Nara Vidal (escritora) -  (crédito: Raquel Sol & Leo Melo/divulgação)

Nara Vidal (escritora)

crédito: Raquel Sol & Leo Melo/divulgação

Puro mal

Radicada em Londres, a escritora mineira Nara Vidal aborda movimento eugenista brasileiro em “Puro”, romance ambientado nos anos 1930 em casarão numa cidade fictícia no interior de Minas


Bruno Inácio

Especial para o EM

 

Mergulhar no universo ficcional e não-ficcional da escritora mineira Nara Vidal é sempre um acontecimento. Dentro da minha experiência, digo que foi assim desde que tive contato com “A loucura dos outros” (Reformatório), alguns anos atrás. De lá pra cá, acompanhei cada lançamento com um misto de entusiasmo e curiosidade. Afinal, para onde Nara Vidal iria dessa vez? A pergunta não se limita a temas ou abordagens, mas diz respeito, sobretudo, à linguagem.


Dentre tantos nomes que têm feito a nova literatura brasileira, a autora nascida na cidade mineira de Guarani e radicada em Londres parece ser um dos melhores exemplos de inquietação. Seus livros propõem novas perspectivas, ultrapassam barreiras imaginárias e fazem da escritora uma iconoclasta. Nara Vidal não tem medo de revirar baús ou tocar em feridas ainda expostas.

 


Em “Puro”, romance lançado pela Todavia e que acaba de ganhar a primeira reimpressão, ela se aprofunda em um tema que os livros de história continuam a negligenciar: o movimento eugenista brasileiro.


A breve narrativa se passa na década de 1930, em Santa Graça, cidade fictícia de Minas Gerais. Há ali um casarão onde vivem três mulheres velhas e um menino de mais ou menos quinze anos, abandonado pelos pais e criado pelas senhoras. É esse o local dos acontecimentos e pensamentos mais perversos.


As palavras escolhidas por Nara Vidal são o que são, longe de eufemismos ou qualquer tentativa de suavização. Em meio a comentários racistas e capacitistas de seus personagens, “Puro” é um livro que causa dor e indignação, especialmente por ainda caminhar tão próximo da realidade, mesmo quase 100 anos depois do período em que a história se passa.

 


A trama original e bem amarrada, no entanto, está longe de ser o único mérito do romance. Aqui a linguagem é tão impactante quanto o enredo – e isso fica evidente desde as primeiras páginas. Os personagens intercalam pensamentos, falas e ações e, pouco a pouco, se tornam ainda mais pertencentes a um lugar em que negros desaparecem diariamente e que Ícaro, um menino deficiente, é alvo de constantes violências.


Vencedora do Prêmio Oceanos e finalista do Jabuti e do Prêmio São Paulo de Literatura, Nara Vidal falou ao Pensar sobre a obra, sua rotina como escritora, questões sociais discutidas em seu trabalho e sua preocupação com a estrutura adequada para cada história. “O processo de escrita, para mim, está atrelado a experimento e risco. Se um texto não tem ritmo, se não funciona, se há algo que falta ou sobra, eu posso experimentar, arriscar, fazer diferente. A forma para contar uma história é um recurso antigo e que eu observava muito na tradição oral na qual eu cresci, no interior de Minas. Desde criança eu notava que, dependendo de quem contasse a mesma história, ela fazia rir, dava medo ou tristeza.”

 

 

Já nas primeiras páginas, “Puro” chama a atenção por ter uma estrutura bastante inventiva, especialmente por apresentar uma história que se desenvolve, sobretudo, a partir dos pensamentos de seus personagens. Como surgiu essa ideia? Acredita que a escolha contribui para revelar a leitores e a leitoras o que há de mais íntimo na psique de cada personagem?


A gênese do que hoje é o “Puro” vem de longe. Eu já tinha tentado contar essa história, mas ela não funcionou. Há alguns anos, escrevi a narrativa através de uma prosa mais convencional, sem as marcações que hoje tem. Não funcionou. Havia algo naquela forma e estrutura que não dava conta de expor as personagens e trazer as nuances que existem na distinção da fala e do pensamento.

 

O segredo, o silêncio e o discurso precisavam se manter sem que fossem guiados por um único narrador, porque essa orientação de apenas um ponto de vista macula o texto, invariavelmente, tirando dele a neutralidade. Eu fiquei com o texto por um bom tempo, guardado, veio a pandemia, chegaram outros livros, a vida passou. Quando assisti ao documentário do Belisário Franca, “Menino 23”, resolvi que era hora de voltar pro texto.

 

Voltei com alguma determinação a fazer aquela história ter um ritmo que não tinha. Comecei a listar as personagens, que são muitas, num caderno. Ao lado de cada uma, eu escrevia Íris fala, Lázaro fala, Ícaro fala. Uma maneira simples para eu não me perder na narrativa. Foi nesse momento que eu concluí que Íris não falava, ela pensava. Que Lázaro não falava, gritava, que Ícaro via. Esse encontro com o profundo do texto foi o que determinou a escrita na estrutura que ficou.

 

Os verbos passaram a ser inúmeros e usei cada um para construir uma história orientada por ações. Quem narra, de certa maneira, são os verbos. E os verbos, tão naturais no nosso discurso, nunca são gratuitos. São determinantes e precisos. Por isso foi possível que, ao contar através deles, eu e o leitor pudéssemos entrar em lugares disfarçados pelo discurso mais elaborado. O verbo acaba despindo a narrativa e expõe inquestionavelmente uma ação.

 

Além disso, o processo de escrita, para mim, está atrelado a experimento e risco. Se um texto não tem ritmo, se não funciona, se há algo que falta ou sobra, eu posso experimentar, arriscar, fazer diferente. A forma para contar uma história é um recurso antigo e que eu observava muito na tradição oral na qual eu cresci, no interior de Minas.

 

Desde criança eu notava que, dependendo de quem contasse a mesma história, ela fazia rir, dava medo ou tristeza. Além da linguagem, a forma na qual ela era construída e estruturada fazia essa diferença. É importante para mim, enquanto escrevo, não me atentar tanto a regras. A análise dos elementos literários são aspectos que vêm para a história a partir do texto já escrito ou do leitor crítico. É como eu leio livros, mas não como escrevo os meus próprios.

 

Não me passa pela cabeça ter a responsabilidade de refletir sobre elementos literários enquanto escrevo um texto de ficção. Para mim, o caminho é muito mais livre. Enquanto eu ouvia, em Guarani, meus vizinhos, amigas e tios contarem histórias, imagino que eles não pensavam sobre a estrutura, a linguagem. Quem pensa nisso hoje sou eu, a partir dos recursos que eu tenho. Eles apenas contavam. Às vezes dava certo, às vezes ninguém ligava.

 

Acho que é interessante manter uma dose de ingenuidade, fé e risco na hora de escrever uma história, mas não na hora de publicar. A literatura, como expressão artística tem essa característica de ser inventiva, de recusar regras e formas, de tentar, sabendo que há risco. Mas repetir, fazer sempre o mesmo caminho não me interessa muito.

 


O que a levou a abordar o movimento eugenista brasileiro? Em sua opinião, a omissão desse tema nos livros escolares pode ter colaborado com o recente avanço da extrema direita no país?


A resposta mais objetiva a essa pergunta é curiosidade de estudo. Mas a resposta se desdobra e se adensa de forma muito incômoda. Não é surpreendente para ninguém que o sistema de educação no Brasil ainda segue um currículo conservador e classista. Dentro das ideias de conservadorismo e classismo há uma forte interseção: o racismo.

 

A mudança para melhor já começou e avança, mas encontra obstáculos por meios legítimos como discursos políticos conservadores garantidos pela democracia, mas agravados por nuances racistas, machistas e homofóbicas. Durante o período da minha educação formal, navios negreiros eram embarcações que traziam negros da África para o Brasil para trabalharem e ajudarem a desenvolver o progresso.

 

Essa frase é um dos inúmeros discursos mentirosos e irresponsáveis que durante gerações foram a resposta certa para tirar boa nota na prova. Se na sala de aula, quando eu aprendia a ler, as carteiras da frente eram povoadas pelos filhos dos médicos, dentistas, advogados, professores e crianças brancas, e o apartheid era consolidado pelo grupo de crianças negras no fundo da sala, era porque aprendemos através do silenciamento e da naturalização a sermos racistas.

 

Precisamente aí se encontra o brasileiro comum, branco que se diz não ser racista porque tem amigos negros. É que o Brasil precisa aprender a reconhecer equívocos. Não é fácil pedir desculpas ou reconhecer um erro, mas no caso do projeto eugenista que ainda existe, é fundamental que o país reconheça que é racista, que foi criado para ser racista porque racista não é só o que diz que é.

 

Racista é quem é conivente com práticas de exclusão e preconceito e se silencia. Por isso, justamente, é tão importante uma cultura antirracista. Em toda a minha educação formal, eu nunca ouvi falar em movimento eugenista. Nos feitos de Getúlio Vargas, sim, mas nunca sobre seus flertes com o fascismo, o nazismo. Sobre a Frente Integralista Brasileira, ouvi que eram patriotas e defendiam a soberania da nação.

 

Ou seja, o discurso fascista tal como o de sempre. A política me interessa profundamente e questões sociais são indissociáveis de questões políticas. Meu interesse vem daí. A literatura me serve como caminho para provocar e questionar. Mas não tenho respostas e nem conclusões.


A linguagem utilizada por alguns personagens ao longo de toda a trama está repleta de crueldade e preconceitos. Isso certamente proporcionou mais verossimilhança à obra, mas também exigiu que você, enquanto escritora, “entrasse” na cabeça de pessoas racistas e capacitistas para compor os personagens. Foi um processo exaustivo?


É bom poder falar sobre esses elementos textuais e acho que a linguagem é dos mais importantes, senão o mais importante num projeto literário. No caso de “Puro” e pela sua estrutura polifônica, a linguagem precisava se organizar de maneira muito marcada para a própria distinção de personagens. Há discurso direto e indireto e a linguagem precisava ser muito bem pensada, cuidada.

 

A voz de cada personagem também precisava trazer essa linguagem coerente ao discurso. Penso no Lázaro, por exemplo, personagem complexo porque cresceu dentro de um núcleo que o via como superior meramente por ser branco, loiro, ter olhos claros e não ter qualquer tipo de deficiência. Todo o discurso dele é a expressão da ideia de supremacia branca e capacitista.

 

Ou seja, ele tem na sua essência uma linguagem que reflete essa arrogância e crença de superioridade naturalizadas. Quando ele insulta Ícaro, recorrentemente, ele grita que Ícaro não tem senso de humor, que o que ele diz, insultos que ele reconhece como piadas, devem ser recebidos pelo insultado de forma leve, divertida, bem-humorada.

 

Essa é, aliás, uma prática comum de pessoas que abusam e ofendem a dignidade alheia e recorrem a justificativas descabidas para confundir e tentar manipular uma agressão ou crime. Narrativas que são cruéis e que se revestem de piadinhas, brincadeiras, mas que escondem todo o preconceito e perversidade por trás dos tais deboches.

 

Todo o discurso racista de personagens como Dona Rosa, ou o discurso que valoriza a meritocracia como é o da Helga/Delfina ainda são ouvidos hoje em dia. Então, de certa forma, eu não precisei entrar nessas cabeças perversas. A infelicidade é que só precisei pensar em falas e discursos que ouvi enquanto crescia e que ainda ouço, espantosamente, e trazê-las para as falas e pensamentos das personagens.

 

Isso, no entanto, não tira o peso dessas palavras e que, sim, me custaram reler. Mas acho que a experiência mais difícil até aqui, foi quando, em Portugal, durante a apresentação do livro feita por uma amiga que é atriz, Marlene Barreto, ela leu trechos do “Puro” e eu fiquei comovida ao ponto de não conseguir falar. É muito difícil ouvir as palavras que essas personagens gritam e falam, despudoradamente, do alto do racismo criminoso e que fazem a gente sentir tanta vergonha de ter crescido num país profundamente cruel.


“Puro” evidencia a presença da igreja católica na consolidação de pautas conservadoras. Hoje, quase 100 anos depois do período em que se passa a história, são as igrejas evangélicas que exercem essa influência de maneira mais direta. O slogan “Deus, pátria e família” é tão perigoso agora quanto no passado?


A História é cíclica. Eu, ingenuamente, quando adolescente, estudava a História achando que fosse uma linha que representa um melhoramento cronológico. Pensava em episódios perversos, brutais como sendo de tempos passados. Hoje, quando converso com meus filhos sobre política – e conversamos corriqueiramente sobre isso – gosto de falar sobre os direitos que foram conquistados às custas de muitos sacrifícios de várias pessoas comprometidas. Portanto, quando há um avanço, no nosso ponto de vista, há sempre um retrocesso para quem pensa diferente e vice-versa.

 

Isso é democracia. Mas é também democracia termos o direito de tentar mudar práticas com as quais não concordamos. Por isso exatamente nós votamos. Para tentar manter os nossos direitos garantidos, é preciso sempre defendê-los. Esse retorno de movimentos que se identificam com ideologias fascistas, me chamou a atenção, com gravidade, quando houve aqui na Inglaterra, o Brexit. Todo o discurso do desemprego fundado na política de anti-imigração que, geralmente, deságua no discurso racista e xenófobo, estava crescendo assustadoramente.

 

Em países como o Brasil, a história é outra, mas quando o ressentimento de algumas classes juntamente com a crença na supremacia racial encontra o discurso reacionário de defesa da pátria e de uma configuração única de família, por exemplo, aí temos os cidadãos do bem, que são aqueles que defendem a moralidade, a pátria, a bandeira, a religião desde que sejam as suas. A igreja católica é uma instituição que se fortaleceu de forma violenta, teve e continua tendo práticas criminosas para a sua permanência e relevância.

 

Por isso há tanta hipocrisia em certas práticas religiosas. Não é possível uma instituição e organização amorosa e bondosa quando essa mesma estrutura é hierárquica, competitiva e dependente de financiamento de uma elite e de julgamentos morais hipócritas. Sem contar a prática da caridade que isenta muitas pessoas ditas religiosas de uma ação mais direta.

 

Ou seja, trazer um empregado para ser parte da família é a ideia de bondade de muitos brasileiros, ainda. O que é necessário compreender é que os empregados têm suas próprias famílias e precisam de horas justas de trabalho para poderem, exatamente, estar com seus filhos e pais. Preciso dizer, no entanto, que há grupos religiosos que, de fato, propõem valores cristãos, ou seja, valores que foram sugeridos por um homem que pregava o amor, a liberdade, o bem de todos.

 

Mas a igreja, aquela que só reconhece a si mesma como prática de fé e que torce o nariz para práticas religiosas dos povos indígenas ou de matrizes africanas, por exemplo, são grandes responsáveis por endossar o discurso de pátria e família porque carregam o Deus na frente. É a receita mais desastrosa que pode haver para um país.

 

Nos últimos anos, sua produção de ficção e não-ficção tem sido bastante assídua, com a publicação de livros como “Eva” (2022), “Canibal e outros contos” (2023), “Shakespearianas: As mulheres em Shakespeare’ (2023) e “Puro” (2024). Além disso, você trabalha como tradutora e colabora com diversos veículos no Brasil e na Europa. A escrita ficcional e a não ficcional proporcionam níveis diferentes de satisfação? Você tem algum tipo de “ritual” no momento de escrever?


É curioso porque esses livros foram todos escritos durante anos e anos. Com exceção do “Mapas para desaparecer”, que escrevi numa semana no auge da pandemia, todos os outros levaram um tempo longo, de pausas, de interferências diversas, inclusive de trabalhos com tradução, ensaios de crítica literária, funções que eu, aliás, adoro.

 

Neste momento, por exemplo, estou escrevendo um livro de ensaios que abrange feminismo na literatura e que é uma sequência de crítica literária que eu venho escrevendo para a revista QuatroCincoUm. Hoje em dia, eu vivo da escrita. Isso não significa, em absoluto, viver de venda de livros. Viver da escrita é viver de tradução, leitura, aulas, escrita de ensaios, apresentações de livros, participações em festivais literários.

 

A ironia disso é que quanto mais eu trabalho com a escrita, menos tempo eu tenho para escrever. Mas tenho a oportunidade que sempre quis ter, que é fazer exatamente isso: traduzir, dar aulas de escrita, ler e até, por fim, escrever. Por conta dessa natureza tão instável do meu trabalho, não tenho nenhum ritual.

 

Estou sempre com alguma coisa por fazer e isso é ótimo porque significa que tenho trabalho. Meu único ritual e que é uma conquista é não trabalhar aos sábados e domingos. Nem os e-mails eu leio. É quando, geralmente leio, vejo filmes ou exposições de arte. Ou seja, continuo trabalhando.

 

Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de “Desprazeres existenciais em colapso” (Patuá) e “Desemprego e outras heresias” (Sabiá Livros). Escreve sobre literatura no Jornal Rascunho e na São Paulo Review

 

“Puro”
De Nara Vidal
Todavia
96 páginas
R$ 59,90


Retorno inesperado para um tema sensível

 

Radicada em Londres, Nara Vidal acaba de voltar de São Paulo onde esteve para divulgar o novo livro. Participou de mesa na programação da Feira do Livro com Eliana Alves Cruz, dentro do “Trilha de letras”, programa que apresentado pela escritora carioca na TV Cultura.

 

Nara também lançou “Puro” em uma nova livraria paulistana, Bibla, e participou com Manuel da Costa Pinto dos programas “Entrelinhas” e “Segundas Intenções”.“Foi uma oportunidade de estar em contato com as leituras que vêm sendo feitas do livro, conversar com as pessoas sobre suas impressões”, contou a escritora, já de volta à Inglaterra.

 

“Puro” é um livro que me deu bastante apreensão na sua publicação, já que trata de um tema muito sensível. Mas o retorno tem sido inesperado e muito positivo. É uma história que tem gerado um interesse em diferentes lugares. Pra mim, que propus a narrativa, é uma alegria grande”, complementa.

 

Trecho de “Puro”

 

Santa Graça está no rádio. Escuta, Ondina. Estão falando dos negrinhos fujões. Um advogado da região quer investigar, estão dizendo. Parece que o doutor advogado quer bater de casa em casa no centro de Santa Graça pra ver se encontra rastros dos moleques. Uma perda de tempo: a essa hora devem estar no bem-bom em outra cidade. Decerto que se envolveram com drogas. Eram criados soltos demais. As mães, em vez de tomar conta deles, trabalham nas casas do centro. Aí, já viu. As crianças crescem sem aquele alicerce, né? Deu no que deu. Que sirva de lição, né, Ondina? Deus que nos proteja dessas desgraças!