Cena de nova adaptação de 'Grande sertão: veredas' -  (crédito: helena barreto/divulgação)

Cena de nova adaptação de 'Grande sertão: veredas'

crédito: helena barreto/divulgação

“O senhor, mire e veja, o senhor: a verdade instantânea dum fato, a gente vai deparar, e ninguém crê. Acham que é um falso narrar. Agora, eu, eu sei como tudo é: as coisas que acontecem, é porque já estavam ficadas prontas, noutro ar, no sabugo da unha; e com efeito tudo é grátis quando sucede, no reles do momento.”


No trecho acima de “Grande sertão: veredas”, Riobaldo, o jagunço letrado, discorre sobre a complexidade de narrar uma história. A passagem foi escolhida por Guel Arraes para representar seu trabalho de levar o único romance de Guimarães Rosa para as telas. “Foi o que sentimos um pouco ao tentar narrar Guimarães no cinema”, conta ao Pensar o diretor pernambucano.

 

Jorge Furtado (E):28 parcerias com Guel Arraes (na foto com Caio Blat, caracterizado como Riobaldo, narrador do livro e do filme)

Jorge Furtado (E):28 parcerias com Guel Arraes (na foto com Caio Blat, caracterizado como Riobaldo, narrador do livro e do filme)

ricardo brajterman/divulgação


“Grande sertão”, o filme de Guel Arraes, está em cartaz nos cinemas de Belo Horizonte desde a última quinta-feira. Na adaptação do diretor, escrita com o roteirista e cineasta gaúcho Jorge Furtado, o ambiente habitado pelos personagens de Guimarães Rosa deixa espaço e tempo originais – o interior de Minas Gerais no início do século 20 – e se move para um cenário semelhante ao da periferia urbana nos dias de hoje (ou de um futuro bem próximo). “Um enclave do passado num mundo modernizado de forma injusta e às pressas, uma terra onde vigoram a violência e a ferocidade, este é o sertão de Rosa, que também pode ser encontrado nas margens da riqueza no Brasil de hoje”, explica Furtado ao Estado de Minas.

 


Cineasta consagrado com filmes que ele escreveu, como o antológico curta-metragem “Ilha das flores” e longas como “Saneamento básico”, Jorge Furtado já realizou mais de 40 adaptações literárias para o audiovisual (28 em parceria com Guel Arraes). “Cada uma delas apresentou diferentes desafios. A maior dificuldade de adaptar ‘Grande sertão: veredas’ para o cinema é que se trata de uma obra-prima, o maior romance da língua portuguesa. Acredito que a riqueza poética da fala de Riobaldo é, em certos aspectos, infilmável. Mesmo assim, entre todos os nossos trabalhos de adaptação, este é o que mais usou as palavras do texto original. Eu e o Guel só escrevemos o que era absolutamente indispensável para contar a história”, conta o roteirista. Leia, a seguir, a íntegra da entrevista de Jorge Furtado ao Pensar.

 

"O sertão de Rosa também pode ser encontrado nas margens da riqueza no Brasil de hoje", Jorge Furtado

"O sertão de Rosa também pode ser encontrado nas margens da riqueza no Brasil de hoje", Jorge Furtado

helena barreto/divulgação

Quando e como surgiu o desejo de adaptar o romance “Grande sertão: veredas”?
A ideia de transpor o ambiente do sertão do início do século 20 para um complexo semelhante ao de uma comunidade urbana, e em dias mais contemporâneos, surgiu de imediato?


Eu e o Guel falávamos do livro há muito tempo, mas na prática o trabalho começou no dia 9 de abril de 2018, quando, depois de conversarmos uma tarde inteira, o Guel me mandou o seguinte email: “09/04/2018. Storyline: Periferia de uma grande cidade. Riobaldo, ex-soldado do tráfico, fez no passado um pacto com o diabo e se tornou líder do movimento. Hoje convertido à religião ele questiona a existência do pacto e, enquanto narra sua história, tenta entender os motivos que o levaram a entrar nesta guerra. CENA: Aérea de uma grande comunidade de periferia. Letreiro: ‘Comunidade Grande Sertão’. RIOBALDO (OFF) - O Sertão é onde o homem tem de ter a dura nuca e a mão quadrada. É onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado.” Como se vê, desde sempre pensamos em trazer a história para hoje, ou para um futuro não muito distante, este era um dos motivos para fazer o filme. Um enclave do passado num mundo modernizado de forma injusta e às pressas, uma terra onde vigoram a violência e a ferocidade, este é o sertão de Rosa, que também pode ser encontrado nas margens da riqueza no Brasil de hoje. “O sertão está em toda a parte.” Outro motivo para fazer o filme era o desafio de usar ao máximo as palavras do romance de Guimarães Rosa. Tenho certeza de que o filme será, para muitos, o primeiro contato com a fala de Riobaldo que, como toda grande poesia, é um “bracelete de encantamentos vocais”, nos acompanha para sempre.


Quais as principais diferenças de adaptar “Grande sertão: veredas” para os trabalhos anteriores de adaptação?
Peças de teatro ajudam os roteiristas com seus diálogos, romances costumam ter mais ação e cenários variados, histórias que cabem em contos têm o tamanho mais próximo ao de um longa-metragem, mas cada caso é um caso. A maior dificuldade de adaptar “Grande sertão: veredas” para o cinema é que se trata de uma obra-prima, o maior romance da língua portuguesa, acredito que a riqueza poética da fala de Riobaldo é, em certos aspectos, infilmável. E o livro é grande, tem muitas histórias dentro da história, certamente haverá perdas em qualquer transposição das quase 500 páginas para as duas horas de filme. Mesmo assim, entre todos os nossos trabalhos de adaptação, este é o que mais usou as palavras do texto original. Eu e o Guel só escrevemos o que era absolutamente indispensável para contar a história. Sempre que era possível, usamos as palavras do livro.

 

Quando esteve no Brasil em 2019, para palestras no lançamento da nova edição de “Grande sertão: veredas”, Mia Couto afirmou que este romance “percorre as grandes inquietações da humanidade” e destacou: “Meus amigos brasileiros asseguram-me que ‘Grande sertão’ podia ter sido escrito nos tempos de hoje. Com líderes populares sendo assassinados, com fazendeiros e madeireiros invadindo terras indígenas, com a dificuldade de o Estado de direito fazer frente aos jagunços que agora têm novos nomes e novos mandantes.” Essa atualidade apontada pelo escritor moçambicano foi um dos motivos que os levaram a transpor a obra do sertão para a periferia urbana?
Sim, sem dúvida. Um dia desses, o José Júnior, do AfroReggae, disse numa palestra que o Rio de Janeiro tem 14 grupos armados disputando mais de mil territórios. No Brasil, quase 50 mil pessoas são assassinadas todos os anos. A imensa maioria das vítimas deste genocídio são jovens negros das periferias, alvos da estúpida e inútil “guerra às drogas”. O Brasil é um dos países mais violentos do mundo, e o romance de Rosa dramatiza como nenhum outro esta ferocidade: “Deus mesmo, quando vier, que venha armado”.

 

Em um dos estudos mais conhecidos sobre o livro de Guimarães Rosa, Antonio Candido afirma que, em “Grande sertão: veredas”, “há de tudo para quem souber ler”. “Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício”, disse ele no ensaio “O homem dos avessos”, e vai prevalecer “o traço fundamental do autor: a absoluta confiança na liberdade de inventar.” Essa “confiança absoluta na liberdade de inventar” norteou o trabalho de vocês?
Sim, Guimarães Rosa desafia todas as convenções, ao mesmo tempo em que se sustenta em temas clássicos: a jornada do herói que é chamado à aventura e ultrapassa o ponto de não retorno; o amor jovem, puro e trágico; a donzela tornada guerreira para vingar a morte do pai; a honra entre bandidos; os limites entre a justiça e a vingança; a luta do bem contra o mal. São temas eternos, sempre revisitados. Antonio Candido percebe que Rosa, com sua invenção, “subtrai o livro à matriz regional para fazê-lo exprimir os grande lugares-comuns sem os quais a arte não sobrevive: dor, amor, morte, para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e que, na verdade, o sertão é o mundo”.

 

 

Há menções no filme a episódios decisivos da formação do Brasil, como a Inconfidência Mineira e a Guerra de Canudos. O que Riobaldo ensina aos seus alunos é que a história do nosso país é uma história de conflitos?
A aula de Riobaldo é um dos momentos do filme que precisamos criar sem maiores indicações do livro. Sabemos que Riobaldo foi professor, na escola de Zé Bebelo, “para o ensino de todas as matérias”. A nossa aula de Riobaldo ensina que a história oficial é contada sempre do ponto de vista dos vencedores.

 

Gostaria de um comentário sobre a trajetória no filme do personagem Zé Bebelo (vivido por Luís Miranda), que mistura polícia e política. Como foi construído e o que diz sobre as forças de segurança do país?
Ele representa o policial honrado, que luta e arrisca a vida em nome da paz e da ordem pública. Silviano Santiago, em “A genealogia da ferocidade”, define como se comporta “a irascibilidade de um chefe como Zé Bebelo. O texto é claro, já que celebra o fato de o líder ser capaz não só de questionar os diferentes bandos anárquicos de jagunços e ser crítico deles como também de direcioná-los com vistas ao bom enquadramento de todos nas leis impostas pelo regime republicano dominante, construindo ao final uma comunidade disciplinada e ordeira”. “Com ira razoável”, diz Zé Bebelo, “a gente devia mesmo de reprovar os usos de bando em armas invadir cidades, arrasar o comércio, saquear. [...] E continua: “depois, estável que abolisse o jaguncismo, e deputado fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas, remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando mil escolas”. É um bom plano de governo. Zé Bebelo, hoje, certamente seria eleito, talvez com o meu voto. “Zé Bebelo quis ser político, mas teve e não teve sorte: raposa que demorou”.

 

E sobre as personagens femininas? Ressignificar a Otacília e a Nhorinhá originais foi uma forma de suprir a quase inexistência de personagens femininas fortes no livro?
Sim. Proporcionalmente, as mulheres ocupam no filme um espaço bem maior do que no romance, mas partimos de indicações do texto para atualizar as personagens. O amor que move Riobaldo é por Diadorim. Riobaldo usa, para conquistar Otacília, o que aprendeu com Diadorim: “Otacília, moça que dava amor por mim”, “era risonha e descritiva de bonita. [...] fina de recanto, em seu realce de mocidade, mimo de alecrim, a firme presença. Fui eu que primeiro encaminhei a ela os olhos. Molhei mão em mel, regrei minha língua. Aí, falei dos pássaros, que tratavam de seu voar antes do mormaço. Aquela visão dos pássaros, aquele assunto de Deus, Diadorim era quem tinha me ensinado. Mas Diadorim agora estava afastado, amuado, longe num emperreio”. Otacília, no livro, é um amor tranquilo, apaziguado. No filme, ela assume o papel trágico das mães que precisam enterrar seus filhos. Nhorinhá é bem outra coisa. No livro (não no filme), ela é descrita como “aquela moça, meretriz, por lindo nome Nhorinhá, filha de Ana Duzuza”. Depois do primeiro encontro, Riobaldo logo percebe que “estava gostando dela, de grande amor em lavaredas; mas gostando de todo tempo, até daquele tempo pequeno em que com ela estive, na Aroeirinha, e conheci, concernente amor. Nhorinhá, gosto bom ficado em meus olhos e minha boca. [...] Ah, a flor do amor tem muitos nomes”.

 

Ao programa “Roda viva”, você disse que um dos desafios era preservar a “linguagem absolutamente encantadora” des Rosa. Qual a parte mais difícil no trabalho de preservação dessa linguagem? As falas são fiéis ao livro?
O livro é inteiramente narrado em primeira pessoa, há poucas sequências de diálogo, mesmo Diadorim tem poucas falas no romance. Nosso desafio foi dar personalidade e voz aos diferentes personagens, partindo das indicações do texto e de suas poucas falas no livro.


Poderia escolher o seu trecho favorito do livro?
É difícil escolher, fico com a cena final:
“Você mesmo, você pode imaginar de se ver um corpo claro, morto à mão, baleado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, e os olhos dum terminado estilo, meio aberto, meio fechado? Você pode conceber de alguém aurorear de todo amor e morrer como só para um? E essa pessoa de quem você gostou, que era um destino, uma surda esperança em sua vida?! Você… Me dê um silêncio. Eu vou contar.”

Cenas de luta

O diretor de “Grande sertão”, Guel Arraes, contou ao Pensar que as cenas de lutas e batalhas foram as mais difíceis de realização. “Flavia (Lacerda, diretora da segunda unidade) e eu não queríamos e nem conseguiríamos nos aproximar do modelo americano. Então fomos procurando lutas com mais dramaturgia e menos efeitos especiais, mais performance de câmera e de dança dos atores e menos explosões”, revelou o diretor, que volta aos cinemas no fim do ano com a estreia de “O auto da compadecida 2”.


“GRANDE SERTÃO”

(Brasil, 2023, 108min.) Direção: Guel Arraes, com Caio Blat, Luisa Arraes, Rodrigo Lombardi, Luis Miranda.

O filme está em cartaz nos cines BH 9, às 13h, 15h50, 18h40 e 21h20 (exceto dom) e 12h, 14h50, 17h40, 20h20 (somente dom);

Big 3, às 20h15; Cidade 8, às 16h10 e 20h55;

Contagem 7, às 16h10 e 18h40;

Del Rey 4, às 13h40 e 18h25;

Monte Carmo 7, às 14h, 16h20 (exceto sáb), 18h45 e 21h;

Norte 4, às 20h15;

Pátio 2,às 12h15 (somente sab), 14h50, 18h e 20h40 (exceto dom) e 11h10, 13h50, 17h e 19h40 (somente dom);

UNA Cine Belas Artes 1, às 16h10 e 20h30.