio
não é para isso nem foi feito por mim.
Este prédio veio
de projetos de empreiteiras escusas, mas tampouco
o fez Sr. Ricaço,
dono da empresa.
Este prédio veio
de uma olaria distante
num estado pobre
e tampouco o fez o dono da olaria.
Este prédio é de tijolos
que vieram de olarias quentes
que não nascem por acaso
no regaço de Pindorama.
Vindos de cidades perto, porém longe, onde não há hospital,
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem
aos 27 anos empilharam e rebocaram os tijolos
que virariam este presídio.
Antes, em olarias calorentas,
outros homens de vida fria
e dura
produziram os tijolos
sem saber que virariam este prédio
que separa meu corpo da liberdade e que um dia pode vir a
separar o deles.
“Guaiamum”
Fio pra nascer tem que ter pai
Mas você que não tem pai
É fio de guaiamum
(Elino Julião)
O ciclo reprodutivo dos guaiamuns está
intimamente ligado às fases da lua
no período de desova as fêmeas emigram
até cinco quilômetros para o mar
eu que ando pra frente e tenho pernas de uns 80 cm
preciso de 70 minutos pra andar o mesmo percurso
a guaiamôa com suas perninhas bem menores
e andando de lado precisa de um a dois dias
Na época de desova a carapaça da guaiamôa muda de cor
é o jeitinho dela de dizer que tá pra jogo
a fertilização é poligênica e interna que ela não é otária
ela armazena e mantém depois da cópula
espermatozoides ativos em duas espermatecas
repito: ES-PER-MA-TE-CAS
sim, uma biblioteca sendo que de gala
que se comunicam com as duas gônadas
o que lhe permite fecundar os ovócitos
sem ter que perder tempo com macho
“Disidrose”
Apesar de todos os cuidados preventivos
sobriedade exercícios físicos terapia roupa de algodão vegetarianismo
as águas do meu corpo endoidam
e afluem como os rios
que vão dar no São Francisco
meu pé esquerdo virando foz
onde se encontram
Peleja aí bolhosa pororoca febril e inchada
implode em minigêiseres que me tiram o sono em desembestada coceira
e uma lista de paliativos que nunca curam só aliviam e às vezes nem isso
Com as pastinhas de cura-facada
colhidas no monturo me uno macambúzia à sabedoria de velhos caboclos
e garimpeiros
me rendo à toda sorte de meizinhas babosa gelada
canjica branca de fazer munguzá, fervida e, tal qual os bichos,
óleo de copaíba
Pomadas com ácido salicílico também ajudam além dos truques mecânicos
cortar a unha até o toco
gelo gelo de novo pinça
agulha álcool 70
pés pra cima e choro
Tudo que sou deixo de ser
pra me coçar, cachorra de rua,
metáfora
“Asma”
Releitura de um poema famoso
Essa terra tinha macaúbas,
Onde cantavam o vira-folhas, o tiriba-de-peito-cinza, o caburé pernambucano,
A choquinha-de-alagoas, o gavião-gato, Hoje extintos ou ameaçados.
Nosso céu tem mais estrelas? Não as vejo com a fumaça. Nossos bosques? Desmatados, Pro fabrico da cachaça.
Vou chiar, sozinha, à noite, Morrendo de falta de ar, Pois essa terra é latifúndio, Infinito canaviá.
Ilegais são as coivaras,
E a fumaça é de lascar; Vou chiar – do dia à noite – Morrendo de falta de ar Pois essa terra é latifúndio, Infinito canaviá.
Não permita Deus que eu morra, Antes que a zona volte a ser mata; Para que eu desfrute dos primores Sem usar bombinha de asma E volte a ver as macaúbas Onde houve a reforma agrária.
Sobre a autora e o livro
Nascida em Pernambuco, Adelaide Ivánova ganhou o Prêmio Rio de Literatura em 2018 com “O martelo”. “Asma” é sua estreia pela editora paulistana Nós com um livro que “parece ter sido escrito com um punhal lustrado com óleo de carnaúba, temperado no sereno das noites solitárias do Brasil”, afirma Luiz Antonio Simas, na apresentação. Nas palavras do editor da Nós, Schneider Carpeggiani, “Asma’ é um livro punk, intenso, que passa por referências gregas, pela cultura pop e vai até o cânone da literatura brasileira, fazendo menção a nomes já esquecidos da poesia e da prosa nordestina. Um livro de alguém que viveu o Nordeste dos anos 1990, do cólera, da dengue, do parafuso das universidades da era FHC, do mangue beat, mas não mais apenas como a ideia de ‘Da lama ao caos’, do Chico Science. ‘Asma’ é ‘Da lama ao queer’, como tem de ser, para lidar com os tempos que vivemos.”
“Asma”
•De Adelaide Ivánova
•Nós Editora
•200 páginas
•R$ 69