“Guerra santa”
O sol rachava apesar do frio naquele domingo de julho à uma da tarde. Tinha acabado de almoçar e corri ao portão da rua atraído pela batida do sino da Matriz anunciando um enterro. Ainda não tinha comido o terço final da minha banana de sobremesa quando, na disparada, ouvi minha mãe perguntar “pra que esse desespero?”.
De costas para o portão de acesso ao alpendre da minha casa, olhando à esquerda, era possível ver um trecho da Rua do Meio, a uns cinquenta metros dali, por onde passavam os enterros — eles deixavam a igreja e seguiam em linha reta até o cemitério, cruzando toda a extensão da principal praça da cidade.
Quando cheguei ao portão e olhei, o cortejo ainda não tinha apontado na altura da rua em que era possível vê-lo. Mas vi passar pela calçada oposta à minha uma moça alta de cabelos curtos carregando uma grande mala. Devia ter entre trinta e trinta e cinco anos.
Ia com dificuldade, parando de tempo em tempo para descansar o braço direito, e levava a tiracolo, por cima do casaco de lã, uma bolsa de couro marrom acomodada no lado esquerdo da cintura. Mais que o tamanho da mala ou o modo de ajeitar a bolsa sobre o ombro, chamava atenção a calça comprida que ela usava, pois era raro as mulheres se vestirem daquele jeito.
Estava sentado sobre a soleira do portão quando ela passou. Nos entreolhamos, mas num átimo nossos olhares fugiram um do outro. Aquele instante fugaz foi, porém, suficiente para que eu lhe abrisse um sorriso discreto, e ela retribuiu com um leve movimento de cabeça. Daí a pouco dobrou à esquerda, tomando provavelmente o rumo da estação rodoviária.
Quando a perdi de vista, ergui os olhos para um pouco mais além. Nada de enterro ainda. O que via agora era a Espanhola, encostada à parede de sua casa, na esquina da Rua do Meio com a travessa onde eu morava.
Com as duas mãos na cintura, muito aprumada, olhava na direção da igreja, aguardando a aproximação do séquito, que, pelo choro do sino, já devia estar a caminho.
De vez em quando ela levava a mão direita, aberta, ao meio da testa, para se proteger do sol e enxergar mais acuradamente detalhes do que estava se passando. Levei um susto com a multidão que surgiu de repente, como um rolo compressor, apagando a figura da Espanhola, o bar do Dito Luca, o cavalo amarrado ao tronco de uma árvore e tudo o mais que alguns segundos antes eu via tão nitidamente. Tive ímpeto de subir um pouco, me afastando de casa, para ver tudo mais de perto, mas me contive, que minha mãe havia dito, depois de mencionar o meu “desespero”, que eu não fosse além do portão. Era um passar ininterrupto de gente, um mar que se esparramava em linha reta, sem se derramar para os lados. Ao contrário, muitos retardatários ou adesistas de última hora encorpavam ainda mais o já grosso cordão humano. Cheguei a imaginar que não vira passar o féretro, talvez ocultado pela massa de gente que o transportava, mas me enganei — ao final da grande multidão, era carregado por um contingente menor, igualmente compacto, destacado do maior com o fim de levar o defunto solenemente.
Vinha sob um sobrecéu portátil de tecido adamascado que só vira até então nas procissões da Sexta-feira Santa, cobrindo o esquife do Cristo morto. As seis varas que o mantinham suspenso, três de cada lado do préstito, eram conduzidas por homens metidos em uma túnica longa sem mangas, sobre um terno preto, com distintivos dependurados no peito. Debaixo do sobrecéu ia o caixão, coberto pela bandeira da Liga.
Católica e carregado por homens que se revezavam na função usando o mesmo traje daqueles que conduziam as varas. À frente do caixão, um liguista segurava, acima da cabeça, um retrato a cores do beato Henrique Belletable emoldurado com vidro, papelão e madeira. Lá no alto, num lento e ininterrupto movimento, o quadro ia de um lado para o outro, descrevendo o eixo maior de uma elipse. Não longe desse núncio de braços de ferro, seguia o cônego Profício — os dedos das mãos entrelaçados sustentando o queixo; a cabeça, levemente curvada, coberta por um barrete preto de três palas e borla negra no centro.
Para fazer a encomendação do corpo e levá-lo ao túmulo, pôs o cônego a sua melhor sotaina: preta de colarinho branco, com trinta e três botões de alto a baixo e outros cinco nos punhos, coberta por sobrepeliz de linho cor de fumaça. Por cima de tudo, cobrindo os ombros e parte das costas e dos braços, usava uma capa curta, também preta, aberta na frente e amarrada no pescoço por uma guita de seda roxa que terminava num berloque.
Fechando o cortejo, a Banda Municipal executava a Marcha Fúnebre de Chopin num ritmo muito mais lento do que mandava a partitura. Na última fila, o velho Pedro Ciriaco soprava sua tuba — a assombrosa campânula metálica coroando-lhe a cabeça.
“São José da Ventania”
De Roberto B. de Carvalho
Impressões de Minas
276 páginas
R$ 75
Lançamento na Papelaria Mercado Novo (Av. Olegário Maciel, 714, 2º andar, loja 2176, corredor J), neste sábado, das 12h às 15h
Sobre o autor e o livro
Roberto B. de Carvalho nasceu em Paraisópolis, no Sul de Minas, e vive em Belo Horizonte desde 1973. Escreveu os livros de poemas “Planetário de Eros” (Edições Quarteto de Sopros, 1988), “Zoopornô & outros poemas” (Coleção Poesia Orbital, 1997) e “Irene no céu” (Tipografia do Zé, 2022).
Organizou a antologia poética “Taquicardias” (Sabará, Edições Dubolso, 1985) e edita, com Flávio Vignoli, desde 2021, em Belo Horizonte, a revista “ágora”, de poesia e tipografia. O livro “São José da Ventania” reúne três novelas ambientadas na cidade fictícia que dá título ao livro. Embora independentes, as novelas se interligam no tempo e no espaço.
Todas partem das histórias que o narrador, quando menino, ouvia da voz de Iná, a empregada da casa, disfarçando o impacto que aquelas narrativas produziam em sua imaginação. A capa da edição traz imagem do artista Amilcar de Castro e o projeto gráfico é de Elza Silveira. O Pensar publica nesta edição a abertura de “Guerra santa”, a segunda novela do livro.