Capa da HQ  de "O processo", adaptação do clássico homônimo de Kafka pelo escritor americano David Mairowitz e pela quadrinista francesa Chantal Montellier, lançada em 2014 pela  editora Veneta

Capa da HQ de "O processo", adaptação do clássico homônimo de Kafka pelo escritor americano David Mairowitz e pela quadrinista francesa Chantal Montellier, lançada em 2014 pela editora Veneta

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A fortuna crítica relativa a Franz Kafka (1883-1924) e suas obras é imensurável. E é sempre importante refletir sobre a vida e o trabalho do escritor tcheco, um dos maiores de toda a literatura universal, como paradigmas literário e existencial. Um motivo a mais é a passagem do centenário de sua morte, na próxima segunda-feira, 3 de junho. E um bom começo, literalmente, são as primeiras linhas de seus livros.

 

A exemplo de “A metamorfose” – Gregor Samsa se surpreende ao acordar numa certa manhã transformado num imenso inseto – os protagonistas das outras duas principais obras de Kafka – “O processo” e “O castelo”– também vivem um estranhamento logo no início das narrativas. O mundo habitual no entorno de Josef K. e de K. torna-se absurdo, opressor e inverossímel, características da vida e do trabalho de autor. Não é mero acaso a letra inicial para identificar o escritor e os seus protagonistas. Kafka se multiplica por meio dos seus personagens.


Assim começa “O processo”, obra inacabada e póstuma lançada em 1925: “Alguém devia ter caluniado Josef K., porque numa manhã o prenderam, embora ele não tivesse feito qualquer mal. A cozinheira da sua senhoria, a senhora Grubach, que todos os dias, pelas 8 horas da manhã, lhe trazia o pequeno almoço, desta vez não apareceu. (…) Ao mesmo tempo intrigado e cheio de fome, K. tocou a campainha. Neste momento bateram à porta, e um homem, que K. jamais vira na casa da senhora Grubach, entrou no quarto. (…) 'O senhor está preso'. 'Assim parece, disse K, e por que razão?'. 'Não é da nossa incumbência dar explicações. (…) Volte para o seu quarto e aguarde. O processo já está a correr, o senhor será informado de tudo na devida altura.'”

 


Acordado numa manhã qualquer e engolido pela opressão e pela burocracia do Estado, Josef K. jamais saberá o motivo de sua prisão e do seu processo. Sem esperança, oprimido e impotente, ele cai no conformismo que beira a culpa, outra característica do escritor tcheco, encontrada em “A metaformose” e “Na colônia penal”, também obra referencial do autor. Como Franz Kafka e Gregor Samsa, Josef K. passa a ter dificuldade em lidar com situações inexplicáveis diante de um périplo de inúmeras supostas autoridades. A compreensão foge do seu alcance e a angústia o consome até o desfecho mais absurdo ainda.


AGRIMENSOR BARRADO


Em “O castelo”, o estranhamento de K., protagonista, logo no início do livro, também assombra o leitor. A manhã sufocante de “A metamorfose” e de “O processo” dá lugar à noite sombria. Assim começa o livro: “Era tarde da noite quando K. chegou. A aldeia jazia na neve profunda. Da encosta não se via nada, névoa e escuridão a cercavam, nem mesmo o clarão mais fraco indicava o grande castelo. (…) Depois K. caminhou à procura de um lugar para passar a noite.

 

No albergue, as pessoas ainda estavam acordadas, o dono não tinha quarto para alugar, mas, extremamente surpreso e perturbado com o hóspede retardatário, propôs deixá-lo dormir sobre um saco de palha na sala e K. concordou. (...) Mas pouco tempo depois já foi despertado. Um jovem, em trajes de cidade, rosto de ator, olhos estreitos, sobrancelhas fortes, encontrava-se ao seu lado com o dono do albergue. O jovem desculpou-se muito cortesmente por ter acordado K., apresentou-se como filho do castelão e depois disse: 'Esta aldeia é propriedade do castelo, quem fica ou pernoita aqui de certa forma fica ou pernoita no castelo. Ninguém pode fazer isso sem permissão do conde. Mas o senhor não tem essa permissão'”.

 


Novamente, a opressão sem motivo. K. é um agrimensor – mas mesmo sua profissão é duvidosa no livro – que chega a uma aldeia coberta de neve em busca de um castelo para trabalhar a serviço encomendado pelo conde. Mas nunca conseguirá chegar lá porque os serviçais do entorno não permitirão. Nada sabem, apenas não pode. E assim K. será oprimido.


INSATISFAÇÃO NA “CARTA AO PAI”


A analogia – ou as analogias – entre a vida e as obras de Kafka não param por aí. “Carta ao pai” é outro trabalho significativo do escritor tcheco. Entre 10 e 19 de novembro de 1919, aos 36 anos, insatisfeito com a recepção do seu pai – o comerciante judeu Hermann Kafka – ao anúncio de seu noivado com Julie Wohryzek, Kafka escreveu longa carta com mais de cem páginas manuscritas e que nunca enviou. Ele faz um ajuste de contas com o pai tirano de sua infância e de sua vida adulta, que, inclusive, nunca aceitou sua verve literária.


Sobre essa longa carta, o escritor e professor Modesto Carone (1937-2019), o mais respeitado tradutor das obras de Kafka para a língua portuguesa, escreveu: Não deixa de ser surpreendente que o escritor, cinco anos antes de morrer, tenha investido tanta energia num acerto de contas com o pai despótico. A surpresa aumenta quando se recorda que, a essa altura da vida, ele já era o autor maduro de algumas obras-primas da literatura universal, como 'A metamorfose' e 'O processo'. Kafka diz ao pai num trecho da carta: “Meus escritos tratavam de você, neles eu expunha as queixas que eu não podia fazer no seu peito”.

 


Carone fala então da analogia entre a tirania do pai e dos burocratas do Estado. “...Em última instância, a ficção de Kafka passa pela figura do pai e do tirano para chegar à falta de liberdade objetiva do mundo administrado. Não é sem razão que Walter Benjamin [pensador alemão] num ensaio de 1934 sobre Kafka vê irmanados na sua obra pais e burocratas. 'O pai', diz Benjamin, 'é a figura que pune. A culpa o atrai, como atrai os funcionários da Justiça. Há muitos indícios de que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são idênticos em Kafka. Essa semelhança não os honra, ela é feita de estupidez, humilhação e imundície'”.


“DA SUA POLTRONA VOCÊ REGIA O MUNDO”


Modesto Carone afirma também: “O próprio Kafka não deixa por menos quando na análise fina e feroz que faz do pai diz: 'Da sua poltrona você regia o mundo. Sua opinião era certa, todas as outras, disparatadas, extravagantes (…) Você assumiu para mim o que há de enigmático em todos os tiranos cujo direito está fundado, não no pensamento, mas na própria pessoa'”.

 

Carone, então, arremata: “Diante disso, é negligência não lembrar das autoridades intangíveis e arbitrárias que infernam a vida de Josef K. em 'O processo', dos Klamm e Momus, que minam, com desdém ou chicana, a segurança e identidade de K. em 'O castelo' (…). O famoso pai Samsa que vai aniquilando, com bengaladas, bombardeios de maçã e confinamento, a triste esperança de Gregor na sua sobrevivência como inseto daninho, designação dada por Kafka ao herói de 'A metamorfose', que aparece duas vezes em 'Carta ao pai', proferida pelo pai.”


Carone inclui nesse rol também o protagonista de “O veredicto” – mais um obra importante de Kafka – Georg Bendemann, que tem um pai vingativo que o condena à morte por afogamento. Em síntese, todo leitor das obras de Kafka acabará chegando à similaridade entre pai e mundo opressor na vida tormentosa do escritor.

 

CONHEÇA AS OBRAS DE KAFKA


“Descrição de uma luta” (1912)
“O veredicto” (1912)
“Contemplação” (1912)
“O foguista” (1913)
“A metamorfose” (1915)
“Um médico rural” (1918)
“Na colônia penal” (1919)
“Um artista da fome” (1922)
“A construção” (1923)
“Josefina, a cantora” (1924)
“O processo” (1925)
“O castelo” (1926)
“O desaparecido ou America” (1927)
“Diários” (1948)
“Carta ao pai” (1952)
“Cartas a Milena” (1952)
“Cartas a Felice” (1967)