Rashid Khalidi, escritor e historiador -  (crédito: arquivo pessoal)

Rashid Khalidi, escritor e historiador

crédito: arquivo pessoal

Há alguns meses, a guerra envolvendo o exército de Israel, chefiado por um governo de extrema-direita, e o Hamas, grupo terrorista islâmico palestino, passou a ser um assunto frequente nos noticiários e nas redes sociais em todo o mundo. Os ataques mútuos, que já provocaram dezenas de milhares de mortes, reacenderam, inclusive no Brasil, uma discussão secular que envolve judeus, árabes e uma terra considerada sagrada por três religiões: o cristianismo, o islamismo e o judaísmo.

 

O momento, então, não poderia ser mais propício para o livro “Palestina, um século de guerra e resistência: 1917-2017” (Todavia), do historiador e escritor Rashid Khalidi, publicado originalmente em 2020 com o título “The Hundred Years’ War on Palestine”, ganhar edição brasileira.


Isso porque esse conflito sangrento repercutiu muito em nosso país depois que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez duras críticas às ações coordenadas na Faixa de Gaza por Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelense, chamando os ataques contra os palestinos de genocídio.

 

Ator principal de uma novela recheada de polarização política, o governo brasileiro foi alvo, então, de uma ofensiva orquestrada por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que tem boa relação com Netanyahu. Exibindo a “estrela de Davi” em suas manifestações, muitas dessas pessoas foram vítimas de desinformação e estimuladas a crer em dados descontextualizados. O fatídico vídeo de uma mulher dizendo “que é cristã, assim como Israel” simboliza bem esse fato.


O livro de Rashid Khalidi não é visceral como, por exemplo, o documentário “Born in Gaza” (2014), do espanhol Hernán Zin, que retrata de modo comovente a tragédia humanitária enfrentada por crianças palestinas que vivem em meio a escombros, ruínas, destroços e farrapos, sem qualquer tipo de saneamento básico, passando fome em um local que, para nós do mundo ocidental, mais parece o cenário de uma história apocalíptica.

 

 

O filme mostra que o território, localizado entre o Mar Morto e o Rio Jordão, na parte leste, e o Mar Mediterrâneo, do lado Oeste, é salgado por lágrimas de pessoas rodeadas pela pobreza e violência. Assistir ao sofrimento de indivíduos completamente indefesos sob bombas e mísseis é absolutamente aterrorizante.


No entanto, é impossível escrever um livro sobre a Palestina sem citar a dor das famílias, o desastre absoluto proporcionado pela guerra, os infortúnios, as tribulações e toda sorte de sentimentos que ela pode causar. Esses componentes estão no texto, mas o autor palestino-americano, considerado um dos principais historiadores sobre o Oriente Médio na atualidade, apresenta, principalmente, os interesses políticos e econômicos que levam ao cenário catastrófico.

 

Quando o assunto é um conflito tão longevo e com poucas perspectivas de trégua, esse método também pode ser didático, servindo para baixar um pouco da temperatura e ensinar a nós, que vivemos em outra realidade, alguns dos verdadeiros motivos de todas essas hostilidades.

 


O autor revisita os mais de cem anos de guerra e guia o leitor por episódios-chave da campanha colonial, como a Declaração Balfour de 1917 e os confrontos de 1948 e 1967. O trabalho é baseado em pesquisas de arquivo, material de familiares, deputados, juízes, acadêmicos, diplomatas, jornalistas e das próprias experiências do escritor para revelar o pano de fundo histórico que enquadra os acontecimentos atuais, explicando dinâmicas cruciais para compreender o presente na Palestina. Em um relato sóbrio e, ao mesmo tempo, pessoal, Khalidi reavalia as forças envolvidas e oferece, ao longo de seis capítulos, uma visão esclarecedora a respeito de uma guerra que parece não ter fim.


De acordo com o livro, três abordagens utilizadas nas últimas décadas têm sido eficazes para ampliar a forma como a realidade na Palestina é compreendida. “A primeira repousa na fecunda comparação com outras experiências de colonização, seja ela de nativos americanos, sul-africanos ou irlandeses”. A segunda envolveria o foco no grande desequilíbrio de poder entre Israel e os palestinos, uma característica de todos os conflitos colonialistas. E, por último, colocar em primeiro plano a questão da desigualdade. “Ela foi essencial para a criação de um estado judeu em uma terra predominantemente árabe, e é vital para manter o domínio desse Estado”.

 


Rashid Khalidi já publicou oito livros sobre o Oriente Médio, além de ter assinado ensaios no New York Times, Boston Globe, Los Angeles Times, Chicago Tribune e em diversas revistas. Membro de uma família de palestinos, não deixa de criticar os erros cometidos pelos líderes de seus antepassados.

 

Mas, para ele, é muito claro que o sionismo, movimento político e ideológico que surgiu com o objetivo de estabelecer um Estado judaico independente na Palestina, é um projeto de características colonialistas que teve o apoio de grandes poderes imperiais como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos. A finalidade disso, explica, seria implantar na região uma colônia branca europeia. “A maneira mais segura de erradicar o direito de um povo à sua terra é negar sua conexão histórica com ela”, destaca.


O escritor denuncia o que chama de “limpeza étnica” sofrida pelos palestinos ao longo das últimas décadas e que resultou na devastação de centros urbanos, econômicos, políticos, cívicos e culturais da maioria árabe.

 

 

“Começando logo após a Primeira Guerra Mundial, o desmantelamento da sociedade nativa palestina foi posto em ação por uma imigração em grande escala de colonos judeus europeus apoiados pelas autoridades do recém-estabelecido Mandato Britânico da Palestina, que os ajudaram a construir a estrutura de um Paraestado sionista”. Além do poder bélico, acrescenta, Israel teria se beneficiado de uma poderosa máquina de propaganda que conectou, de maneira indelével, a palavra “Palestina” a “ódio” e “terrorismo”.


Essa azeitada máquina de relações públicas foi notavelmente bem-sucedida, sobretudo nos Estados Unidos, e reverberou para vários cantos do globo. “O conflito é retratado, na melhor das hipóteses, como um confronto nacional direto, ainda que trágico, entre dois povos com direitos sobre a mesma terra. Na pior, é descrito como o resultado do ódio fanático e arraigado de árabes muçulmanos contra o povo judeu enquanto ele estabelece seu direito inalienável à sua terra natal eterna, dada por Deus”.

 

A leitura deixa claro que o Hamas viola regras de guerra utilizando armas imprecisas para ataques indiscriminados em áreas civis. Porém, se a chuva na Palestina é de fogo e aço, reflete o autor, é porque Israel usa extrema desproporcionalidade de força através de um dos exércitos mais poderosos do mundo.


Rashid Khalidi ocupa a cadeira “Edward Said” de Estudos Árabes na Universidade de Columbia. Recebeu um bacharelado pela Universidade de Yale em 1970 e um D. Phil. da Universidade de Oxford em 1974. Lecionou na Universidade Libanesa, na Universidade Americana de Beirute e na Universidade de Chicago. Leia, a seguir, a entrevista do autor de “Palestina: um século de guerra e resistência” ao Pensar.

 

 Rashid Khalidi, escritor e historiador

Rashid Khalidi, escritor e historiador

arquivo pessoal

“Essas posições corajosas (como as do Brasil) são vitais para equilibrar o extremo viés em favor de Israel por parte dos EUA e seus aliados europeus’’

 

Entrevista Rashid Khalidi, escritor e historiador

 

Seu livro detalha a história de um século de guerra e suas interferências políticas. Você acredita que esse conflito pode acabar? Por quê?


Pode acabar, mas somente quando a massiva intervenção externa em favor de Israel diminuir, e quando uma resolução baseada na justiça e igualdade absoluta de direitos para todos na Palestina puder ser alcançada, substituindo o atual sistema de apartheid feito por Israel de opressão do povo palestino. Tragicamente, tudo isso parece distante no momento.


O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, criticou duramente o governo de Israel, chegando a afirmar que há um genocídio em Gaza. Você acha que tais declarações são importantes? Como os chefes de estado devem se posicionar nesse caso? Por quê?


Essas posições corajosas são vitais para equilibrar o extremo viés em favor de Israel por parte dos EUA e seus aliados europeus. Os palestinos não estão apenas lutando contra a ocupação e opressão israelense: eles estão lutando contra os EUA e seus aliados também, e precisam urgentemente de apoio internacional contra essa poderosa aliança de forças.


Qual é a sua opinião sobre o Hamas? Como você vê o papel da ONU em relação à guerra entre palestinos e israelenses?


O Hamas surgiu e ganhou apoio no final dos anos 1980 e 1990 em resposta ao fracasso total do falsamente nomeado "processo de paz de Oslo" em produzir paz, ou em abordar os direitos inalienáveis do povo palestino à liberdade e autodeterminação. Os palestinos rapidamente perceberam que estavam muito pior como resultado do processo de Oslo, que nunca foi destinado por Israel e os EUA a levar à verdadeira independência e estado palestino.

 

Em vez disso, Oslo consolidou e reforçou a ocupação e colonização, enfraquecendo a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e fortalecendo o Hamas.As ações da Organização das Nações Unidas (ONU), da Corte Internacional de Justiça (CIJ) e agora do Tribunal Penal Internacional (TPI) foram frequentemente positivas em espírito, mas até agora carecem de implementação, muitas vezes porque os EUA têm protegido zelosamente Israel de qualquer repercussão por suas ações, proporcionando-lhe quase total impunidade.


Como professor, qual a sua opinião sobre as manifestações estudantis nas universidades dos Estados Unidos? Você acredita que elas podem contribuir para o debate sobre a Palestina? Por quê?


As manifestações são a ponta de um iceberg de rejeições populares às políticas da administração Biden e seus aliados europeus. Lideradas por jovens movidos por fervor moral, grandes maiorias nos EUA e nos países europeus desejam o fim do conflito e que Israel seja responsabilizado por seus crimes de guerra, mas são desprezadas pelas arrogantes elites pró-Israel que dominam nossa política e economia, nossas universidades e instituições culturais, mascarando seu viés ao alegar que o apoio aos direitos palestinos e a oposição a essas políticas impopulares é contaminado por antissemitismo.


Você acha que a guerra será um dos tópicos mais debatidos durante as eleições presidenciais dos EUA? Como a questão poderia impactar o resultado? Por quê?


A guerra também é um tema importante de debate político nos EUA. Se o presidente Biden não ouvir a razão e rapidamente acabar com seu apoio cego a esta guerra, a cumplicidade de sua administração em crimes de guerra e genocídio pode contribuir para sua derrota em novembro.

 

PALESTINA, UM SÉCULO DE
GUERRA E RESISTÊNCIA: 1917-2017”


- Rashid Khalidi
- Tradução de Rogerio W. Galindo
- Editora Todavia
- 432 páginas
- R$ 93,27 (livro) e R$ 69,90 (e-book