Alexis Parrott
Especial para o EM
Para alegria da Netflix, é inegável o status de fenômeno alcançado por “Bebê rena”, minissérie baseada em dois monólogos teatrais do comediante e dramaturgo escocês Richard Gadd. Biográfica, a atração ficcionaliza o assédio real de uma persistente stalker que infernizou o autor com 41 mil e-mails, 350 horas de mensagens de voz e quase 800 interações via internet.
Há algumas pistas para entender a repercussão da série, a começar pela mais óbvia: o tema. A figura do stalker e suas motivações tortuosas fazem parte do cânone da cultura popular, turbinadas pela intervenção do aparato digital na vida cotidiana, especialmente nas redes sociais.
No cinema, Scorsese trabalhou o mote em mais de uma ocasião, explorando a insanidade do tipo em diferentes matizes, como em “Cabo do medo” (1991), “O rei da comédia” (1982) e “Taxi driver” (1976). São filmes que privilegiam a condição emocional limítrofe e delirante do stalker, não raro com tendências à violência.
Neste universo, outras obras sobressaem, como “Dublê de corpo” (1986), pela primorosa estetização da obsessão construída por Brian de Palma; e “Caché” (de Michael Haneke, 2005), pela exposição do paradoxo existencial que acaba aproximando stalkers e stalkeados – aspecto também visitado em “Bebê rena”.
Se existisse um Oscar dos stalkers, a personagem de Glenn Close em “Atração fatal” (1987) faturaria o prêmio, empatada com o almodovariano Benigno, interpretado por Javier Cámara em “Fale com ela” (2002).
Na televisão, vai longe o tempo em que ríamos impunemente de Carrie stalkeando Mr. Big em “Sex and the city”; ou de quando Jack decidiu vigiar Kevin Bacon em “Will & Grace”, na esperança de ficar amigo do ator e dançarem juntos a coreografia de “Footlose”.
Para evitar gatilhos nas narrativas em prol da saúde mental do público, o tema vem recebendo tratamento mais grave em anos recentes. Séries como “Você”; “The idol”; “American crime story: o assassinato de Gianni Versace”; ou a austríaca-alemã “Pagan Peak” são amostras do que significa rezar por esta cartilha. Reintroduzindo o humor na mistura, “Bebê rena” quebra o paradigma imposto, mesmo sem deixar de ser sombria – e só por isso já se destaca.
Há também outro fator a considerar, relacionado à natureza industrial da televisão. Desde as primeiras transmissões, tudo o que dá certo uma vez é repetido e copiado até à exaustão. Daí a infestação de podcasts a que hoje somos infligidos; ou ainda a insistência da Rede Globo em produzir remakes de novelas antigas.
(Não se engane: canais abertos ou a cabo, Youtube ou streaming, é tudo TV.) Seguindo o mesmo modelo, após o êxito estrondoso de “La casa de papel”, inúmeras séries lançam mão do recurso do narrador em off e “Bebê rena” é apenas mais uma nessa leva.
Artifício didático
Elemento típico de certos gêneros (o policial noir é um deles), a voz em off pode também ser convocada quando uma história não consegue se contar sozinha, geralmente por incompetência da direção ou do roteiro. Usada indiscriminadamente, se torna artifício mais didático do que de estilo; pega o espectador pela mão e o conduz através da história, como um cão guia.
Porém, se garante o entendimento ao nos colocar dentro da cabeça de um personagem, abre mão de qualquer ambiguidade, eliminando possibilidades dramáticas e limitando a narração. No caso de “Bebê rena”, talvez até se justifique, por se tratar da adaptação de monólogos mas, ainda assim, significa a opção pela saída mais fácil para construir um roteiro.
Seu uso indica ainda o empenho da Netflix em buscar características comuns para homogeneizar seus produtos. Já vimos isso antes, tanto no esforço recorrente de estabelecer um número ideal de episódios por temporada, quanto na instituição do binge-watching como modelo preferencial de fruição no streaming.
Em uma das cenas do filme “O melhor está por vir” (2023), Nanni Moretti critica ironicamente esta sanha de padronização. Reunido com executivos da Netflix italiana, o protagonista (mais um diretor de cinema interpretado pelo próprio Moretti) vê o projeto de seu filme atacado por uma saraivada de clichês dos manuais mais básicos de roteiro, concluindo com a acusação da falta de um acontecimento surpreendente na história, chamado pelos representantes da empresa de “what the fuck moment”. Não por acaso, trata-se de expediente em que “Bebê rena” é pródigo.
Às custas do empobrecimento da linguagem televisiva, segue a todo vapor a busca por uma fórmula comercial infalível para a ficção seriada, visando fisgar e manter o maior número possível de assinantes para as plataformas.
Liderado pela Netflix e encampado pelo streaming em geral, há hoje em curso um processo global de reeducação do nosso olhar pautado pela familiaridade e facilidade de compreensão. Para além de suas qualidades, e apesar das questões éticas atreladas a qualquer obra de autoficção, o sucesso de “Bebê rena” é sintoma incômodo do avanço desse processo.
Alexis Parrott é crítico de televisão, roteirista e jornalista