O homem é uma entidade formada por um pênis falante numa tensão constante entre fracasso, vaidade e ira. Na ficção literária, cuja dominância nos últimos séculos teve em personagens e autores masculinos o seu centro gravitacional, a provocação de Ligia Gonçalves Diniz está dada. Afinal de contas, a masculinidade surge na literatura nada menos do que uma construção indeterminada e absurda da própria tentativa frustrada dos autores e personagens de se definirem como arquétipo.
Em “O homem não existe”, recém-lançado pela Zahar, a crítica literária e professora de Teoria da Literatura da UFMG faz um apanhado da sua própria experiência como leitora, lançando luz sobre a ideia de masculinidade abordada por autores como Homero, Philip Roth, Herman Melville e, claro, dos célebres psicanalistas Sigmund Freud e Jacques Lacan. Indo além da intelectualidade erudita, Ligia Gonçalves Diniz não se reprime em abordar também as referências pop como a série “Pam & Tommy”, “Matrix” ou até mesmo o grupo de pagode Art Popular.
A obra foi baseada na própria experiência de Ligia como leitora, conta ao Pensar a escritora, que lança “O homem não existe” neste sábado, às 11h, na Quixote Livraria e Café, em Belo Horizonte. “Uma coisa que me motivou a escrever o livro foi entender o quanto ler tantos homens autores e personagens de alguma forma modulou como eu entendo e o que espero do mundo”, resume ela.
Se o título é provocativo, ele vem como uma resposta à célebre frase de Jacques Lacan, “A mulher não existe”. Como escreve Ligia, o francês acreditava que a figura feminina não teria uma forma de gozo única pela qual pudesse ser definida. Já segundo Simone de Beauvoir, para o pensamento ocidental masculino, a mulher seria determinada na relação com os homens – o Sujeito em relação ao Outro feminino.
A autora de “O homem não existe” não deixa para menos. Sempre num tom divertido, repleto de brincadeiras, a crítica literária deixa claro onde quer chegar. Se Lacan sugere que o gozo, para a mulher, possa escapar à linguagem, permitindo uma “relação real com o outro”, “sobre a qual nada podemos dizer a não ser a que conhecemos”, escreve ela, essa qualidade feminina gera a perplexidade dos homens.
Formas de definir o membro masculino
Não haveria melhor ponto para a autora iniciar a narrativa do que o próprio órgão sexual masculino. Pois é nele que a psicanálise deposita grande parte das suas preocupações. Nada de surpresa, já que estamos falando de Freud e Lacan, dois homens com aflições e fraquezas típicas do gênero.
Mas, no livro, Ligia Gonçalves Diniz confessa uma inveja que não é necessariamente do pênis, como apontou o pai da psicanálise – mas, sim, de toda a culpabilização que o membro é capaz de receber dos seus “donos”, como se fosse uma entidade separada. Seja para o bem, como potência, ou para o mal, como falta dela: “como um chefe abalado que faz bobagem e coloca a culpa em um pobre funcionário”.
Para a autora, a própria forma de definir o membro masculino gera uma terminologia própria. Segundo ela, pênis é o termo “científico”; falo, o “pênis ereto”; pinto, o órgão de homens “fora da minha atração sexual”, seja de parentes como adultos “que inspiram asco”, como idosos “bem caquéticos”; e pau para todos os outros homens. “A não ser quando, no meio da frase, lembro que minha mãe vai ler este livro, então uso pênis”, brinca a autora, num dos trechos da obra.
É em Nathan Zuckerman, um dos mais famosos personagens do autor norte-americano Philip Roth, que Ligia Gonçalves Diniz mostra que o órgão sexual masculino, por ser tão colocado como símbolo de potência, acaba por dizer muito mais sobre a ausência dela.
Pois um dos maiores representantes da misoginia na literatura, o narrador Zuckerman apresenta, em “O avesso da vida”, de Roth, uma tragédia do insípido irmão Henry que talvez resuma todo dilema da masculinidade: se submeter a uma cirurgia para salvar sua vida que o deixaria impotente ou continuar tendo ereções e sucumbir. De certa forma, para a ideia de homem como conhecemos, morrer ou morrer.
Ao Pensar, Ligia Gonçalves Diniz coloca “O homem não existe” como um exercício de alteridade. Em meio à análise provocativa da ficção contemporânea está uma tentativa de se entender no meio de todos esses emaranhados.
“Acho que nos compreendemos muito melhor quando nos enxergamos a partir do outro. Temos esse hábito ocidental meio velho de olhar para o outro e tentar defini-lo a partir do que a gente é, mas inverter é interessante. Esse é o exercício que tento fazer ao longo do livro: me colocar na posição de mulher olhando o homem e a mulher, uma alteridade que não chega ao final, pois é sempre um processo de não definição”, pontua a autora, em entrevista.
Como ela escreve na apresentação do livro, é uma abordagem mesclando feminismo, mas que não foge de tentar enxergar o masculino com “olhos generosos” por ser, nas palavras de Ligia, “mais divertido e produtivo”. “Personagens machistas não tornam o autor ou o livro machistas, não necessariamente. E mais: livros machistas não são necessariamente ruins”, conclui, sem deixar de acrescentar que não pactua da falácia de separar autor e obra “por milagre”. “Não são, e às vezes temos que decidir se vamos sustentar gostar de um autor babaca”.
Há um pouco de reconciliação nas palavras de Ligia Gonçalves Diniz, mas com limites. Como ela explica ao Pensar, o trabalho acadêmico não dá espaços para isso. “Não tem que se reconciliar como nada. Tem que complexificar, entender o que está em jogo. Pensar em reconciliação, nesse sentido geral, político, amplo, não me parece algo produtivo”, diz.
Segundo ela, há momentos em que o cancelamento é absolutamente necessário, no sentido de dar menos voz a certos indivíduos. Mas o problema, ela diz, é quando falamos da experiência subjetiva do leitor, principalmente quando estamos falando de certos autores machistas, como Ernest Hemingway ou o próprio Roth.
“Como eu faço para recusar todas essas influências estéticas, que são parte do que eu sou? Me parece que uma dimensão do cancelamento, nesse sentido específico do cultural, implica em negar algo que é nosso. Acaba criando certos limites do que eu posso experimentar”, opina.
Felizmente, como ela mesmo destaca, parece ter chegado ao fim a era de domínio dos homens brancos na história da literatura. Para ela, autoras como Jamaica Kincaid e a brasileira Andréa del Fuego são exemplos de vozes que estão, aos poucos, trazendo novas experiências que vão acabar por obliterar o masculinizado e esbranquiçado na ficção contemporânea.
“Estamos vendo o comecinho de um universo gigantesco de formas novas de experimentar o mundo, não só do feminino, mas de diferentes formas de existir no mundo. Isso vai para além da questão política e social de ouvir a versão dessas vozes que foram caladas. Tem uma outra consequência, que é a exigência dos escritores de pensar a partir desses lugares de forma estética. Existe um avanço social e político óbvio e evidente, mas acho que ele também tem esse potencial de avançar esteticamente. E os homens brancos têm que correr atrás de fazer algo novo”, finaliza a autora.
“O HOMEM NÃO EXISTE: MASCULINIDADE, DESEJO E FICÇÃO”
Ligia Gonçalves Diniz
Editora Zahar
416 páginas
Lançamento em Belo Horizonte neste sábado (8/6), às 11h, na Quixote Livraria e Café (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi). Bate-papo com a autora e com Davis Diniz.