Stefania Chiarelli

Especial para o EM

 

Ao mapear a produção contística brasileira nos anos 1970, Alfredo Bosi produziu “O conto brasileiro contemporâneo”, estudo de referência de nossa literatura. Era o tempo de chumbo da ditadura, mas de apogeu para a narrativa breve no país: escritores empenhados, vendas maiores, leitores interessados. Do panorama de excelência da prosa nacional, o crítico paulista destacava dezoito autores, de Guimarães Rosa a Rubem Fonseca, além dos menos conhecidos, como Samuel Rawet. Entre as mulheres, apenas três: Nélida Piñon, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles.


Cinquenta anos passados, não é novidade afirmar que a ficção de autoria feminina no Brasil cresceu e se consolidou, sobretudo nas duas últimas décadas. O conto, no entanto, segue um caminho trôpego, pois a despeito do talento de nossos criadores, o romance segue valorizado como a forma ficcional mais acabada e perfeita. Nesse embate, a narrativa curta acaba figurando na qualidade de antessala de obras com fôlego mais longo, o que não poderia ser mais equivocado. Poroso por excelência, o formato breve dialoga com gêneros próximos, como a novela, a crônica e a poesia, além do próprio romance. E com um mínimo de meios, busca o máximo efeito, nas palavras de Edgar Allan Poe, um dos criadores do conto moderno.


Se pensarmos o Brasil a partir de um recorte da autoria feminina, a produção de Adriana Lunardi ganha destaque. Sobre a autora catarinense, cuja obra acompanho de perto e com atenção, vale um pequeno retrospecto para dimensionar sua relevância. A começar por “Vésperas”, de 2002, formado por contos que ficcionalizam a morte de nove escritoras, em um mergulho admirável na obra de personalidades como Silvia Plath, Colette, Virginia Woolf e Ana Cristina César. A dobradiça vida e obra ganha camadas e a prosa de Lunardi alça voo, resultando em conjunto homogêneo que integraria qualquer boa antologia que contemplasse a literatura do presente.

 




A ficção de caráter introspectivo de “Vésperas” ecoa em “Contos céticos”, em que a autora revisita o território da intimidade. Poderíamos afirmar ser a mesma criadora que escreve aqui; e também outra. A mesma por girar em torno da finitude, desencontros e ausências a partir de uma sintaxe de estilo inconfundível; outra, por oferecer um livro mais desencantado, reverberando o ceticismo que intitula o volume. Formado por narrativas inéditas e outras publicadas de forma esparsa ao longo dos últimos anos, o livro reúne, não por acaso, textos sob a rubrica da incredulidade, na recusa de verdades inabaláveis.


Uso dos parênteses

 

A esse respeito, chama a atenção o uso dos parênteses, sinal gráfico que causa efeito de grande expressividade, espécie de rompante a instaurar a quebra do enunciado, propondo um comentário crítico à matéria narrada. São parênteses céticos: “(Eu queria bem ali o poder de um alfinete a atravessar uma libélula, levá-la para casa, expor em segurança num quadro na parede da sala)”, sustenta a narradora em “Silêncio, exílio”, ao mirar o torso nu do amado emergindo do mar. Capturar o instante com um alfinete, gesto que diz muito destes escritos caracterizados pela precisão e pelo exercício da dúvida.

 


O questionamento mira instituições como o casamento, autopsiado com a verve habitual da autora, como em “Bodas de pó”: “(o que é o fim de um casal senão um idioma que desaparece?)”, e também “Script girl”, na síntese sobre os amores findos: “(jaz aqui o amor; bom enquanto)”. A ironia segura o lirismo e ri na cara das expectativas afetivas: “Amei-te o quanto se ama, dizia o bilhete que ele deixou preso por um ímã na geladeira. Era bonito demais para ser dele. Rasguei na hora. Os finais são trovejantes, a poesia é para os inícios”.


Falar das coisas só faz sentido quando o discurso é mediado pela perspectiva da literatura. Parte dos contos traz personagens ligados ao universo da criação literária - são editores, ficcionistas, roteiristas ou mesmo leitoras em uma cena de leitura, a exemplo de “Biografia e correspondência”, que propõe um divertido jogo de gata e rata dentro de uma livraria. Ou “Animal extinto”, narrativa borgeana em que a biblioteca surge como memória implantada a ser removida, diante das sobras da humanidade em um futuro distópico. Lunardi reafirma a centralidade do literário em seus escritos, presente também no romance “A vendedora de fósforos”, de 2011, em que a fabulação é fruto de hábil reescritura, no diálogo com o relato de Hans Christian Andersen.

 


O protagonismo feminino é recorrente na prosa lunardiana, a exemplo de “Toda história em Paris é uma autobiografia”, conto em que duas mulheres duelam com palavras: depois do livro impresso, uma escritora confessa ao próprio editor ter plagiado um blog francês. A eles se reúne a narradora, encarregada de amenizar o possível escândalo e desconfiar da versão apresentada. Verdades são postas em xeque, em um texto saboroso sobre as trapaças da ficção.


“Condições do tempo” e “Nota do destino” encerram o volume formando um duo de grande impacto. No primeiro, acompanhamos o ponto de vista de um homem em visita à casa de seu ex-amor, narrado de forma engenhosa e conduzindo a um fecho surpreendente. Um conto que talvez exija releitura para recuperar detalhes e pistas despercebidas. Em “Nota do destino” emenda-se o fio da figuração da morte, quando a contista pesca um momento singular em um texto de parágrafo único, apostando na contenção. Lunardi oferece uma pequena joia nesse apagar das luzes, fechando o conjunto em tom sépia e tingindo de melancolia o cenário frequentado por mais um par amoroso.

 


Mas é possível apostar ainda na existência. Vem de Julio Cortázar a analogia entre o conto e uma criatura viva. Para o escritor argentino, a qualidade memorável das melhores obras do gênero viria da capacidade de cada contista trabalhar em profundidade, fazendo esse organismo respirar. É o que sentimos em “Enquadramento”, história de duas irmãs à espera do nascimento do mais novo membro da família. Entre brincadeiras e jogos, a visão de um quadro com a imagem de duas meninas se torna pretexto para explorar nuances da relação fraterna e das fantasias sobre o futuro. Uma das crianças emolduradas, de costas, cata conchas na praia. Na imaginação da narradora (dentro dos limites da moldura e do conto) ali está alguém “a escrever iniciais na areia”.


Também Lunardi, nestes “Contos céticos” escreve sobre uma superfície movente, brincando com o grão das palavras ao enquadrar cenas, para, logo depois, desenquadrar, olhar de novo, ou de fora, por outros ângulos. “Queria palavras que dissessem coisas”, afirma outra personagem infantil, ao desenhar com tinta de sapato o chão da casa da infância, em “Bildunsgroman”. Rabiscado na areia ou grafado no piso, o faz de conta da ficção permite que esses relatos existam como organismos vivos. Essa é a delicada respiração dos grandes contos.

Stefania Chiarelli é professora e pesquisadora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF). Publicou, entre outros títulos, “Partilhar a língua – leituras do contemporâneo” (2022)

 

Trechos

“Script girl”

“Nada muda para mim. Desperdiço as horas em uma resposta demorada, que nada tem de generosidade, nem de consolo, a não ser salvar um quê de ternura, um arrepio de poema e esse latejo de farpa entre o esterno e o diafragma, onde a anatomia diz não haver nada.”

“Toda história em Paris é uma autobiografia”

“As pessoas só confessam porque são apanhadas em flagrante. Ninguém se autodenuncia. Uma claraboia se abre e o Olimpo despenca em sua cabeça, esperneando por vingança. Esses são os meus clientes. As vítimas da hybris, os descendentes de Brutus e de Judas Iscariotes. Os esnobes, os escroques, os devassos. Gente que gosta de maçã. Mas não quem incendeia as vestes em público. Esses, eu não entendo. Esses, eu não justifico.”

Capa do livro "Contos céticos"

reprodução

 

“Contos céticos”
• De Adriana Lunardi
• Editora Record
• 160 págs
• R$ 54,90

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