Uma homenagem a Karima Abbud, a primeira fotógrafa do mundo árabe e uma das primeiras do século 20, lembrada por seus retratos e paisagens incrivelmente naturais. Assim é o romance “Biografia de um olho” (Tabla), escrito pelo autor palestino-jordaniano Ibrahim Nasrallah.
Ele é vencedor de oito prêmios literários, entre eles o International Booker Prize for Arabic Fiction (2018) e o Katara Prize for the Arabic Novel (2020). Com delicadeza e afeto, o autor conta a história da menina que ganhou uma câmera fotográfica de presente quando tinha 17 anos e começou a tirar fotos de familiares, amigos e do cotidiano em Belém, na Palestina, onde viveu.
Nascida em novembro de 1893 em uma família cristã, Karima Abbud foi a primeira mulher palestina a abrir um estúdio fotográfico. Ela ficou conhecida por seu estilo de retrato, que era diferente daqueles cuidadosamente encenados. Em vez disso, gostava de deixar o seu trabalho refletir os estados naturais dos seus modelos.
Além do contexto envolvendo o Império Otomano e a ocupação inglesa na Palestina, “Biografia de um olho” aborda as dificuldades enfrentadas pela população local em decorrência da tuberculose. A fotógrafa morreu em 1940, oito anos antes da chamada Nakba (“Catástrofe”), quando mais de 750 mil palestinos foram expulsos, outros milhares exterminados e mais de 500 vilarejos destruídos pelos sionistas.
O livro se diferencia por revelar uma Palestina viva, cheia de gente, de belas casas, plena de história e cultura, muito diferente do que estamos acostumados a ver diariamente nos noticiários. Ao mesmo tempo, o leitor pode acompanhar a trajetória de força e superação que levou Karima Abbud a se tornar uma profissional exemplar e ser reconhecida dentro e fora de seu país, onde chegou a ter seis estúdios. O trabalho da fotógrafa também contribuiu para mostrar que a Palestina não era uma terra abandonada. Em 2016, na data de seu 123° aniversário, o Google fez uma homenagem a Karima e destacou que, “através de sua arte, podemos enxergar as belezas que ela observou há um século”.
Karima foi uma mulher empreendedora que desafiou as convenções de gênero para se destacar em uma profissão dominada por homens. Autoproclamada “Lady Photographer”, capturou vastas paisagens, muitas das quais não existem hoje.
Naquela época, o movimento sionista contratava fotógrafos para retratar a Palestina como uma terra árida, “sem povo” e pronta para ser ocupada pelo “povo sem terra”. Porém, as imagens feitas por Karima Abbud serviram como prova de que a região não era desabitada. Seu amor pela fotografia foi maior do que qualquer guerra.
Nascido em 1954, filho de pais expulsos da Palestina em 1948, Ibrahim Nasrallah passou a infância no acampamento de Alwehdat, na Jordânia. Ele se formou em educação e psicologia e foi professor na Arábia Saudita. Ao regressar à Jordânia, trabalhou como jornalista para diversos veículos de imprensa no país.
Leia, a seguir, trechos da entrevista com Nasrallah que será publicada no site da editora, realizada pelos editores da Tabla e pelo professor e tradutor Felipe Benjamin Francisco, e que o Pensar antecipa nesta edição.
O impacto da Nakba
Como nasci em 1954, a Nakba ainda era muito recente. Por isso, vivi todas as particularidades da Nakba como criança. Em 1960, quando tinha 6 anos, eu estava vivendo a Nakba em todos os seus aspectos e efeitos, o que me impactou muito como criança naquele momento. E sabemos que a infância é uma das fases que mais influência tem sobre o ser humano. Por essa razão, essa grande experiência que tive – quando o povo palestino, meus pais e meus parentes tiveram que recomeçar do zero, vivendo em tendas, sofrendo e padecendo de enfermidades – se reflete no meu trabalho.
A Nakba deixou uma marca profunda em mim, mas o acampamento e a vida ali também me marcaram grandemente. Isso me levou a escrever uma série de romances sobre esse acampamento. E o mais importante deles é o meu último livro, “Minha infância até agora”, que fala de forma ampla sobre minha vida nesse lugar. Antes desse livro, eu já havia escrito “Pássaros da advertência”, “Dois apenas”, “As oliveiras das ruas”, entre outros.
Além de ter composto muitos poemas sobre essa experiência que nunca deixou de me impactar. Escrevi o livro “Minha infância até agora” há dois anos apenas, e considero esse romance central dentro da minha experiência literária, tanto por ser uma autobiografia, como por ser um romance, e por ser também uma história de amor que atravessa períodos de guerra vividos pelos palestinos desde a Nakba até o momento pós-covid.
Sobre “Biografia de um olho”
Quando escrevi o romance – ou antes mesmo de escrever sobre Karima Abbud –, mexeu muito comigo e chamou minha atenção o fato de ela ser uma artista, para além de uma grande fotógrafa. No mundo da fotografia, ela é considerada uma pioneira, uma das pioneiras no mundo, e não só na Palestina. Mas enquanto indivíduo, na Palestina e no mundo árabe, ela é realmente pioneira. E ela não é pioneira apenas no mundo da fotografia, eu acredito que ela foi uma mulher rebelde, num tempo em que as mulheres – e isso até recentemente –, em muitas regiões, não tinham permissão para dirigir um carro.
Ela tinha o próprio carro nos anos 20 do século passado e viajou por diversas cidades fotografando. Além disso, a fotografia era um projeto seu contra o projeto sionista, que visava dizer que a Palestina era uma terra sem povo. Ela fotografava a terra, o povo e toda essa civilização palestina excepcional. Ela fotografava tudo o que era belo: a dança, as apresentações de balé, as pessoas nas suas casas. Todas essas questões são importantes para a Palestina e foram importantes para mim também. Porque, como eu disse, sou fotógrafo. E eu desejava refletir sobre o trabalho da fotografia, sobre o processo, sobre o mundo da fotografia. Tenho, inclusive, outro romance em que falo de uma fotógrafa.
E se eu não fosse fotógrafo (o autor do livro já fez quatro exposições fotográficas), creio que seria difícil escrever esse romance. Pois eu compreendo a foto da mesma forma que ela. Contudo, como você sabe, esse romance também é, como falávamos, sobre engajamento... Este romance é dedicado à vida, à beleza, à arte da fotografia, a tudo, ao lugar. É a defesa do lugar por meio da foto. Neste romance, talvez não se ouça um disparo de arma sequer, no sentido de que se trata de um romance pela vida, é a resistência por meio do belo. E isso é o que fazia Karima Abbud.
“Trilogia dos sinos”
A trilogia (“Biografia de um olho” é parte integrante) foi escrita para render uma grande homenagem aos cristãos palestinos, parte do povo palestino, por seu papel fundamental do ponto de vista cultural, artístico, patriótico e militante, sem falar no âmbito educacional e cultural. Todas essas questões mereciam que um escritor muçulmano – com muitas aspas –, como (eu) Ibrahim Nasrallah, dissesse isso a eles. Foi importante que um escritor muçulmano escrevesse essa obra, dirigindo-se a todos esses palestinos cristãos nativos, que estavam presentes na Palestina antes da chegada do Islã. “Aissa” [Jesus para os muçulmanos] é palestino também.
Então, dizer a eles “obrigado”, é dizer “vocês nos aportaram muito”. Nesse grande agradecimento também há engajamento em dizer obrigado a quem merece. É claro que eles não esperam reconhecimento, pois exercem o seu papel e seu engajamento de coração, porque estão defendendo sua terra, suas casas, sua vida, suas igrejas, suas mesquitas, sua história e o Jesus deles, que também é o nosso.
A literatura como ‘história paralela’
“Eu acredito que a literatura, ou o romance, fundamentalmente, é a ‘história paralela’. Sinto que o romance conduz à história, sendo que a história é deturpada por eles todos os dias. Mesmo que vejamos um acontecimento com nossos próprios olhos, notamos como eles [sionistas] deturpam a história, então imagine a história mais antiga, aquela que não testemunhamos, de quando ainda não estávamos vivos. Dessa forma, você retorna à história para reescrevê-la a partir do que convém às pessoas que a viveram.
Por isso, eu creio no relato histórico como memória adicional, ou uma outra memória, que se adiciona à memória pessoal, humana, de um povo, de indivíduos, de um grupo… Como se a história fosse também nossa tentativa agora de sair e dizer “aqui mentiram para nós e aqui disseram a verdade”, e todas essas questões. Para que possamos transmitir essa história como se deve ao longo das gerações. E, com certeza, a fotografia sionista era uma parte desse projeto de falsificação da história, quando fotografavam os campos vazios e, algumas vezes, faziam uma encenação. Traziam um homem velho e colocavam roupas nele para parecer um camponês, quando na verdade se tratava de um soldado.
Davam uma enxada na mão dele e diziam: “Cave, você é um camponês judeu que trabalha nesta terra que vai precisar de gente para cultivá-la”. Tudo isso era mentira, era atuação de fato. Fabricava-se o mito. Não era uma imagem real que se via nas ruas. Por outro lado, Karima resgatou a verdade fotografando a terra, as cidades, as casas, as escolas, as igrejas, as mesquitas e todos os lugares da Palestina.
Palestina nos anos 1930 e Palestina atual
Não mudou nada em absoluto, dos anos 1930 até hoje. Acontece que nos anos 1930 as coisas se davam quase que em segredo. Mas agora nós vemos tudo ao vivo, com imagem e som, vemos o alinhamento pleno com Israel. Tenho a impressão que as lideranças árabes passaram a ser mais “israelenses” que os próprios israelenses.
Claro que tudo isso está ligado ao imperialismo no mundo e à influência dos sionistas. E ligado à incapacidade desses governos de ter um posicionamento humanitário. Não estou exigindo deles um posicionamento patriótico (árabe), mas não deixa de estar acontecendo massacres e um genocídio. O genocídio é contínuo. Há quem diga que está acontecendo um genocídio e há quem diga que não. Mas o genocídio é parte do projeto sionista... Eles sempre mataram. No passado, matavam as pessoas na Palestina e as executavam. Depois, na Nakba [em 1948], mataram. Depois, na guerra de junho de 1967, mataram. Em Sabra e Chatila, mataram. Ontem, hoje e todo dia vemos palestinos mortos. Eles matam idosos e crianças na porta de casa, no caminho para a escola.
O genocídio é contínuo sempre. É um processo contínuo. Será que temos que esperar serem assassinados dez mil, trinta mil, cinquenta mil para dizer que aconteceu um genocídio? O genocídio acontece quando é morto um grupo de pessoas num único conflito. Nesse conflito, ao longo dos últimos cem anos, morreram centenas de milhares de palestinos. O genocídio está acontecendo.
Não vamos esperar para dizer que genocídio é só o que está acontecendo em Gaza agora. O genocídio está acontecendo e é contínuo. O que acontece em Gaza é a continuação de um genocídio iniciado há tempos contra o povo palestino. Por isso, o que os governos árabes estão fazendo, ao se aliar com o sionismo [Israel] dessa forma, é participar diretamente desse genocídio.