Maria Fernanda Vomero
Especial para o EM
Há, no cemitério de Santa Efigênia, nos arredores da vila rural fundada por imigrantes italianos e batizada de Saudade, uma lápide simples e de poucas informações: estão registrados ali apenas um nome e as datas de nascimento e de morte. Diante dessa lápide, há uma mulher que retorna –– à antiga casa, ao Brasil. Quando ela partiu em fuga, anos antes, a terra na qual se plantavam tomates estava revirada por botinas e encharcada de sangue. Sangue que também escorria dos quartéis e dos porões, nas cidades, no campo ou nas matas do país.
Se a vila e a mulher são frutos do universo ficcional proposto pela escritora Giovana Proença em “Os tempos da fuga” (Urutau), seu romance de estreia, o período no qual se passa a história não poderia ser mais concreto: os anos 1970, quando a ditadura militar brasileira (1964-1985) atravessava seu momento de maior recrudescimento. No fim daquela década, contudo, houve um prenúncio de retorno à democracia: a promulgação da Lei da Anistia (1979), que indultou presos e exilados políticos, os perseguidos pelo regime.
Quem é, então, aquela mulher que volta, graças à anistia, depois de ter passado anos em Tigre, cidade argentina no Delta do rio Paraná, não muito longe de Buenos Aires? Lígia, Virgínia, Vita ou... quem? “Todas as informações são falsas em tempo de fuga” – afirma a narradora nas páginas finais, em tom de confissão. Para conseguir deixar o Brasil rumo ao exílio, a protagonista precisou renunciar à própria identidade, assumir outro nome, inventar memórias. Daí o titubeio, os silêncios. Um dos grandes trunfos da história criada por Proença é a dubiedade em relação à narradora: trata-se da mesma figura nos trechos iniciados por um “eu” e naqueles em terceira pessoa? Ou será que ocorre um jogo muito bem armado de duplos tanto na narração quanto no enredo? “Não aguenta a cisão de viver em dois tempos”, diz a narradora sobre Lígia (ou sobre si mesma?). Para sobreviver – ou, talvez, por ter sobrevivido –, ela precisa ser uma outra. Afinal, o mundo que conheceu antes do exílio virou cinzas.
A linguagem acompanha a tessitura narrativa, escorregadia e estilhaçada. As frases e os diálogos são cortantes, lacunares, enxutos. No texto de Proença, parece que até as palavras estão em fuga, deixando rastros nas entrelinhas. Há momentos de intenso lirismo, mas às vezes a reiteração formal torna-se um tanto previsível e os efeitos gerados, repetitivos. Nada, porém, que diminua a tensão narrativa.
Referências literárias
É interessante a insistência no verbo “restar”, que aparece em várias passagens, seja no sentido de “ficar”, seja significando “faltar”. Na costura entre o passado e o presente, como uma espécie de eixo catalisador, há uma carta – uma carta que não versa sobre política, mas expressa uma verdadeira revolução para Lígia. E remete às missivas trocadas entre as inglesas Virginia Woolf eVita Sackville-West, mobilizando sentidos. Outras referências literárias mais ou menos evidentes permeiam o texto e nos revelam: a escritora Giovana Proença, doutoranda em literatura comparada pela USP, é também uma leitora atenta.
Na volta ao Brasil, a mulher (Lígia? Virgínia?) anseia alinhavar as pontas soltas de sua própria trajetória e recriar uma cartografia. Deve confrontar o esfacelamento de sua família: não há mais raízes. Não há mais resquícios daquela terra onde se cultivavam tomates. Nem do casarão onde aconteciam reuniões clandestinas nas quais se discutiam modos de combater o regime autoritário. A mulher precisa recriar suas memórias – heranças fugidias de outra vida –, como se remontasse um filme abruptamente interrompido; só assim terá uma história e um recomeço.
Há cenas que teimam em ser cuidadosamente rememoradas. Os gritos, os trotes dos cavalos, uma arma apontada diretamente para o seu rosto – e a carta, aquela carta, à qual se agarra. O reencontro com o homem que parece ser seu irmão, na casa da infância. A passagem pela vila chamada Saudade. E vislumbres de um amor cheio de promessas.
Embora tenha nascido em 2000, já sob os ares democráticos, Proença voltou-se ao passado recente do país, a um período repleto de interditos e omissões que ainda repercutem no hoje e agora. Escreve com sensibilidade e destreza, mas também desafiada por um incômodo: há ainda muita história a ser contada sobre os anos de chumbo. Seu livro se soma ao conjunto de obras que elaboram ficcionalmente experiências vividas durante o regime militar, propondo outras perguntas e abordagens. Do mesmo modo que a ambígua narradora de “Os tempos da fuga”, nós, como sociedade, precisamos retornar, uma e outra vez, a esse momento doloroso do país a fim de remontar a memória coletiva, recuperar as ausências e enfrentar os silenciamentos. Só assim, quem sabe, consigamos de fato seguir adiante.
Maria Fernanda Vomero é jornalista e doutora em Artes
“Os tempos da fuga”
• Giovana Proença
• Urutau
• 156 páginas
• R$ 58,00