Kafka,  escritor tcheco

Kafka, escritor tcheco

Quinho

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraças e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos. – O que aconteceu comigo?” – pensou” .


Assim começa “A metamorfose”, obra-prima de Franz Kafka (3 de julho de 1883-3 de junho de 2024), uma das aberturas mais célebres de toda a literatura mundial. Pode ser interpretada como uma fábula realista sobre um homem solitário em busca de si mesmo e da incompreensão do mundo opressor à sua volta. O escritor tcheco, que morreu exatamente um mês antes de completar 41 anos, há um século, mudou os rumos da literatura no século 20 ao se multiplicar em protagonistas diversos em suas obras.


Kafka deixou narrativas referenciais em qualquer círculo literário além de “A metaformose”, como “O processo”, “O castelo”, “O veredito” e “Na colônica penal. Um exemplo inquestionável da sua influência vem de Gabriel García Márques (1927-2014). No livro-entrevista “Cheiro de goiaba” (1982), o escritor colombiano afirma: “Quando li aos dezessete anos 'A metamorfose', descobri que ia ser escritor. Ao ver que Gregor Samsa podia acordar uma manhã transformado num gigantesco escaravelho, disse para mim mesmo: 'Eu não sabia que se podia fazer isso. Mas se é assim, escrever me interessa. De repente, compreendi que existia na literatura outras possibiliades além das racionalistas e muito acadêmicas que tinha conhecido até então nos manuais do colégio. Era como se despojar de um cinto de castidade”.

 


García Márquez diz ainda: “Foi então que o romance começou a me interessar e decidi ler todos os romances importantes que tivesse sido escritos desde o começo da humanidade”. Com essa inspiração, ele escreveu obras memoráveis, como “Cem anos de solidão” e “Crônica de uma morte anunciada”, e se tornou um dos maiores escritores do século 20, inclusive ganhou o Nobel de Literatura em 1982.


“Crônica de uma morte anunciada”, por exemplo, também tem um início muito curioso e, como “A metamorfose”, apresenta o protagonista após uma noite de sono. “No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5 e meia da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava um bosque de grandes figueiras, onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sono, mas ao acordar sentiu-se completamente salpicado de cagada de pássaros”. A exemplo de Kafka, um início ousado de livro, neste caso, por contar ao leitor, logo na primeira linha, o destino do protagonista e mesmo assim mantê-lo preso à leitura.


VERBETE “KAFKIANO'


A influência de Kafka tornou-se tão grande a partir da terceira década do século 20 que o termo “kafkiano” virou adjetivo e verbete nos dicionários, como sinônimo de situações absurdas, incompreensíveis ou angustiantes relativas à condição humana. “A metaformose” forma com “O processo” e “O castelo”, uma espécie de trilogia do absurdo da literatura kafkiana. São suas três obras máximas sobre a opressão do indivíduo pela família (“A metamorfose”), pelo Estado (“O processo”) e pela sociedade em geral, na obra representada pela aristocracia e seus serviçais (“O castelo”).

 


Por outro lado, “A metaformose”, por exemplo, parece evidenciar as influências que Kafka recebeu de autores do século 19, como os russos Nicolai Gógol (1809-1852) e Fiódor Dostoiévski (1821-1881), este último autor de “Crime e castigo”, “Os irmãos Karamazov” e muitas outras obras importantes. Dostoiévski, inclusive, é citado várias vezes nos “Diários” de Kafka (lançados integralmente no Brasil pela editora Todavia, em 2021).


“A metamorfose” tem semelhanças com “O duplo”, a segunda obra de Dostoiésvski, que também trata de um funcionário oprimido pelo contraste entre a compreensão de si mesmo e do mundo. O início de “O duplo” – aparentemente – inspirou a criação de Gregor Samsa. Começa assim: “Faltava pouco para as oito da manhã quando o conselheiro titular Yákov Pietróvitch Golyádkin despertou de um longo sono, bocejou, espreguiçou-se e por fim abriu inteiramente os olhos. Aliás, ficou uns dois minutos deitado em sua cama, imóvel, como alguém que ainda não sabe direito se acordou ou continua dormindo, se tudo que está acontecendo a seu redor é de fato real ou uma continuação dos seus desordenados devaneios”.

 

Escultura representando a cabeça de Kafka, do escultor tcheco David Cerny, inaugurada em 2015, em Praga, terra natal do autor  de "A metamorfose", novela que completou  um século naquele ano

Escultura representando a cabeça de Kafka, do escultor tcheco David Cerny, inaugurada em 2015, em Praga, terra natal do autor de "A metamorfose", novela que completou um século naquele ano

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press - 27/8/2015


O CAIXEIRO-VIAJANTE


Escrita em 1912 e publicado em 1915, a novela “A metamorfose” conta a história do caixeiro-viajante Gregor Samsa, que tem um emprego que detesta, mas é obrigado a mantê-lo para sustentar o pai, a mãe e a irmã. A relevância da narrativa passa pela naturalidade e na forma explícita em que Kafka apresenta Gregor já como um inseto ao leitor, sem rodeios. Não se trata de história de terror nem de ficção científica, mas, sim, de criar metáfora – um inseto repugnante – para explicitar a exploração e a opressão da família sobre Gregor, que se sente maltratado e ofendido como um ser desprezível, algo que inquieta também o leitor.

 

 

Capa original das primeiras edições da novela "A metamorfose", uma das mais importantes da história da literatura

Capa original das primeiras edições da novela "A metamorfose", uma das mais importantes da história da literatura

reprodução


Outra naturalidade genial da obra é o fato de Gregor ficar mais preocupado por estar atrasado para o trabalho do que ter se transformado num inseto. Cabe ao leitor imaginar barata, besouro ou outro bicho qualquer. Gregor passa da condição de provedor da família a uma criatura confinada num pequeno quarto. É sufocado pelo pai tirano e pelo gerente que vai buscá-lo em casa para trabalhar, mas acaba perdendo o emprego e quando já não é mais útil para a família, é rejeitado e trancafiado e vai se esvaindo em sofrimento até o trágico desfecho. Qualquer semelhança entre Gregor não é mera coincidência com a vida do próprio Kafka, que também tinha um pai tirano e morreu de tuberculose num sanatório com apenas 40 anos.

 

CONHEÇA AS OBRAS DE KAFKA


“Descrição de uma luta” (1912)
“O veredicto” (1912)
“Contemplação” (1912)
“O foguista” (1913)
“A metamorfose” (1915)
“Um médico rural” (1918)
“Na colônia penal” (1919)
“Um artista da fome” (1922)
“A construção” (1923)
“Josefina, a cantora” (1924)
“O processo” (1925)
“O castelo” (1926)
“O desaparecido ou America” (1927)
“Diários” (1948)
“Carta ao pai” (1952)
“Cartas a Milena” (1952)
“Cartas a Felice” (1967)