Museu dedicado a Franz Kafka em Praga, capital da República Tcheca, e onde o escritor nasceu em 3 de julho de 1881
 -  (crédito: ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A.PRESS)

Museu dedicado a Franz Kafka em Praga, capital da República Tcheca, e onde o escritor nasceu em 3 de julho de 1881

crédito: ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A.PRESS

“Os escritos de Kafka não deixavam margem para dúvidas: ele era um dos homens mais solitários e, ao mesmo tempo, mais desesperadamente inconformados com a solidão que já existiram”. A análise é do filósofo Leandro Konder (1936-2014), autor de uma pequena e eficiente biografia (“Franz Kafka – Vida e obra”, da editora Paz e Terra – 1974) sobre o escritor tcheco, na qual ele também afirma: “Por sua sinceridade, por sua seriedade, essa confissão da criação literária de Kafka pode ser comparada à confissão religiosa. E é ele próprio quem diz a Max Brod [seu melhor amigo]: “Escrever é uma forma de rezar”.


Kafka passou a vida toda com saúde frágil, atormentado por insônia e dores de cabeça frequentes até o fim precoce, vitimado pela turberculose num sanatório na cidade de Kierling, na Áustria. Foi a literatura que fez chegar até os dias de hoje, um século após a sua morte, a complexidade de sua mente e a genialidade de suas obras que fazem dele quase um ícone pop, mesmo não lido e não compreendido por muitos que se referem ao seu mundo. Tudo foi sempre difícil na vida do homem e do escritor tcheco.


O escritor nasceu em 3 de julho de 1883, em Praga – hoje República Tcheca –, cidade então integrada ao Império Austro-Húngaro, numa família de judeus. Foi o primeiro dos seis filhos de Hermann e Julia Kafka. Os dois irmãos dele morreram ainda crianças. As três irmãs sobreviveram até o Holocausto nazista, quando foram assassinadas por serem judias.


O pai de Kafka, Hermann, era comerciante e tinha conduta autoritária com a família e os empregados que se estendeu por toda a vida de Kafka e deixou marcas profundas. A língua falada na família era o alemão, que junto à condição de judeu, acabou dificultando a aproximação de Franz com os moradores de Praga, que falavam predominantemente o tcheco. O Império Austro-Húngaro dominava vasta região da Europa e tinha Viena como centro do poder, sob a monarquia dos Habsburgos. Aristocratas, banqueiros, professores e burocratas com cargos mais elevados falavam alemão em Praga, enquanto a pequena burguesia e as camadas mais pobres da população falavam tcheco.

 


Na década de 1890, por exemplo, houve manifestações nas ruas de Praga contra o domínio de Viena e contra os judeus. Como a família de Kafka pertencia a setores minoritários da população da cidade, havia adotado o alemão como língua e era judia, acabou se tornando “minoria dentro da minoria” perante a maioria da população, observa Leandro Konder. Essa dura realidade pesou muito na formação e no legado de Kafka. Ainda hoje, embora sua obra tenha reconhecimento mundial, não é reverenciada em sua terra natal com deveria, apesar da existência de um museu e outras homenagens póstumas na cidade.


Kafka estudou em escolas alemãs, chegou a se formar em direito, mas sua vocação era mesmo a literatura, o que causava grande contrariedade ao pai. Por essa época, chegou a escrever peças teatrais, que acabaram se perdendo. “O essencial para Franz é a literatura. E ele não admite que a sua atividade literária se misture com as matérias do currículo universitário, como não admitirá, anos depois, que a sua atividade literária se misture com o seu ganha-pão, com o trabalho cotidiano na empresa comercial do pai ou no instituto de seguro operário contra acidentes de trabalho”, lembra Konder.


A paixão pela literatura o levou a fazer alguns amigos na universidade, entre eles Max Brod, a quem Kafka pediu que destruísse suas obras após sua morte. Felizmente, Brod não cumpriu a promessa e publicou-as a partir de 1924. Mesmo assim, muitas outras obras foram destruídas pelo próprio Kafka ou se perderam. Essas poucas amizades aplacavam sua vida solitária. A solidão sempre foi constante em sua vida, como comprovam seus diários.

 


As circunstâncias de sua vida, o pai autoritário, a língua alemã – ele sempre escreveu em alemão, não em tcheco –, e o antissemitismo à sua volta parecem ter potencializado sua solidão. E mesmo entre os judeus, como não era frequentador de sinagogas, ficava isolado, distante de um deus para crer. Em seus diários, inclusive, ele cita “os demônios” que o atormentam.


Outro fator preponderante que influenciou inclusive as obras de Kafka, como “O processo” e o “O castelo”, foi a burocracia misturada ao autoritarismo, caso do Império Austro-Húngaro, em que as pessoas eram tratadas como fichas ou números, caso do instituto de seguro operário onde Kafka trabalhava. O pai e o Estado (monarquia) opressores fomentaram a solidão e, por consequência, a literatura de Kafka.


OS AMORES PERDIDOS


Durante sua curta vida de 41 anos incompletos, morando sozinho, confinado a quartos – também marcantes em suas obras, como Gregor Samsa em “A metamorfose”, Kafka, entre amores furtivos, teve três grandes paixões: Felice Bauer, Julia Wohryzek e Milena Jesenski. Mas esses relacionamentos nunca evoluíram para uma relação satisfatória, foram engolidos pela solidão e pela incapacidade dele de encontrar a felicidade numa vida a dois, embora sempre aspirada, como demonstram seus diários.


A culpa por essa impotência fustigava o escritor. Em 17 de janeiro de 1915, ele escreveu em seu diário: No sábado, vou ver F[elice]. Se ela me ama, eu não o mereço. Creio compreender hoje como são estreitos os meus limites, em tudo, e, por consequência, também na escrita. Quando alguém reconhece seus limites com tanta intensidade, só pode explodir.”

 


Outro exemplo é de sete anos depois, em 21 de janeiro de 1922, já aos 39 anos, Kafka escreveu em seus diários: “Sem antepassados, sem casamento, sem antecedentes e com uma vontade louca de desfrutar de antepassados, de um casamento, de descendentes. Todos estendem-me a mão – os antepassados, o casamento, os descendentes – mas sua mão está longe demais para mim.”


Cabe aqui citar algumas correspondências para Milena, por quem ele se apaixonou após ela traduzir contos do escritor do alemão para o tcheco. Ele era noivo de Julia e Milena era casada, o que inviabilizava a relação. As correspondências reunidas no livro “Cartas a Milena”, com diversas traduções portuguesas, são emblemáticas.


Durante temporada em Merano, na Itália, Kafka escreveu a Milena, em 4 de junho de 1920: “Ao anoitecer de hoje, fiz uma longa caminhada sozinho. Pela primeira vez, na verdade. Sempre fui com outras pessoas ou, na maoria das vezes, fiquei em casa descansando. Que campo, Deus do céu, Milena, se você estivesse aqui, junto de minha mente lamentável e irracional. E eu ainda estaria mentindo se dissesse que sentiria sua falta. É a magia mais perfeita e dolorosa de todas. Você está aqui, assim como eu, e ainda mais. Onde quer que eu esteja, você também estará lá, de maneira ainda mais intensa. Isso não é uma piada, de vez em quando, imagino que você realmente está aqui, sentindo minha falta, perguntando: 'Onde ele pode estar? Ele não escreveu que está em Merano?


Sete dias depois, ele também escreveu a Milena: “Quando será que este caótico mundo encontrará equilíbrio? Sinto-me esgotado durante o dia; há ruínas lindas espalhadas por toda parte nas montanhas daqui. Elas me fazem refletir sobre a necessidade de encontrar beleza em mim. Mas, à noite, quando deveria estar descansando, é quando as melhores ideias me visitam.”


E também em 13 de junho de 1920: “...Gostaria de me ajoelhar perante essas cartas, feliz além da conta; elas trazem chuva para acalmar a minha mente em chamas. Contudo, sempre que outras cartas chegam, Milena, mesmo que elas sejam essencialmente mais auspíciosas do que as primeiras (…) eu literalmente começo a tremer como se estivesse debaixo de um relógio a despertas. Eu não consigo lê-las, e, no entanto, eu as leio, como um animal sedento bebe água, e então o medo chega e se multiplica. Eu procuro um lugal para me esconder debaixo, tremendo, completamente alheio ao mundo, rezando para que você voe de volta para fora da janela da mesma forma que entrou furiosa em sua carta. Afinal de contas, eu não posso manter uma tempestade dentro do meu quarto; nessas cartas, você mostra ter a formidável cabeça de uma Medusa, com as serpentes do terror se agitando selvagemente ao seu redor, enquanto as serpentes do medo se agitam ainda mais freneticamente ao redor de mim. Após a morte de Kafka em 1924, Milena, que morreria num campo de concentração em 1944, lhe dedicou o seguinte obituário: “...Ele era tímido, angustiado, sereno e bom, mas escreveu livros terríveis e dolorosos. Ele via o mundo cheio de demônios invisíveis, que aniquilavam e despedaçavam a pessoa indefesa. Ele era perspicaz demais, sábio demais para poder viver e fraco demais para lutar com a fraqueza das pessoas nobres e belas que evitam a luta não por medo de desentendimentos, indelicadeza e mentira espiritual – embora saibam de antemão que são impotentes e que se submetem assim para expor o vencedor...”


PRINCIPAIS OBRAS DE FRANZ KAFKA

 

“A METAMORFOSE”

A mais célebre novela de Franz Kafka e uma das mais importantes da história da literatura foi escrita em 1912 e publicada em 1915. Conta a história de Gregor Samsa, um caixeiro-viajante que acorda transformado num inseto gigante. O autor tcheco faz uma curiosa e intrigante metáfora sobre um homem desajustado e incompreendido pelo pai tirano, pela família e pelo mundo à sua volta e acaba confinado em seu quarto.

 

Capa do livro "O PROCESSO"

Capa do livro "O PROCESSO"

Reprodução

 

“O PROCESSO”

Um dos maiores clássicos da literatura universal, narra o drama de Josef K., que ao acordar no dia em que completa 30 anos, em vez do café da manhã, é preso e submetido a um longo processo burocrático sem nunca saber a razão. É um livro inacabado, escrito em 1914/15, que foi editado e publicado em 1925 por Max Brod, amigo de Kafka, um ano após a morte do escritor. Uma crítica contundente ao Estado opressor e burocrático que neutraliza o livre-arbítrio do cidadão.

 

 

Capa do livro "O CASTELO"

Capa do livro "O CASTELO"

Reprodução

“O CASTELO”

O protagonista, K., chega a um castelo numa aldeia distante, numa noite sombria, para assumir os serviços de agrimensor. Mas logo é barrado na hospedaria por funcionários subalternos e se envolve numa série de dificuldades para tentar contato com o senhorio. Obra célebre e intrigante de Kafka sobre burocracia, dificuldades com autoridade e impotência do homem comum diante de um mundo intransponível. Obra inacabada e póstuma escrita em 1922 e publicada em 1926.

 

 

Capa do livro "CARTA AO PAI"

Capa do livro "CARTA AO PAI"

Reprodução

“CARTA AO PAI”

Indignado com o autoritarismo e os desmandos do pai, o comerciante Hermann, e também com a recusa dele em aceitar o seu noivado, Kafka escreveu, entre 10 e 19 de novembro de 1919, uma extensa carta de mais de 100 páginas que nunca enviou. Massacrado pela arbitrariedade paterna desde a infância, o escritor faz um triste e contundente acerto de contas com o pai.

 

Capa do livro "O VEREDICTO"

Capa do livro "O VEREDICTO"

Reprodução

 

“O VEREDICTO”

Escrita entre as 22h de 22 de setembro e as 6h de 23 de setembro de 1912, a novela apresenta o eterno conflito entre pai e filho tão marcante nas narrativas de Kafka. O protagonista é Georg Bendeman, que está para se casar e mantém correspondência com um amigo na Rússia enquanto se encaminha para um destino sem retorno. Foi dedicada a Felice Bauer, a primeira grande paixão e a primeira das três noivas de Kafka.

 

Capa do livro "NA COLÔNIA PENAL"

Capa do livro "NA COLÔNIA PENAL"

Reprodução

 

“NA COLÔNIA PENAL”

Escrita em 1914 e publicada em 1919, a novela explora um tema caro a Kafka, o Estado opressor sobre o indivíduo. Um viajante chega a uma colônia penal e presencia a execução da pena de um soldado preso a um bizarro aparelho de tortura que escreve lentamente sobre a pele dele, com agulhas de ferro, a sentença inexplicada.

 

“UM ARTISTA DA FOME”

Publicada em 1922, a obra apresenta um jejuador profissional que ganha a vida se exibindo para o público sem se alimentar. Após 40 dias, ele é obrigado a interromper seu jejum por falta de plateia. Sob desconfiança de se alimentar escondidoe sem novos espectadores, ele se definha confinado numa jaula, frustrado, porque, afinal, considera que não faz sacrifício com o jejum, já que nenhuma comida o satisfaz.

 

Capa do livro "CONTEMPLAÇÃO"

"Capa do livro "CONTEMPLAÇÃO"

Reprodução

 

“CONTEMPLAÇÃO”

Estreia literária de Kafka, de 1912, apresenta 18 histórias curtas sobre cotidianos diversos que já prenunciam o conteúdo das futuras grandes obras do autor, como conflitos existenciais, solidão, opressão, rejeição e devaneios. A naturalização da imponderável – ou do absurdo – se manifesta ainda de forma amena em relação a “O processo” e “Na colônia penal”, por exemplo.