Filme

Filme "Guilherme Mansur – obra em desdobra"

crédito: Dimas Guedes/Divulgação

 

“Você precisa
filmar o
Guilherme”

 

João Dumans

 

Por volta dos 12 anos de idade, eu ainda morava em Ouro Preto, e às vezes resolvia voltar a pé da escola. Era uma caminhada bastante longa, e o trajeto do Arquidiocesano até a minha casa, na outra ponta da cidade, me levava quase sempre à rua Getúlio Vargas, onde um homem que eu desconhecia, sentado numa cadeira de rodas do alto da varanda de um sobrado, invariavelmente me lançava perguntas sobre a escola e a família.

 

Eu odiava aquelas perguntas. Olhava pra cima, respondia qualquer coisa e saía andando, com medo de que a conversa pudesse se aprofundar ainda mais. "Manda um abraço pro seu pai e pra sua mãe" – ele dizia, enquanto eu já ia dobrando a esquina da rua na altura da galeria da Faop. Alguns anos depois, fui morar em Belo Horizonte, e voltava sempre a Ouro Preto, como ainda volto, para visitar meus pais.

 

Desde então, meu pai, Dimas Guedes, nunca se cansou de repetir. "Vai visitar o Guilherme, ele gosta muito de falar com você". Dado o histórico da nossa relação, essa frase me parecia bastante incompreensível.

 

 

Quando Guilherme foi internado no Madre Teresa, em setembro de 2023, ele me ligou pedindo que eu o visitasse no hospital. Nas semanas anteriores, ele havia ficado 20 dias em coma profundo, e sua recuperação foi considerada pelos médicos um milagre.

 

Àquela altura, eu já sabia quem ele era: sabia da sua amizade com os concretistas de São Paulo, da sua parceria com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Amílcar de Castro, Carlos Ávila, Paulo Leminski, Sylvio Back. Sabia que ele havia se correspondido com Roberto Piva.

 

 

Sabia que era, dentre outras coisas, tipógrafo, e que tinha uma tipografia cujo nome sempre exerceu sobre mim uma certa fascinação: “Tipografia do Fundo de Ouro Preto”. Sabia que era um grande poeta. Tinha testemunhado a amizade dele com meu pai e a bonita parceria artística que desenvolveram juntos. E o havia visitado algumas vezes, sem nunca ter perdido a timidez da infância.

 

Àquela altura eu já havia, inclusive, filmado-o na sua casa da rua Getúlio Vargas. No inverno de 2022, numa dessas visitas que eu fazia a Ouro Preto, meu pai me disse: “Você precisa filmar o Guilherme’. Fomos então nós dois juntos até a sua casa, onde registramos as imagens e os depoimentos que compõem o filme apresentado pela primeira vez no Cine OP.

 

Meses depois, sem notícias da filmagem, Guilherme fez um post no Instagram ilustrado por uma foto dos bastidores da gravação, onde dizia: “Início das tomadas do filme ‘Guilherme Mansur — Obra em desdobra’, de João Dumans”. O filme que eu não sabia que estava fazendo já tinha nome.

 

 

Portanto, quando Guilherme me ligou em setembro de 2023 para que eu o visitasse no hospital, eu o fiz com o senso de urgência que a situação exigia, mas também com uma felicidade genuína, com um desejo real de me aproximar e de desenvolver com ele uma amizade que eu tinha por tantos anos colocado em segundo plano.

 

Fui porque queria ouvi-lo, porque queria estar com ele. E assim foi, conversamos longamente no quarto do hospital, enquanto o jogo do Galo passava na TV e Marúzia, que dedicou a ele um amor sem tamanho, lia um livro no sofá.

 

Guilherme me fez naquela ocasião dois pedidos, e os dois envolviam o filme que “estávamos fazendo juntos”. O primeiro desejo era que eu o filmasse recebendo banho das enfermeiras do hospital. O segundo é que eu filmasse sua transferência para a nova clínica, onde ele ficaria alguns dias antes de ter alta. Nessa sua performance – que viria a ser a última – ele usaria um pano branco sobre o corpo, com uma inscrição misteriosa: “O lobo do homem”.

 

 

Os enfermeiros do hospital já haviam recebido uma cópia de “Alta noite”, canção de Arnaldo Antunes que ficou famosa na voz de Marisa Monte. Todos deveriam decorar a letra, que seria cantada no trajeto entre o quarto e a ambulância. Ainda há uma foto do ensaio da performance na noite anterior à transferência no seu Instagram: Guilherme está cercado pelos enfermeiros, que o adoravam, cada um deles segurando um balão azul com uma mensagem de carinho.

 

A transferência transcorreu normalmente, mas eu, Lucas e Laura Godoy – dois irmãos por quem Guilherme nutria uma enorme estima – não conseguimos filmá-lo, porque a ambulância chegou mais cedo do que o programado.

 

Guilherme morreu em 27 de setembro de 2023, alguns dias antes de receber alta da clínica para onde foi transferido. Sua morte surpreendeu a todos, ele estava bem, estava alegre e queria trabalhar. Mas viveu o que tinha que viver. Quando tinha 16 anos, um médico disse que só viveria até os 30, devido à mesma condição grave de saúde que o prendia à cadeira de rodas.

 

 

Guilherme partiu com 65 anos. Deixou uma obra artística bem-humorada e original e uma grande saudade naqueles que tiveram a sorte de compartilhar da sua alegria, da sua profunda generosidade e inteligência.

 

João Dumans é cineasta

 

“Guilherme Mansur – Obra em desdobra”

 

Documentário de João Dumans.


Exibição gratuita neste domingo (23/6) às 18h, no Cine Praça, na Praça Tiradentes, em Ouro Preto, na programação do Cine OP – 19ª Mostra de Cinema de Ouro Preto. O filme poderá ser assistido on-line das 18h de 23/6 às 23h59 de 24/6 no link: https://cineop.com.br/filmes/assista-online/

 

Guilherme Mansur, poeta e tipógrafo

Guilherme Mansur, poeta e tipógrafo

Germano Neto/Divulgação

 

“Ele me pediu
para produzir
sua última
performance”

 

Laura Godoy

 

Ainda não consigo escrever sobre Guilherme da forma que um poeta merece. É difícil revisitar as memórias. Em 31 de maio, ele teria completado 66 anos.

 

No dia seguinte, 1º de junho, Guilherme provavelmente já teria ligado cedo pro meu pai pra falar sobre a final da Champions.

 

Minha mãe atenderia o telefone primeiro e daria dicas de como reforçar a imunidade na época mais fria do ano. Depois, Guilherme perguntaria sobre o acampamento de Lucas, meu irmão, no Bico de Pedra. Nesta manhã, pela primeira vez, abri meu zap para reler nossas últimas conversas.

 

As semanas de agosto e setembro do ano passado foram de preparação para aquela que seria sua performance derradeira: sair do Hospital Madre Tereza, onde estava havia meses internado, coberto por um pano branco, do tamanho de um lençol, onde lia-se impresso em Helvética “O LOBO DO HOMEM”. Nas mensagens, acertamos os detalhes. O destino dele ainda não era Ouro Preto, como sonhava, mas outro hospital.

 

Minha amizade com Guilherme era também uma parceria criativa-colaborativa. Nada ligado a pró-labore ou contratos. Ele me propunha passos ousados, que eu não recusava porque era impossível pra mim dizer não ao tipoeta.

 

E assim me tirava da zona de conforto e receios que nunca fizeram parte da sua cortina de ferro. Nessa levada mansa, ganhei o cargo de copidesque de publicações e edições feitas por Guilherme. Não tenho essa formação de revisora.

 

Mas ele cismou que eu tinha “olho de águia tipográfica e isso bastava". Li, reli e conheci poemas de Leminski, Augusto e Haroldo de Campos, Hilda Hilst, Drummond, traduções de Baudelaire, Valéry, Sylvia Plath, Rimbaud, Lorca e muitos, muitos outros.

 

Em outra ocasião, digitei e revisei 21 sonetos de Gregório de Matos. Um dia, a ousadia foi longe demais. Guilherme me pediu pra traduzir para o espanhol alguns de seus poemas que sairiam em publicação estrangeira. Bem que enrolei, mas não teve jeito. Acabei fazendo e ele ficou feliz.

 

Mas a melhor função era ser parte da trupe que ele batizou de “Tupã na Torre”. Um grupo de amigos que, durante anos, fez chover poesias selecionadas e editadas por Guilherme em folhetos coloridos das torres das igrejas de Ouro Preto.

 

Nosso trabalho incluía escolher as cores certas do papel fantasia, acompanhar a gráfica, negociar com as paróquias, separar os papéis com uma técnica desenvolvida por nós para que o vento pudesse levar apenas um folheto por vez. E, por fim, lançar para o além aqueles poemas.

 

Guilherme, em contrapartida, sempre acompanhou de perto minha trajetória no cinema. Amava “Arábia” e torcia pelos meus projetos com João Dumans, também seu amigo próximo. Vibrou quando “As linhas da minha mão” foi premiado em Tiradentes, me escreveu tarde da noite. Descreveu as melhores cenas imaginárias sobre a passagem de Orson Welles por Ouro Preto.

 

E me pediu pra produzir, junto com João, Marúzia e Adriana, aquela última performance. Não saiu como ele imaginara porque a ambulância adiantou e não permitiu que filmássemos. Mas isso também já não importa. Um dia Guilherme escreveu que quando a gente morre, se “mistura na terra e vira natureza, da mesma forma que, algum dia, eu e você que me lê viraremos”. Pois o tipoeta agora é isso, natureza, montanha, “Itacolomi. Espinhaço. Bico de Pedra, Itatiaia”, como escreveu nosso amigo Philipe Versiani. mar-ave-ilha, Guilherme!


Laura Godoy é produtora audiovisual

Os textos acima foram produzidos originalmente para o catálogo da mostra “Valores” do Cine OP