Nara Vidal (escritora) -  (crédito: Raquel Sol & Leo Melo/divulgação)

Nara Vidal (escritora)

crédito: Raquel Sol & Leo Melo/divulgação

 

Ludimila Moreira

Especial para o EM

 

“Puro”, novo romance de Nara Vidal, surge como uma peça teatral ou poema sobre as antinomias contágio/purificação, ordem/desordem, pureza/impureza que berça e deflagra a eugenia de um governo autoritário. Sob os efeitos de experimentalismos da linguagem, derivações de gênero e evocação de um passado mítico, “Puro” se mostra também incrustado de mundo contemporâneo não só pela presença de personagens acossados por uma religiosidade alienante, mas também pelo recrudescimento do fascismo como mote de restauração e higienização social.


O livro traz a corrutela fictícia de Santa Graça, em Minas Gerais, em que orbitam e se retroalimentam assimetrias sociais e classismo, junto a um fundamentalismo religioso que mimetiza e parodia a cosmogonia social brasileira advinda dos violentos processos de colonização ainda parcialmente em curso.

 

Partindo de um revisionismo histórico enfabulado com marcas de uma distopia e indo até o realismo de rastro fantasmagórico que entrecruza signos bíblicos, mitológicos e ficção científica, o romance articula as pulsões de uma memória não relutante e a recomposição do Brasil dos anos 1930, usando para isso uma linguagem poética que se faz herança e legado dos sombrios e maléficos projetos de nação que ainda nos rondam e ameaçam.


A voz narrativa, sobretudo a de Ícaro, o adolescente com deficiência, estigmatizado pelo pai e pela elite eugenista de Santa Graça, traz um eco da dicção e do fluxo de consciência faulkneriana para um romance contemporâneo que conjuga sensibilidade, memória e consciência social. Os monólogos de Ícaro, bem como as partilhas de afeto e a construção de uma linguagem de amizade com Íris, incidem na narrativa como recurso estilístico e político que o despatologiza e dá autonomia e dignidade ao criativo garoto.

 

 

Os personagens Dr Lírio e Olavo servem como totens de uma oligarquia rural e do estado patriótico, retroalimentando a arquitetura racista, capacitista e conservadora de segmentos da sociedade encarnados no deslumbramento com a Enciclopédia da Eugenia Brasileira e sua circulação via comércio itinerante, de porta em porta. A Igreja, encarnada na figura perversa e criminosa do Padre Arcanjo, dissemina uma pedagogia capacitista e racista e vê em qualquer aparição e manifestação aristocrática, signo de distinção para respaldar sua sina de não alteridade e pretenso altruísmo.


A chegada de Helga, que mente sobre sua ascendência alemã para ser subsumida como babá em honrarias pelo circuito elitista do vilarejo, se converte em capital simbólico e força de trabalho para a dizimação de corpos que escapam da matriz branca e saudável. Helga progride e ascende em sua insuspeita falsidade ideológica e replica como boa evangelizadora as práticas de um determinismo biológico fomentador de uma pseudociência, a eugenia.

 

 

O centro mais cênico do romance é o casarão misterioso habitado por três velhas religiosas, Dália, Lobélia e Alpínia, integrantes de uma seita canibalista onde vive Lázaro, adolescente de 15 anos adotado por essas mulheres filiadas à ideologia comungada por toda a elite cristã e econômica de Santa Graça.


Íris, a empregada doméstica, é a personagem protagonista e tem um arco de contornos trágicos sem nenhuma redenção. Já em seus primeiros solilóquios acessamos sua complexidade envolta em lirismo, alteridade e sofrimentos psíquicos contundentes às voltas com um aborto criminoso e término com Jão, um morador periférico e trabalhador que recolhia as lavagens no centro e bairros nobres. Íris também é a mulher trabalhadora que nos revela e escrutina a geografia social da cidade, pelos seus fluxos de consciência de dicção combativa e enlutada que vamos adentrar o microcosmo íntimo de violências e desamparos das casas onde trabalha e do bairro periférico de Mata Cavalo.

 

 

Pela cartografia subjetiva de Íris acessamos os crimes racistas de Dr. Lírio, as cirurgias que prescrevia e submetia às mulheres periféricas alegando apendicite e as deixando estéreis. A devastadora memória da cirurgia de Íris, nos revela a entrega insensível pelo médico de um feto pequenino, o filho morto fruto de seu amor com Jão que se chamaria Joaquim e fora enterrado debaixo do pé de bananeira.

 

A conexão de Íris com as crianças e adolescentes periféricos e negros de Mata Cavalo se acentua à medida que o projeto de purificação racial do governo ganha força e também começa a ser percebido por Ícaro, adolescente constantemente invocado da janela como “retardado” pelo outro adolescente, seu vizinho fanático por violência e pelos discursos fascistas, Lázaro. Ambos têm a presença de Íris como empregada doméstica de suas casas.

 

 
É na porta do casarão de Lázaro que Íris e Ícaro avistam as crianças e adolescentes do bairro de Mata Cavalo pedindo comida e roupas. Também é dali que Ícaro escuta gritos e sente cheiros fortíssimos em uma correspondência de imagens e sons aos sonhos premonitórios que tinha com seu avô morto. A amizade entre Íris e Ícaro é um dos poucos bálsamos que o romance nos oferta.

 

A correspondência de gestos e afeto entre Ícaro e os moradores adolescentes do Mata Cavalo se torna emblemática com o lançar de caramelos pretos por uma criança negra, criando um laço de alteridade e amizade. O suspense e o terror ganham força ao passo que os gritos e cheiros estranhos advindos do casarão deixam de ser elementos oníricos de Ícaro e ganham lastro no real. Dali em diante o teatro de horrores começa a ser desbaratado e o custo psíquico para Íris e Ícaro é incalculável.


Do mosaico narrativo em voltagem de texto dramatúrgico vão emergindo indícios, testemunhos e acontecimentos vertiginosos como os catalisados pela chegada da enfermeira farsante que logo assume uma função no projeto eugenista da cidade de erradicar as crianças deficientes. Outra virada de forma no romance é o suspense que forja um imaginário de thriller diante da presença de Ícaro na janela com as crianças e adolescentes do Mata Cavalo que iam ao casarão pedir comida e do deslocamento da testemunha Íris para a fazenda Horizontina.

 

Na ausência de caminhos minimamente edificantes para os dois personagens, o mecanismo narrativo nos conduz às constantes manipulações negociadas pelas outras vozes narrativas, buscando uma íntima investigação sobre o funcionamento dos afetos e crenças que forjam o ideal de supremacia escancarando os efeitos destas violências nos corpos de quem ousa combater ou resistir aos desígnios da eugenia. Delírio e morte aqui são o único trunfo para Íris e Ícaro escaparem dessa arquitetura terrífica e persistente.

 

Ludimila Moreira é historiadora e crítica literária