Marcela Dantés em usina éolica desativada no Morro do Camelinho, em Gouveia, perto de Diamantina -  (crédito: Arquivo pessoal)

Marcela Dantés em usina éolica desativada no Morro do Camelinho, em Gouveia, perto de Diamantina

crédito: Arquivo pessoal

 

João Renato Faria

Especial para o EM

 

Por baixo de sua superfície hospitaleira, acolhedora e gentil, Minas Gerais possui algumas tradições ocultas, que ficam entre sussurros e comentários transversais nas conversas do dia a dia, como se falar alto demais sobre elas acabasse por atraí-las. Seja por constrangimento, seja por um certo distanciamento respeitoso, a loucura é uma dessas.

 

Nem os loucos famosos, como o simpático Juquinha, que distribuía flores na Serra do Cipó, ou ainda o artista visual Arthur Bispo do Rosário, que passou sua vida em instituições psiquiátricas, são reverenciados ou lembrados como deveriam. Esse acanhamento mineiro, porém, não parece incomodar Marcela Dantés, que propõe abertamente um mergulho na loucura no seu terceiro romance, “Vento vazio”.

 

O livro, que marca sua estreia na Companhia das Letras, consolida a insanidade como o tema central da obra da escritora belo-horizontina, que exibe no novo trabalho toda sua capacidade de criar personagens profundos, marcantes e dolorosamente reais.

 

 

O livro se passa em uma fictícia Quina da Capivara, distrito minúsculo de apenas oito casas na Serra do Espinhaço, aos pés de um paredão de pedra e próximo de cachoeiras. No alto dessa cadeia de montanhas, foi instalada uma usina eólica, que acabou sendo fechada.

 

O temor dos moradores não é o desemprego que o encerramento da unidade causou, ou a sobreposição do modo de vida tradicional por um suposto progresso que a usina traria. O medo é pelo vento vazio, que pode chegar a qualquer momento, sem aviso e que, penetrante e persistente, leva à loucura.

 

 

O grande porém é que as quatro vozes narrativas de “Vento vazio” já são loucas, em maior ou menor grau, e os depoimentos em primeira pessoa deixam bem claro a total perda de juízo. Apesar de absolutamente distintos – um idoso, duas mulheres de idades diferentes e uma adolescente esquizofrênica –, eles são unidos pela sensação de opressão e isolamento da Quina da Capivara, por traumas passados e por relacionamentos mal resolvidos, com histórias que se cruzam e misturam.

 

“Vento vazio” abre com Miguel, homem negro de quase (ou mais de) cem anos que se estabelece na Quina da Capivara após um incêndio que mata sua família e vive isolado, remoendo o passado. A segunda parte alterna entre duas personagens. Alma, filha do recém-falecido Sebastião Ávila, proprietário da fazenda do Arroio e, portanto, autoproclamado dono de todas as terras em volta, o que inclui a Quina da Capivara, luta para sair da sombra do pai enquanto namora Paulo, um pedreiro.

 

 

Já Cícera arrisca ser uma das personagens femininas mais potentes da literatura brasileira contemporânea. Vítima de violência psicológica e física, a ponto de perder um olho durante sessão de espancamento por um ex-namorado, ela se dedica a escavar obsessivamente o terreno em torno de sua casa, enquanto lida com a morte de Sebastião, de quem era amante.

 

O encerramento fica por conta de Maura, adolescente órfã de 14 anos criada por um irmão ausente e considerada louca até mesmo pelos outros loucos do local. Seu relato completa as lacunas dos outros personagens e esclarece alguns dos mistérios da Quina da Capivara, entre eles o inesperado motivo da morte de Sebastião Ávila.

 


Oralidade

 

A construção dos personagens de “Vento vazio” é metódica e marcante. Marcados pela oralidade (vale a pena tentar ler trechos em voz alta), os depoimentos em primeira pessoa são vívidos, intensos e claramente distintos, com personalidades muito próprias. É impossível não se afeiçoar, depois julgar e, por fim, torcer contra Miguel, Alma, Cícera e Maura, por suas falhas, suas decisões erráticas e sua intensa humanidade.

 

Fica claro ainda que, no processo de escrita, Marcela Dantés usa histórias insólitas como uma base real para a construção de seus personagens. Nesse sentido, ela é uma versão do ranzinza Roberto, vivido por Ricardo Darín no filme argentino “Um conto chinês” (2011) e que tinha como hábito colecionar recortes de jornais com notícias bizarras.

 

 

A técnica já havia sido usada em “Nem sinal de asas” (Patuá, 2020), romance de estreia da escritora. Nele, Marcela Dantés parte do caso real de 2017, amplamente noticiado pela imprensa, da mulher morta que demorou quatro anos para ser encontrada em um apartamento em Culleredo, na Espanha, para criar a marcante Anja Santiago.

 

Agora, outra leva de notícias certamente inspirou “Vento vazio”. A história de Cícera tem como base uma reportagem de 2019 sobre duas idosas de Maceió (AL) que escavaram em volta da casa onde moravam, a ponto de pôr em risco a integridade do imóvel e de vizinhos. Já o impacto na saúde física e mental das pessoas que passaram a receber usinas eólicas nas suas vizinhanças tem sido divulgado pela imprensa, principalmente pelo sofrimento causado pelo barulho enlouquecedor das pás e dos geradores.

 

Toda essa preparação minuciosa de entrelaçamentos de narrativas e arquitetura de personagens tem seu ápice no capítulo final do livro. Ao dar partes dos contextos em pequenos fragmentos ao longo das outras histórias, Marcela Dantés lentamente prepara o leitor para submergir na loucura de Maura e do vento vazio da Quina da Capivara.

 

O relato violento da adolescente, que alterna inocência e perversão em um fluxo de consciência, com detalhes de sexualidade intensa e automutilação, chega a ser assustador e de difícil digestão. É como se, por fim, o vento vazio fosse na verdade o próprio livro, que leva silenciosamente as pessoas que estão lendo à loucura, sem que elas se deem conta disso – até que seja tarde demais. 

 

João Renato Faria é jornalista

 

“Vento Vazio”

Marcela Dantés
Companhia das Letras
224 páginas
R$ 74,90
Lançamento em BH neste sábado, às 11h, na Livraria Jenipapo (Rua Fernandes Tourinho, 241, Savassi).

 

TRECHO DO LIVRO

 

Nessa época da praça, eu devia ter uns vinte anos e andava doida pra namorar. Eu tinha dado um beijo só, no Josué, filho da Lucinda, mas até hoje acho que não é de mulher que ele gosta. O seu pai nem sabia quem eu era e se você acha que foi nessa época que a gente se conheceu, não foi. Antes tivesse sido, se eu tivesse namorado o seu pai com vinte anos não tinha conhecido o Éder e não tinha casado com o Éder e nem apanhado dele até o meu olho pular pra fora da cara. Me bateu porque disse que eu tava de conversa com o açougueiro, justo o açougueiro, homem fedido e descabido. Depois de me espancar todinha ele sumiu, ninguém nunca mais viu, o desgraçado deve ter achado que me matou, mas a minha mãe me encontrou no dia seguinte, foi lá na casa em que a gente morava no quarteirão da praça mesma que seu pai passava sempre, ela foi pra me levar um bolo de laranja e eu tava lá, meio desmaiada meio chorando, mas tava viva.

 

Sou Cícera e não morri de porrada de homem, Alma.