Meu primeiro contato com a produção artística de Berna Reale foi no ano de 2012, durante um seminário que debatia a cena expandida na arte contemporânea. O evento era promovido pelo curso de Direção Teatral da Universidade Federal do Rio de Janeiro e reunia um público diverso que tinha como traço comum o interesse pelas artes vivas. Fui assistir à apresentação de Berna e saí de lá transtornado por uma experiência estética intensa. Me senti perturbado pelo fato de tal experiência ter ocorrido sob as condições epifânicas do encontro com as performances fotográficas e, simultaneamente, pelo conhecimento do processo criativo descrito pela artista. Eu falaria sobre corpo, cena e performance no dia posterior ao da exposição de Berna. Após escutar a apresentação dela, tive a certeza de que não poderia tratar do tema que me foi proposto sem abordar o trabalho de Reale.
Passados 12 anos daquele encontro, volto a escrever sobre as performances de Berna Reale balizado por pontos semelhantes para a reflexão: a cena, o corpo e o gesto na imagem. Berna é uma artista visual que leva seu corpo para a imagem como modo de apresentar as violências as quais estamos expostos. Seus enquadramentos críticos da vida social são compostos levando em conta a qualidade de arte híbrida própria à performance. Nos limites desse atributo, as instalações e as performances da artista se fazem na combinação de dispositivos técnicos, em especial a fotografia e o vídeo, e estéticos. Os aspectos estéticos são acionados por Berna não como conjunto de valores pertencentes ao belo ou à harmonia das formas, mas como conjunções para um ser/estar juntos. Enquanto manifestação artística, a performance estabelece uma conexão com a memória discursiva da audiência. A memória transcende as vidas próprias e oferece a compreensão das vivências históricas. Quero dizer que há uma negociação de sentido entre o ato performático e a experiência do público para que a performance faça o corpo sentir e buscar entender a sensação.
Me arrisco a afirmar que as criações de Berna podem ser pensadas como elaborações artísticas para a expressão crítica das formas desiguais do viver. Assim, as performances apresentam práticas experimentais, constituídas por atos e gestos simbólicos que expressam diferentes maneiras de se experienciar o corpo. A artista convoca a audiência para um jogo a ser realizado no campo do sentir/sentido. A convocação é feita pelo corpo dela manifesto na imagem perante a audiência. O convite para a audiência ocorre sob uma perspectiva totalmente distante daquela que entende o expectador como um corpo passivo que apenas observa uma obra. Quem vê é convidado a reconfigurar os atos e gestos simbólicos do corpo na imagem conectando-os às suas vivências. Berna Reale invoca os corpos em suas performances e instalações, incluindo aí o seu próprio, sob o estado de vulnerabilidade. A noção de vulnerabilidade está ligada em ideias como as de dano, de perda, de cuidado, de exploração, dentre outras. O reconhecimento das situações de vulnerabilidade exige compromissos morais e políticos para com os corpos. O vulnerável é o sujeito que está sempre em situação de riscos físicos ou morais, fragilizado em relação aos outros grupos sociais. Nessa conjuntura, os contextos social e político podem ser agravantes da situação de vulnerabilidade. A esta altura, é preciso ressaltar que a vulnerabilidade é imanente à condição de sujeito. Entretanto, quando o cenário social e político agrava as condições de vulnerabilidade, as circunstâncias do sujeito são de precariedade. Ao meu ver, reside nesta mudança de percurso, da vulnerabilidade para a precariedade, a crítica da artista.
As imagens criadas por Berna Reale não são representações de algo. São imagens apresentação, expressões visuais políticas dos acontecimentos. Elas não se restringem a apenas o resultado do bom manejo da técnica, integrando uma galeria de belas imagens. Elas são visualidades com significados histórico, social e culturalmente constituídos. O sentido dessas imagens está sustentado na teia tecida entre as experiências da artista e as da audiência. A história e a experiência são conexões de vivências e vivências estão sempre carregadas de afetividades, inteligências e vontades. A convocação do potencial crítico das imagens no trabalho de Berna exige de nós reexaminar aquilo que entendemos por imagem, bem como a implicação dos corpos nos procedimentos de produção e percepção das mesmas. Precisamos interromper nossa compreensão de imagens como literárias e literais, como reprodução, como algo figurativo. Parar essa maneira de compreender possibilita o rompimento com a ideia de imagem como figura figurada, figura fixada em um objeto representacional, para ir ao encontro da imagem como figura figurante. Dito de outro modo, uma imagem guarnecida de perguntas, de dúvidas, de indagações que irrompem o espaço imaginal para tudo que nele possa se fazer visível.
Carlos Magno Camargos Mendonça é professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMG, bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e Co-coordenador do Núcleo de Estudos em Estética do Performático e Experiência Comunicacional (NEEPEC/UFMG)
'Ruídos'
• Exposição de Berna Reale
• Curadoria de Silas Martí
• CCBB – Galerias do Térreo
• Praça da Liberdade, 450, Funcionários, BH
• Visitação até segunda-feira, 10 de junho, das 9h às 21h