Por Reiner Stach
“Em nenhuma de suas empreitadas literárias, Kafka partiu de um pensamento sem corpo, de uma ideia geral ou do esqueleto grosseiro de uma ação. Ele nunca tratou imagens e metáforas como ilustrações a posteriori, nunca as buscou. No princípio – eis a primeira lei no universo de Kafka – está a imagem, e não são poucos os seus textos que podem ser lidos como descobramentos de uma única e memorável imagem, como demonstração daquilo que uma imagem oferece.
Kafka já estava familiarizado com imagens de pessoas degradadas em animais havia muito tempo, provavelmente desde a infância. Seu pai [autoritário] adorava rechear suas falas de palavrões brutais, e sempre usava essas imagens. A cozinheira desajeitada era uma “vaca”, o ajudante da loja, tuberculoso, “um cão doente”, e filho, que se sujava à mesa de jantar, um “porcão”. Apenas um ano antes, Hermann praguejava sobre Isaac Lowy [ator de teatro]: “Quem se deita com os cachorros acordo com pulgas”. Não foi a primeira vez que essa frase feriu os ouvidos de Kafka, mas foi a primeira vez que ele protestou cona o que ouviu”.
Desde cedo, Kafka deve ter associado a imagem de animais com uma insignificância terrível. Como criança atenta, ele certamente notou que ser bicho era uma maidição, não só na boca do pai, mas também na realidade. (...) O animal é considerado mudo, porque suas formas de expressão não são consideradas “linguagem”. E, sobretudo, o animal não conhece a vergonha, apresenta o seu corpo de tal forma que relembra o homem constantemente de sua própria animalidade, e isso é penoso. As consequências são o asco, a repulsa e a violência contra essas parentes demasiado próximos.
Mas os piores são os insetos. Chamar um homem de praga é a maior ofensa que pode haver: tratá-lo como praga, matá-lo sem nem sequer olhar para ele, sem dar a ele nenhuma atenção, parece impossível, e incompatível com a dimensão comunicativa com qualquer gesto humano. O extermínio de um inseto, de toda uma espécie de insetos, não significa nada para nós. Esses seres têm um senso de propósito vital que só conseguimos ver como uma coisa negativa, prejudicial, como agressão programada, que dispensa nossos escrúpulos.
Anos mais tarde, enquanto lutava contra uma fobia de ratos tentou dar uma explicação psicológica – o que não era do seu costume – para esse atavismo, que não relação com nenhuma ameaça real: “Certamente ele [o medo de ratos] está ligado, assim como o medo de insetos, ao modo inesperado, inoportuno, inevitável, até certo ponto silencioso, obstinado, deliberadamente, secreto como esses animais aparecem, a sensação que eles escavaram as paredes centenas de vezes por todos os lados e ali ficam à espreita, de que, com a noite que lhes pertence e sua miudeza, eles nos são distantes, e por isso anda menos vulneráveis a nós. A miudeza, especialmente, dispara uma importante parcela de medo, a ideia, por exemplo, de que pudesse haver um animal com aspecto idêntico ao de um porco, portanto, divertido em si, mas que fosse tão pequeno quanto uma ratazana e meio que saísse ofegante de um buraco no chão – é uma ideia terrível.”
* Trecho do capítulo 14 - “Da vida das metáforas: A metamorfose”, do livro “Kafka: Os anos decisivos” (“Kafka: Die jahre de entscheidungen” - vol. 2), segundo volume da trilogia sobre Franz Kafka escrita pelo biógrafo Reiner Stach
SOBRE O BIÓGRAFO
Reiner Stach nasceu em 1951, na Alemanha. Estudou filosofia, literatura e matemática. Foi o responsável pela descoberta do espólio de Felice Bauer [a primeira noiva de Franz Kafka] nos EUA. É autor de extensa trilogia sobre o escritor tcheco.
“KAFKA: OS ANOS DECISIVOS”
• Reiner Stach
• Tradução: Sofia Mariutti
• Editora Todavia
• 651 páginas
• R$ 139,90 (físico)
• R$ 76,90 (digital)