Dueto dos ausentes, de Fernando Rinaldi -  (crédito: Luiza Sigulem/Divulgação - Reprodução capa)

Dueto dos ausentes, de Fernando Rinaldi

crédito: Luiza Sigulem/Divulgação - Reprodução capa

Giovanna Soalheiro - Especial para EM

 

“Como conhecer um futuro todo manchado de saudade? Quando um filho morre, duvidamos, para não dizer desdenhamos, da tenebrosa eternidade”. Assim, escreve Hélio a respeito da morte de Heitor (seu filho), em “Dueto dos ausentes” (Reformatório), belo romance de estreia de Fernando Rinaldi. A história transcorre inter e intra narrações, com vozes distintas, em alguns capítulos, e iguais, em outros. A perda, a fratura, é um dos motivos centrais do romance, mas há, por outro lado, relações estabelecidas no trato inventivo da linguagem, da forma não linear por meio da qual os enredos se preenchem. O dueto sugerido no título – como se verá – busca estabelecer-se por meio dos duplos, inclusive estrutural, do embate espaço-temporal e narrativo circunscrito à ficção ou à metaficção criada por Hélio, escritor e psicanalista. O romance de Rinaldi, dessa forma, conta aos leitores duas histórias, numa trama experimental, que necessita de um interlocutor atento e disposto a assumir o contrato de um jogo arriscado, pois não se trata de uma leitura habitual, direta, para repetir aqui Noemi Jaffe (2023). O que se duplica, então, dará ensejo às ambivalências, desdobrando-se numa tessitura que se faz e se desfaz continuamente. Tudo é especular, mesmo aquilo que aparenta completude.

 

Leia também: Branca Moreira Alves: 'Mulheres são a grande massa silenciosa da história'

 

A mise en abyme (Gide, 1893) – ou a estrutura em abismo – é um dos procedimentos retomados pela prosa contemporânea: as narrativas dentro das próprias narrativas. Tal estrutura estende-se para além da ficção cerrada, abrindo-se à reconfiguração dos sentidos e à remontagem da forma. Há, de certa maneira, a recusa ao fechamento e, por outro lado, a abertura da obra ao leitor. Na primeira história de “Dueto dos ausentes”, surgem Hélio, Heitor, Helena (e seus pais), Dóris, Ísis, os avós. Na segunda, por sua vez – no romance em construção – Élio, Eitor, Elena, Hector e Hélène surgem como figuras dúplices e em contraste, que buscam o que falta em si pelo corpo alheio, assim como ocorre na primeira teia. A estrutura do livro é dividida em oito capítulos, cada um contendo sete seções, em frações temporais que vão de 2005 a 2018 e, depois, de forma digressiva, de 2018 a 2005. Na reinvenção dos nomes, a letra H, consoante muda em Eitor, Élio e Elena, está ausente. Somos levados, então, a montar um quebra-cabeça, e a sequência de leitura, a despeito da não linearidade, está sugerida no paratexto – um organograma que consta na página posterior à do sumário.

 

De modo geral, entrelaçam-se espaços que se alteram em obstinação entre as duas narrativas – passado, presente e futuro –, num decurso que se desloca entre as cidades de São Paulo, Lisboa, Paris e adjacências. O mar é uma paisagem recorrente nas vivências dos personagens, como se a fluidez das ondas e das águas, em oposição à areia e às conchas sobrepostas, pudesse diluir (ou recompor) perdas, amores, lutos, relações familiares saturadas entre histórias “reais” e outras inventadas. Heitor e Eitor, duplos de um só corpo, vão se enleando, descobrindo a masculinidade, a sexualidade e o desejo queer por seus iguais, mesmo que dessemelhantes.

 

A diegese também se tensiona: Hélio e Élio (ambos psicanalistas) se narram, assim como Heitor e Eitor, um adolescente e um estudante de Ciências Sociais. Posteriormente, o pai é narrado pelo filho e o filho pelo pai. A paternidade parece não se efetivar em nenhuma das narrativas. Nada é mencionado, de forma espontânea, sobre o cotidiano entre os dois: apenas um silêncio latente que, aos poucos, se torna audível, à medida que os artifícios se encaixam.

 

 

Figuras andróginas

 

Diante da perda física e aparentemente intencional de Heitor em um acidente de carro – e dos hiatos existentes entre os dois –, Hélio, já distante de sua cidade natal, decide, então, escrever um romance a pedido de seu editor. Na metaficção, outros duplos se formam: Eitor, Élio, Hector e Hélène. Inicialmente, os três últimos personagens vivem um relacionamento amoroso em Paris que, aos poucos, também se desfaz. Há, nesse ponto, a autorrepresentação ficcional e parcial do filho na figura do pai (criação e criatura). Estes se instauram como prospecção ao sujeito que sofre a perda. Surgem ainda Helena, Elena e Hélène, figuras andróginas, aparentemente sem relevância maior para a trama, mas talvez – e sim – a metade da parte que ausenta: objeto narrado e oblíquo entre a presença e o abandono, a dor e o luto.

 

“Dueto dos ausentes” é, sem dúvida, um romance de complexidade estrutural e temática, uma vez que muitas contexturas se tecem: a sexualidade e a homoafetividade de Heitor-Eitor, Élio-Hector, a perda familiar do filho (a morte dos avós, de Dóris), a dor, a ausência, a narrativa. Fernando Rinaldi projetou um mosaico, um quebra-cabeças romanesco, subvertendo a linearidade do que se impõe como ordem. A aparente desordem – apenas aparente – é o que dá a tônica à invenção, é o que problematiza ainda as noções de ficção e realidade, incitando o leitor à introspecção, à montagem do jogo, a partir das peças oferecidas. A originalidade do romance resulta desses fatores, desses dois livros “distintos e contíguos”, como diz Julián Fuks, e que continuamente devem ser inaugurados, ou reimaginados, por um personagem-leitor, dentro e fora da textualidade. A leitura não se encerra na última linha, pois o que falta (“Quanto falta?” dito por Ísis a Hélio) pode ser tanto o fim quanto o começo.

 

“Dueto dos ausentes”
De Fernando Rinaldi
Reformatório
288 páginas
R$ 64

Doutora em Letras, pesquisadora e professora, Giovanna Soalheiro é autora do poemário “Olho de boi” (Editora Reformatório).


Trecho do livro


"Hector então se aproxima mais de Élio, encostando a mão direita no ferimento em seu rosto. Aquele toque, por mais que o desagrade, também o paralisa, como se a única saída fosse se deixar conduzir, sem mais vontade própria, pela conversa e pelos movimentos de Hector. Nesse momento, porém, não falam mais nada, e só continuam a se olhar. Élio deseja desviar o rosto, colocar Hector para fora do quarto e nunca mais encontrá-lo, mas prevalece a vontade de não quebrar o instante iminente, de não dar uma de covarde como sempre foi. E assim, com o corpo estático, ele se deixa beijar por Hector, que o aperta contra si. Apenas com os lábios a princípio, até que em dado momento Élio perde as forças dos músculos da boca e se deixa invadir por uma língua espessa e quente, que tateia em busca do movimento exato."