Escritura-caricatura de Franz Kafka feita pelo artista plástico de BH Marco Prata e o livro "Diários", um impressionante retrato da mente do escritor

Escritura-caricatura de Franz Kafka feita pelo artista plástico de BH Marco Prata e o livro "Diários", um impressionante retrato da mente do escritor

PAULO NOGUEIRA/EM/D.A.PRESS

 

“Odeio tudo que não tenha a ver com literatura, entedia-me conversar (mesmo que a conversa seja sobre literatura), entedia-me fazer visitas, os sofrimentos e as alegrias de meus parentes entediam-se até o fundo da alma. Conversas subtraem a importância, a seriedade e a verdade de tudo aquilo que penso”.

 

Foi o que escreveu o escritor tcheco Franz Kafka em seu diário, em 21 de julho de 1913. A editora Todavia lançou, em 2021, “Franz Kafka - “Diários: 1909-1923”, com tradução de Sergio Tellaroli, volume com quase 600 páginas, que disponibilizou pela primeira vez no Brasil toda a abrangência dos diários do escritor, a mente atormentada, sua angústia e sua solidão, alegrias e frustrações, construção de obras, pensamentos cotidianos, correspondências e relações amorosas, criações literárias completas e incompletas, relações familiares e viagens...

 

E inclui a íntegra de “O veredicto”, um reflexivo e trágico conto de 20 páginas, escrito entre as 22h de 22 de setembro e as 6h de 23 de setembro de 1912. A seguir, algumas “confissões” de Kafka pinçadas dos extensos “Diários”.

 

3 de outubro de 1911
“...Me assusta muitíssimo que tudo em mim esteja pronto para o trabalho literário, um trabalho que seria para mim uma solução divina que me faria verdadeiramente vivo, ao passo que, no escritório, e por causa de um mísero documento, privo um corpo tão apto à felicidade de um pedaço de carne.”


8 de dezembro de 1911
“Sinto agora, como já sentia à tarde, um grande desejo de, pela via da escrita, arrancar de mim todo esse meu estado angustiante e de, da mesma forma, como ele vem de minhas profundezas, registrá-lo nas profundezas do papel, ou de registrá-lo de uma maneira que ele possa abarcar em mim todo o escrito. Não se trata de um deseja artístico.”


23 de setembro de 1912
“Esse conto, 'O veredicto' eu o escrevi na noite de 22 para 23, de uma vez só, das dez da noite às seis da manhã. As pernas, enrijecidas de ficar sentado, mal consegui tirar de debaixo da escrivaninha. O cansaço terrível e a alegria com a história que se desenrolava diante de mim e com meu avanço como se por uma torrente. Várias vezes durante a noite suportei meu peso sobre as costas.”

 

 


21 de julho de 1913
“Preciso passar muito tempo sozinho. Tudo que consegui foi mérito tão somente dessa solidão”


14 de agosto de 1913
“O coito como castigo pela felicidade de estar junto. Viver o mais asceticamente possível, mais até do que um celibatário; essa representa, para mim, a única possibilidade de suportar o casamento. Mas e ela?”


6 de janeiro de 1914
“O que eu tenho em comum com os judeus? Pouco tenho em comum comigo mesmo e deveria, bem quietinho, me postar a um canto, satisfeito, por poder respirar”.

 

 


9 de março de 1914
“Não vou esquecer F[elice Bauer] e, portanto, não vou me casar. Isso é absolutamente certo? Sim, posso asseverar; tenho quase 30 anos, conheço F.. Há quase dois anos e já hei de ter, portanto um quadro geral da situação”.


15 de agosto de 1914
“Estou escrevendo há dois ou três dias, tomara que continue assim. Tão protegido e enfiado no trabalho como há dois anos não estou, mas, de todo modo, encontrei um sentido, minha vida de solteiro, regular, vazia e insana, possui uma justificativa. Posso de novo manter um diálogo comigo mesmo e já não fito o vazio absoluto. Somente dessa maneira pode haver alguma melhora para mim”.


29 de julho de 1914
“Certa noite, depois de uma grande discussão com o pai – que lhe repreendera a vida dissoluta, da qual demandou fim imediato –, Josef K., filho de um rico comerciante, saiu sem um propósito específico, tomado apenas por completa insegurança e fadiga, rumo à casa da associação dos comerciantes, que, apartada, erguia-se nas proximidade do porto. O porteiro fez uma profunda mesura. Josef lançou-lhe um olhar de passagem, sem cuprimentá-lo. 'Esses subalternos mudos fazem tudo o que se espera deles', pensou. 'Se eu imaginar que me observa com olhares inconvenientes, é o que ele fará de fato'. E, de novo, voltou-se para o porteiro sem cumprimentá-lo; este, por sua vez, virou-se para a rua e pôs-se a contemplar o céu nublado.”

 

 

6 de julho de 1916
“...Apegar-se ao livro. Mas, de novo: dores de cabeça, saltar da janela lá do alto, mas sobre a terra amaciada pela chuva, no qual o impacto não será fatal...”


6 de julho de 1919
“Sempre o mesmo tormento, o desejo, o medo. Mas, por certo, mais tranquilo do que antes, como se estivesse em curso um grande desdobramento cujo tremor distante sinto. Já disse demais.”

 

16 de outubro de 1921
“Não invejo um casal específico, invejo, sim, todos os casais; mesmo quando invejo um único casal em particular, o que invejo é, na verdade, a felicidade matrimonial em suas infinitas e múltiplas formas; a felicidade de um casamento em particular provavelmente me levaria, mesmo na melhor das hipóteses, ao desespero.”


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“Não creio que haja pessoa cuja situação interior se assemelhe à minha; posso, é verdade, imaginar pessoas assim, mas que o corvo secreto sobrevoe constantemente sua cabeça, como faz em torno da minha, isso nem sou capaz de imaginar.”


21 de janeiro de 1922
“Sem antepassados, sem casamento, sem antecedentes e com uma vontade louca de desfrutar de antepassados, de um casamento, de descendentes. Todos estendem-me a mão – os antepassados, o casamento, os descendentes – mas sua mão está longe demais para mim.”


12 de junho de 1923*:
“Cada vez mais angustiado ao escrever. É compreensível. Cada palavra virada na mão dos espíritos – esse movimento de mão é seu gesto característico – transforma-se numa lança voltada contra quem fala. Sobretudo uma informação como essa. E assim até o infinito. O único consolo seria: vai acontecer, queira você ou não. E o que você quer ajuda pouquíssimo. Mais do que consolo é: também você dispõe de armas.”


* Última anotação de Kafka nos diários. Ele morreu um ano depois, em 3 de junho de 1924, exatamente um mês antes de completar 41 anos, vítima de tuberculose.

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