ENTREViSTA / SERGIO TELLAROLI * Tradutor de “Diários” de Kafka

 

Entrada do museu dedicado a Franz Kafka, em Praga, na República Tcheca, exibe a letra inicial gigante do seu nome

Entrada do museu dedicado a Franz Kafka, em Praga, na República Tcheca, exibe a letra inicial gigante do seu nome

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press - 27/8/2015

 

Por que Kafka é um dos maiores escritores da literatura universal. Seria pelos temas atemporais, como as limitações da condição humana, a solidão, a busca de si mesmo num mundo caótico...?


Com certeza, todos esses fatores contribuem, mas a resposta curta é: pura e simplesmente, por sua qualidade literária, pelo tratamento literário que dá a esses tópicos. O fato de estarmos hoje, em 2024, “celebrando” os cem anos da morte de Kafka atesta o interesse e o fascínio que sua obra segue despertando mundo todo. Só a grande literatura é capaz disso. E estamos falando de alguém que, na prática, publicou “apenas” quarenta textos em vida, basicamente em quatro volumes de contos: “Contemplação”, “Na colônia penal”, “Um médico rural” e “Um artista da fome”. Kafka é conhecido e reverenciado sobretudo por seus três romances (“O processo”, “O castelo” e “O desaparecido/América”), mas a verdade é que não concluiu nenhum deles.

 

“O processo parece ter começo, meio e fim, mas sua ordenação em capítulos (por vezes contestada) se deve a Max Brod; não temos como saber como seria de fato o romance, se Kafka o tivesse terminado e ordenado ele mesmo. “O castelo” não tem um desfecho: é interrompido abruptamente. E “O desaparecido” é o mais fragmentário dos três; quase não se pode dizer que tenha um “meio” plenamente desenvolvido, e com certeza não tem uma conclusão. Ainda assim, Kafka segue sendo estudado, traduzido e publicado por toda parte, cem anos depois de sua morte.

 

É imensa a fortuna crítica que, sobretudo a partir da década de 1950, gira em torno de sua obra. E, no contexto brasileiro, vale lembrar que 2024 marca também os quarenta anos da publicação, em 1984, da primeira tradução de Modesto Carone, ainda pela Brasiliense. Kafka, no Brasil, é Carone, e nisso tivemos muita sorte: podemos lê-lo há quarenta anos em traduções primorosas de um dos maiores tradutores que este país já teve.

 


Gabriel García Márquez disse que descobriu que seria escritor quando leu “A metamorfose”. Você identifica outro grande autor que teve influência notória de Kafka? Albert Camus?


Com certeza, comprei uma edição portuguesa de “O mito de Sísifo” por causa de Kafka. É definitivamente “kafkiano”, como se diz. Acho difícil apontar um autor específico. Kafka influencia a literatura universal desde (pelo menos) a década de 1950, quando ficou mais conhecido. Há de ter influenciado (e seguir influenciando) muito mais gente, além de Camus.

 

E, mais do que isso, Kafka já existia antes de Kafka, como nos ensina Jorge Luis Borges num ensaio curto e brilhante de 1951: “Kafka e seus precursores”. Resumindo muito, Borges nos diz que a presença de Kafka na literatura nos faz reler a literatura de épocas anteriores à luz de seus escritos, e aponta, por exemplo, desde o paradoxo de Zenão até Kierkegaard como “kafkianos”, passando por um prosador chinês do século 9. “O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro”. (“Outras inquisições”. São Paulo: Globo, 2000, tradução. de Sérgio Molina.)


Existe algum outro parâmetro na literatura forte e significativo como o termo “kafkiano”, tão emblemático que virou adjetivo e verbete, para exemplificar situações absurdas?


Nesse sentido, não creio, mas, convenhamos: balzaquiano, proustiano e machadiano, entre outros, também são adjetivos de peso (em outros contextos, claro). O Houaiss define kafkiano como aquilo “que, de forma semelhante à obra de Kafka, evoca uma atmosfera de pesadelo, de absurdo, especialmente. em um contexto burocrático que escapa a qualquer lógica ou racionalidade (diz-se de situação, obra artística, narração etc.)”. A atmosfera de pesadelo e a relação com a burocracia absurda predominam nesse sentido, e há motivos para tanto.

 

Mas kafkiano, para mim, é, antes de mais nada, aquilo que Modesto Carone (creio) chamou de “labirinto analítico”. E esse “labirinto” não tem, em si, nada de absurdo, pelo contrário: é o raciocínio (aparentemente) lógico elevado à última potência por meio da linguagem — por vezes, numa espécie de poderoso zoom, que, focando no detalhe, enreda o leitor e impede a visão do todo. Isso está presente em Kafka desde “As árvores”, um dos textos de “Contemplação” (um texto de 1903-04 em que algo é declarado aparente, mas apenas para, em seguida, essa qualificação ser caracterizada, também ela, como mera aparência, o que nos conduz de volta ao ponto de partida), até “A construção”, de 1923/24 (em que um bicho declara sua toca absolutamente segura, mas acaba por destruí-la com base em argumentações de lógica cristalina, mas, ao que tudo indica, muito provavelmente falsa).

 

Esse movimento constante de negar uma afirmação, negar sua negação, a negação da negação e assim por diante é que é, para mim, tipicamente kafkiano. Alguns dos textos de Kafka em “Contemplação”, por exemplo, enumeram premissas para que algo se dê, soam como teoremas ou enunciados de alguma verdade universal. Que as premissas sejam falsas e não as percebamos assim é parte da genialidade da escrita kafkiana, do uso que Kafka faz da linguagem, um uso, aliás, em nada transgressor. E há um parentesco entre isso e alguém que, já no primeiro parágrafo de uma narrativa, acorda de sonhos intranquilos transformado num inseto monstruoso.

 

Acreditamos, achamos normal. O pacto inerente à leitura talvez explique: quando lemos, predispomo-nos a acreditar no que estamos lendo. (Afinal, não contestamos as fábulas, não é?) E achamos normal também que um bicho (vivendo numa toca) tenha uma capacidade de raciocínio muito superior a 99,99% dos leitores de “A construção”. O curioso é que ninguém acha isso tão “absurdo” quanto a transformação de Gregor Samsa num inseto. (De resto, há outros animais protagonistas nos contos de Kafka.)

 


Como foi traduzir “Diários” e qual a relação com as obras de Kafka?


É importante ressaltar a diferença entre a escrita de um diário, que é uma conversa consigo mesmo não destinada a nenhum outro leitor ou interlocutor, e a escrita literária, que possui um código e regras próprias. Essa diferença é patente nos “Diários” de Kafka.

 

Quando fala de si mesmo, de suas reflexões e ações cotidianas, Kafka não é necessariamente claro, não tem (nem há de estar interessado em ter) controle efetivo sobre a escrita, que muitas vezes segue apenas o ritmo do pensamento (e das dúvidas e hesitações que lhe são típicas); quando, porém, se propõe a fazer literatura (nos esboços literários), é um mestre — o Kafka que conhecemos de suas obras. Essa transição do registro cotidiano para o literário é fascinante nos “Diários”.


Em 8 de dezembro de 1911, Kafka escreveu: “Sinto agora, como já sentia à tarde, um grande desejo de, pela via da escrita, arrancar de mim todo esse meu estado angustiante e, da mesma forma, como ele vem de minhas profundezas, registrá-lo nas profundezas do papel, ou de registrá-lo de uma maneira que ele possa abarcar em mim todo o escrito. Não se trata de um desejo artístico.” A impressão que a gente tem é que se não fosse a literatura, Kafka não teria vivido nem os seus curtos quase 41 anos. Kafka era um solitário irremediável. Em 21 de julho de 2013, ele escreve: “Preciso passar muito tempo sozinho. Tudo que consegui foi mérito tão somente dessa solidão”. Afinal, como leitor e tradutor de Kafka, você diria que a solidão dele seria a redenção pela literatura? Ou a solidão seria pelo sofrimento com os noivados frustrados?


Difícil dizer o que teria sido de Kafka sem a escrita. Que precisava escrever, não há dúvida, assim como ele não deixa dúvida sobre como o angustiava não dispor do tempo necessário (ou de tempo suficiente) para fazê-lo, seja por problemas familiares ou pelo trabalho como advogado. Aí está a relação da solidão com a literatura. Sozinho em seu quarto, Kafka produziu, numa única noite em claro, “O veredicto”, a única de suas obras a que ele se refere favoravelmente.

 

“Esse conto, “O veredicto”, eu o escrevi na noite de 22 para 23, de uma vez só, das dez da noite às seis da manhã.” (...) Somente assim é possível escrever (...)” (Diários, 23/9/1912, p. 259). Talvez isso explique por que ele não conseguiu concluir os romances. Toda escrita demanda um ritmo (de trabalho) que qualquer interrupção mais prolongada perturba terrivelmente, quando não arruína. E Kafka não dispunha desse tempo para escrever “de uma vez só”. Nesse contexto, a solidão se torna uma bênção (embora eu não possa dizer que Kafka fosse um “solitário irremediável”. Os “Diários” dão testemunho de sua vida social e do convívio com amigos ou com outras pessoas nos cafés de Praga, por exemplo).

 


Na sua opinião, pode-se dizer que “A metamorfose”, “O processo” e “O castelo” formam uma espécie de trilogia do absurdo sobre o homem comum oprimido, respectivamente, pelo pai/família (Gregor Samsa), pelo Estado (Joseph K.) e pela sociedade (K.), no caso a aristocracia e seus serviçais?


Eu não concordo muito com o adjetivo “absurdo” quando se trata de Kafka. Não há propriamente (ou necessariamente) absurdo em seus textos. O que há, por vezes, é até hiper-realismo. Muito já se escreveu sobre os últimos momentos do Império Austro-Húngaro ou sobre a condição de judeu falante do alemão em Praga como elementos muito importantes para contextualizar a obra de Kafka. Isso, claro, está correto e responde por parte daquilo que é habitualmente sentido como “absurdo” (e que, no caso do Império Austro-Húngaro, talvez seja mera descrição da realidade — algo que, convenhamos, nós, em nossa realidade brasileira, conhecemos bem).

 

Mas, no caso de “A metamorfose” e de “O processo”, há um outro elemento, mais aparentado à “lógica” à qual me referi antes. Da primeira vez que li “A metamorfose” (e falo agora como mero leitor), senti pena de Gregor Samsa. Da segunda, vi-me perguntando: será que, dada sua posição na família, ele já não era um “inseto” muito antes de a narrativa começar e, portanto, de acordar de seus sonhos intranquilos? (Há muito humor em Kafka, embora não pareça.) E em “O processo”, Josef K. crê que vai provar sua inocência valendo-se, digamos, dos mesmos meios e do mesmo discurso da instância (superior) que mandou prendê-lo já no parágrafo de abertura da narrativa.

 

Samsa e Josef K. me parecem condenados de antemão. Mas mergulham (ou estão mergulhados) na lógica que os condenou. Nos “Diários”, encontramos uma revelação curiosa: “Romann e K., o inocente e o culpado, ambos por fim punidos indistintamente com a morte; o inocente, com mão mais leve, antes posto de lado que abatido” (“Diários”, p. 440). Também o destino do jovem Karl Romann, o protagonista de “O desaparecido”, estava, portanto, selado (como o de Josef K.), embora Kafka não tenha tido tempo ou condição de explicitá-lo ao leitor, porque não terminou de escrever o romance.

 

 

Para concluir, volto ainda uma vez ao raciocínio lógico intensificado pela linguagem. Numa carta interessantíssima que enviou a Gershom Scholem em junho de 1938, Walter Benjamin cita um longo parágrafo em que um físico, num discurso puramente lógico, descreve o ato de cruzar a porta de seu quarto. “Estou de pé na soleira da porta, prestes a entrar em meu quarto. É uma empreitada complexa”, principia o parágrafo. E o texto põe-se a descrever os fenômenos físicos que dificultam essa empreitada aparentemente banal (a pressão exercida pela atmosfera, a velocidade da Terra etc.).

 

Sua conclusão: “De fato, é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um físico atravessar a soleira de uma porta”. Terminada a citação, Benjamin acrescenta: “Não conheço nenhuma passagem na literatura que exiba em grau semelhante o gesto kafkiano”. (“Benjamin über Kafka”, uma coletânea de textos de Walter Benjamin sobre Kafka organizada por Hermann Schweppenhäuser e publicada em edição de bolso pela editora Suhrkamp.)

 

Sergio Tellaroli nasce em Araquara (SP) em 1959. Graduado em alemão e inglês pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP), trabalhou nas editoras Ática, Companhia das Letras e Conrad. Traduziu para o português Sigmundo Freud, Elias Cannetti, Thomas Bernhard e Robert Walser, entre outros. Como bolsista, tem diversas temporadas pelo Colégio Europeu de Tradutores, de Straelen, na Alemanha, onde foi “translator in residence”, em 2011.