Schneider Carpeggiani - Especial para o EM

 

O tarado do bairro, a prostituta da primeira noite, e também aquela já experiente nas mil e uma, a adúltera, a viúva, a normalista, o doutor de vida dupla, o taxista informante, o vampiro de garras afiadas pelas madrugadas dos subúrbios... Todos eles vestindo fantasias, tirando (ainda que parcialmente) a roupa e povoando a Curitiba inventada por Dalton Trevisan, 99 anos completados ontem, Prêmio Camões de Literatura e antítese do escritor público e autobiográfico, o ícone maior dos nossos tempos do “eu, eu, eu”. “Dalton Trevisan definitivamente não é pop”, cravou Silviano Santiago sobre o colega, numa definição tão precisa que chega a intimidar.

 

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Sem ser pop, Trevisan, ainda assim, criou um notório personagem de si próprio, que desafia os nossos esforços de domesticação midiática. Vez por outra, surgem na imprensa depoimentos e perfis, que tentam dois caminhos que só levam ao beco: ou criam auras de mistério ou buscam desmistificar a “lenda” de vez, cravando a estaca bem no peito do monstro. Teimam em confundir o autor com o seu personagem mais famoso, Nelsinho, o vampiro de “O vampiro de Curitiba” (1965), e falam de alguém misterioso e incomunicável, isolado num casarão da capital paranaense. Ou dizem que não é nada disso, que se trata de um cidadão solar, cercado por amigos, como qualquer outro. Procurar o escritor e esquecer a obra, nossa arapuca maior.

 

(Fascinado pelas duas possibilidades, certa vez estive em Curitiba em busca de Dalton Trevisan, do vampiro ou de alguma coisa que precisava continuar para além dos livros. Em todos os lugares, a impressão é que só eu não havia encontrado Dalton no meio do caminho. “Ele esteve aqui agora mesmo”, “Ele passou por ali há pouco”, escutei diversas vezes. Não vi coisa alguma, porque só havia nada para ver. Definitivamente, não estamos nos referindo a algo pop).

 

Esse mês retornam às livrarias, pela editora Record, três dos livros mais importantes de Trevisan: “Cemitério de elefantes” (1964), “Macho não ganha flor” (2006) e “Contos eróticos” (1984), antologia organizada pelo próprio autor e alicerce dessa resenha. São nos escritos ditos eróticos que talvez fique mais evidente a marca maior da produção do curitibano: a repetição, afinal é do detalhe que reaparece, na sua insistência ao longo das histórias e das páginas, que o que entendemos por erótico faz sentido. Desejar é voltar ao local do crime. Penso nos porquês dessa repetição e recordo a definição da pesquisadora de literatura erótica Eliane Robert Moraes (USP), que parece tão bem servir de epígrafe para Trevisan: “Pouco se sabe do corpo erótico. E esse pouco, na literatura, é legião”.

 

Releio “Contos eróticos” e tento seguir o fio de Ariadne do que retorna, como assombração, conto após conto. Sinalizo aqui algumas dessas repetições. Primeiro, o gosto por diminutivos. O uso recorrente dos sufixos “inho” e “inha”, que, num gesto sexual da língua, alongam a palavra para assim diminuí-la e aproximá-la da coisa em si. São inúmeros os casos: “Você é broinha de fubá mimoso”; “pastinha lambida no crânio reluzente”; “menininha”, “noivinha”, “engraçadinha”, “chorinho brejeiro”; “sapatinho bordado”; “cada vez uma pecinha caía”. O único romance escrito por Dalton Trevisan tem justamente um diminutivo como título, “A polaquinha”, de 1985.

 

As histórias de “Contos eróticos” não costumam ocorrer ao longo da manhã, com o sol acordando a cidade do transe sonolento. Elas se passam pela madrugada, no período noturno, em que o vampiro Nelsinho ataca, como no conto “Boa noite, Senhor”. Ou na hora do almoço, quando se pode fugir por algumas horas: “Meio-dia em ponto telefonou para a mulher: uma conferência, cliente importante, chegaria meia hora mais tarde”, em “Visita à alcova de Cetim”. Ou mesmo já no meio da tarde, com o arrependimento de se estar “às quatro da tarde, em cueca e meia preta, nos braços de uma bailarina”, em “Ó Suave Cantina de Ninar”.

 

As vozes dos personagens não costumam estar límpidas. Há sempre um pigarro e uma rouquidão na fala de quem deseja. “-Está rouca, você. Mais uma coisa. Sobre orgasmo”, pontua um trecho de um dos contos mais famosos de Trevisan, “Cântico dos Cânticos”, construído na forma de um longo diálogo (ou de um longo poema em forma de diálogo) e de título emprestado de um dos poucos livros da Bíblia que não citam o nome de Deus.

 



 

Nesse universo de desejos que precisam de disfarces, os personagens aparecem assustados que alguém interrompa o ato, escute atrás da porta, reconheça a placa do carro. O alarmante perigo dos transeuntes bisbilhoteiros na frente do motel. Em “Mister Curitiba”, o encontro com a prostituta vestida de estudante é invadido pelo toque do telefone: “Ele pensou: é minha mulher. Ela descobriu. Ouviu tudo, a curruíra nanica. Os dois suspensos, sem piar nem bulir. Pelo toque irritado é ela. Mal parava e tocava de novo. Se insiste, é porque é sério.” Longe de ser um problema, o medo da descoberta é parte intrínseca da encenação, o álibi para o orgasmo. O marido ou a mulher e os parentes todos a vigiar em cada esquina. Quem deseja não tem paz.

 

“Contos eróticos” é excelente introdução a Dalton Trevisan, talvez ainda mais certeira que o volume “Antologia pessoal”, lançado ano passado. Num mundo onde o erótico parece já estar tão visível, tão sem culpa e tão exposto, os seus personagens teimam em habitar um universo pelo avesso. É lá que os verdadeiros vampiros ainda estão com água na boca. Com mania de você.

 

 

Schneider Carpeggiani é crítico literário e editor

 

“Contos eróticos”
De Dalton Trevisan
Record
128 págs
R$ 49,90

 

Trechos

 

"A cama, o espelho, a cadeira. Abriu a bolsa: Quem é essa bandida? Carteira de identidade, conta atrasada de luz, duas balas azedinhas, cigarro e, no envelope azul, cinco notas. Mais que depressa ele surrupiou uma e travou o fecho. Arrumou a roupa na cadeira, apenas de relógio no pulso e meia preta. Envolveu o travesseiro na camisa branca e, afastando a colcha encardida, deitou-se no lençol quase limpo. Manchas de goteira no forro, o fio negro com a lâmpada nua. Na parede números rabiscados de telefone. Onde o abajur lilás na alcova de cetim? Lá fora gritos de crianças, galinhas cacarejavam, um
apito de trem."

(De “Contos eróticos”, de Dalton Trevisan)

 

"A moça fechou a porta, o jarro de água quente na mão, duas toalhas no braço. Sumiu ao pé da cama (sob a janela a pata com os patinhos chapinhando na poça), ergueu a cabeça, piscou o olho risonho:
— É todo branquinho!
Ele não retribuiu o sorriso."

(Do conto “Visita à alcova de cetim”)

 

"— No confessionário. Contei o caso com o João. Pedi a absolvição: “Eu pequei, Padre”. Não, minha filha — ele respondeu —,quem pecou fui eu. “Como assim, Padre?”Me apaixonei por você.Óculo faiscando atrás da grade,
cochichava palavras imundas. Até que fiz o sinal da cruz e saí chorando.
— Mais uma prova de que o convento não serve."

(Do conto "Mocinha de luto")

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