Jacyntho Lins Brandão,  professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e presidente da Academia Mineira de Letras -  (crédito: Lucas Negrisoli/EM/D.A.Press)

Jacyntho Lins Brandão, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e presidente da Academia Mineira de Letras

crédito: Lucas Negrisoli/EM/D.A.Press

 

Jacyntho Lins Brandão

 

“Câmara sombra”

Dei uma saída pra fumar, o que sempre termina por cutucar as ideias – e tive qual nunca tal límpida percepção de como, ao contrário dos muitos bilhões de humanos que vivem, viveram ou viverão sobre a terra – vou desconsiderar os que talvez ainda venham a fazer isso fora dela – como então minha existência esteve singularmente associada à de Barthes, pelo simples fato de compartilharmos três décadas da duração que nos foi dada (de 50, quando nasci, ao momento em que ele se foi, já em 80). Baste isso para a possibilidade dos encontros.

 

Que não sei por que não ocorreram de outro modo. Me ocorre, porém, ser provável que o melhor foi tudo ter acontecido como se deu, não ao modo de duas linhas retas em movimento paralelo numa mesma temporalidade e espaço, mas a modo de partículas em revolução adoidada no emaranhado de espaço-tempo, o que sempre faz prever que tudo termine em colisão. Um indício?

 

Me pergunto por que não estive na aula inaugural do Collège de France, aquela que ele proferiu em inícios de janeiro de 77 (“c’est en effet de pouvoir qu’il s’agira ici, indirectement mais obstinément...”) – concordando que seria excelente ocasião para que eu conhecesse um dos locais sagrados de Paris e um de seus heróis, sem perigo algum de choques – porém não, na entrega também indispensável aos amores aleatórios, passadas as festas, estava próximo mas fora da cidade – e não foi desinteresse, simples e imprevista circunstância, a partícula que sem razão se descaminha.

 

 

Me pergunto mais: e se Roland Barthes fosse convidado para algum programa na UFRJ na minha época? e mais, eu me oferecesse para transportá-lo naquele fusca amarelo com que me aventurava pelo trânsito alucinado do Rio de Janeiro, com o risco máximo de tudo terminar com nossos corpos carbonizados em acidente fatalíssimo na Avenida Brasil, quando da ida do Galeão à Avenida Chile, ou na volta vice-versa, tudo com a agravante vergonhosa de que a polícia, se pusesse um pouco de reparo, logo descobriria que o condutor não tinha carteira de motorista – vou de pronto abortar viagens desse teor, até porque não é provável que Barthes andasse pelo Rio naquela primeira metade dos 70 sem que a soldadada sabotasse o fusca amarelo de minha mãe para que explodíssemos os dois, e não necessariamente na Avenida Brasil, senão em algum ermo, o que mostra como tudo já beira a mais aguda inverossimilhança.

 

 

Que todavia cercou tantas mortes (“et si le pouvoir était pluriel, comme les démons? Mon nom est Légion”) – e por um momento só imagine se a milicada conseguiria calar a pergunta que então se alastraria pelo globo: “Quem matou Roland Barthes?”, como abafava as centenas desse tipo, tais qual: “Quem matou Vladimir Herzog”.


Mesmo que seja tudo só hipotético, me leva a contrastar com o que se vê agora, quando ninguém mais inquire sobre. Não sei se a humanidade, de tão calejada, perdeu o interesse por questões desse tipo. Quando nas férias de Natal de 78-79 andei por Portugal, viagem de mochileiro, recordo: havia muito ainda aquela enorme curiosidade, a qual produzia súbita paralisia na chusma metida em restaurantes, sapatarias e muquifos cada vez que um vendedor ou garçom, à vista de meu sotaque, tomando-se de júbilo exclamava – e sempre em alta e expansiva voz: “Ah, tu vens do Brasil, então me diz: quem matou Salomão Hayalla?”

 

 

Muito bem: depois de revirar os dados e de novo os virar por todos esses anos me ocorreu aos poucos perguntar o quanto não haveria de presságio na insistência de me ter assim por arauto de morte – mais até, uma testemunha ocular (é certo que com os milhões que não perdiam um capítulo além e aquém mar), o que me provoca ainda hoje a mesma sensação afrosa de ter quiçá descurado dos indícios a ponto da incúria sair cara – cabendo-me toda culpa no desenlace.

 

Não sei se serei quanto se requer geômetra, mas basta reparar: 1977, abril: na festa de cinquenta e dois anos, em sua residência no Rio de Janeiro, Janete Clair escolhe quem encarnará o herói da novela por vir; a caminho dos sessenta e dois, Roland Barthes lança seus “fragmentos de um discurso amoroso”, de “s’abîmer” a “vouloir-saisir” percorrendo todo um alfabeto sobre o amor e seus corolários; de minha parte... tarlatanava de rive droite a rive gauche, em ignorância de toda escritura possível.

 

 

Se são três retas simultâneas, não posso dizer de sua paralelidade, é provável que por limitações de inteligência dedutiva, ao modo como só poucos terminam por intuir certas coisas: da santíssima trindade à teoria da relatividade – assim também o modo como nossas vidas se enrolam e desenrolam neste vale em que caímos e onde mais desconhecemos. Não é preciso salientar a decepção dos muquifos: como é que eu podia saber quem matou Salomão Hayalla se estava anos fora do Brasil? pode alguém ser testemunha em dois espaços simultâneos? – e não fosse isso, não era dado a desgastar-me com tevê. Resta então a nota irônica: agora que sei quem matou (não Salomão, mas Roland), não tenho ninguém interessado em inquirir.


Sobre o autor

 

Jacyntho Lins Brandão é professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e presidente da Academia Mineira de Letras. Publicou, entre outros, os ensaios “A poética do hipocentauro: literatura, sociedade e discurso ficcional em Luciano de Samósata” (Ed. UFMG, 2001, finalista do Prêmio Jabuti) e “A invenção do romance” (Ed. UnB, 2005).

 

Traduziu “Ele que o abismo viu: Epopeia de Gilgámesh” (Autêntica, 2017, finalista do Jabuti), “Ao Kurnugu, terra sem retorno: Descida de Ishtar ao mundo dos mortos” (Kotter, 2019, finalista do Jabuti), “O romance de Tristão” (Ed. 34, 2020, finalista do Jabuti), “Epopeia da criação: Enuma elish” (Autêntica, 2022).


As obras de ficção incluem “Relicário” (José Olympio, 1982), “O fosso de Babel” (Nova Fronteira, 1997), “Que venha a senhora dona” (Tessitura, 2007) e “Mais (um) nada” (Quixote + Do, 2020). Pela Editora Patuá lançou, em 2023, o livro de poemas “Harsíese”, vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional. O trecho nesta página integra “Câmara sombra”, um dos treze contos do livro “Ode à errância”, em pré-venda no site da Patuá e com lançamento previsto para agosto. “Há alguns contos breves, outros bem longos”, revela Jacyntho.

 

Capa do livro "Ode à errância"

Capa do livro "Ode à errância"

reprodução


“Ode à errância”
• De Jacyntho Lins Brandão
• Patuá Editora
• 268 páginas
• R$ 60
• Em pré-venda no site da editora