
Carla Madeira reflete sobre processo criativo de seus livros
Texto está em box que chega às livrarias em julho com os romances 'Tudo é rio', 'Véspera' e 'A natureza da mordida'
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Eu escrevo.
Aceito essas palavras juntas que, ao serem ditas, abrem parágrafos.
Fragmentos de um processo criativo que não se deixa dissecar.
Eu e escrevo.
Duas palavras enormes, dois rios que nascem no mar,
percorrem a medida dos acontecimentos
e desaguam na fonte de minha vida.
Imaginar é sempre revelar um pouco de si mesmo.
Às vezes, na agônica escolha, as palavras pesam como se fossem um dicionário completo, capa dura, em letras mínimas, sem ordem alfabética.
Todo o significado possível está lá. Não sei onde.
Antes da palavra, o nome de todas as coisas é desamparo.
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As nuvens também me rondam, e eu só posso chovê-las se estiverem encharcadas.
Precipito-me.
Onde não há borrachas ou teclas delete, conjugo verbos hostis:
abandonar, rasgar, rasurar, desistir.
Mas se levo adiante as águas, não há quem me impeça de lavrar.
Lavrar é bordar (descobri há pouco esses sinônimos-contrários, um quer minhas mãos pesadas, o outro, as quer leves).
Eu quero a linha que atravessa do direito ao avesso das coisas – enxada,
que cirze o oculto ao visível – raiz.
Essa linha que nos mantém a salvo das coisas separadas.
Luz e sombra: minha árvore frutífera.
No exato instante em que escrevo,
sou o Atlas que carrega o firmamento, e não a terra.
Todas as estrelas sobre meus ombros,
mas só posso avistá-las na escuridão da luz que não me alcança.
Sim, o escuro é uma luz distante. Está vindo.
Eu escrevo.
Aceito esse tempo presente indicativo de um ato contínuo.
Os acontecimentos me mordem anárquicos, o acaso me inspira.
O fugidio me pesa uma carreta de minério sobre o peito.
Montanhas inteiras dentro dela. Meu quintal se esvai sobre rodas.
Todo aquele que escreve vem de alguma infância – a palavra mais antiga de todas.
Mal a reconheço, tanto tempo eu não a via.
Escrevo saudade todo dia.
Do nada, vou sendo feita.
Meu sistema nervoso é tecido em dedos de prosa.
Tenho a plasticidade de ser o que digo. De ser o que ouço. De ser os sons de todas as vozes que vieram antes e viraram corpo.
Meu corpo.
Por vezes, a voz que o ouvir me deu desafina: eis a perturbação.
Piaba que a água profunda cospe.
Eu a persigo.
Ela escorrega.
Eu a noto.
A fenda.
A falha.
A louça lascada.
Meu espaço de manobra é a imperfeição.
(...)
PS.
Nasci em 1964, em Belo Horizonte. Filha de um erudito matemático e de uma mulher sábia, de olhos e mãos encantadas, que mal completou o fundamental. Cresci entre razão e emoção, entre cidade grande e interior, entre crer e questionar. Enquanto fazia um curso superior de matemática na Universidade Federal de Minas Gerais, embora tivesse facilidade e interesse, fui ficando triste. As linguagens artísticas me faziam falta: cantar, compor, escrever, pintar.
Mas ser artista, assim de verdade, no oficial da palavra, era algo perigoso para meus pais religiosos e enorme demais para mim. Ainda é imenso, sempre me soa pretensioso. Fui ser publicitária. Larguei a matemática, sem trancar matrícula, movimento radical para uma libriana, e trouxe a alegria das linguagens artísticas para perto. Há 35 anos faço a direção criativa da Lápis Raro, uma agência de Comunicação da qual sou uma das sócias.
Em 2014, já mãe de dois filhos e no terceiro casamento, publiquei meu primeiro romance, “Tudo é rio”, depois vieram “A natureza da mordida” e “Véspera”. Se dependesse de mim, eu gastaria mais do que sete dias para criar o mundo, levaria, de propósito, a vida inteira.
Sobre o texto
A editora Record lança em julho “Obra reunida”, box com os três romances de Carla Madeira: “Tudo é rio”, “A natureza da mordida” e “Véspera”. Com novo projeto gráfico, os livros contarão com prefácios de Mia Couto, Luiz Antonio de Assis Brasil e Tatiana Salem Levy.
O box, com projeto gráfico da designer Flávia Castanheira, tem imagens da artista plástica inglesa Jess Allen e comemora os dez anos de lançamento de “Tudo é rio”, inicialmente publicado pela mineira Quixote +Do. Além dos livros, o box inclui o livreto “Fragmentos do que não se pode ter por inteiro”, com três contos de Carla Madeira e um texto com reflexões da autora mineira sobre o seu processo criativo, com trechos publicados nesta edição do Pensar.
“Obra reunida”
• Box com os romances “Tudo é rio”, “A natureza da mordida” e “Véspera”
• De Carla Madeira
• Editora Record
• 720 páginas
• Nas livrarias a partir de 15 de julho
• R$ 199,90