ilustração de  Luiz Vilela e Dalton Trevisan -  (crédito: Quinho)

ilustração de Luiz Vilela e Dalton Trevisan

crédito: Quinho


Luiz Vilela
Especial para o EM

 

Como sabem os que acompanham a minha trajetória de escritor, em 1967, aos 24 anos, publiquei, por conta própria, em Belo Horizonte, o meu primeiro livro, “Tremor de terra”, de contos, e com ele ganhei o Prêmio Nacional de Ficção.


Este jornal, o Estado de Minas, fez então comigo uma longa entrevista, a que deu o título, inadequado, de “A auto-análise de Luiz Vilela”. Para a entrevista, convidou doze pessoas ligadas de alguma forma à literatura: cinco de uma geração mais velha, entre as quais Murilo Rubião, e sete da nova geração, entre as quais Sérgio Sant’Anna. Cada um fez uma pergunta. Uma das perguntas foi: “Qual o escritor que mais o influenciou como contista?” A minha resposta: “Um brasileiro: Dalton Trevisan. Um estrangeiro: Hemingway.”


Comprei um exemplar do jornal e mandei para Dalton. Poucos dias depois, recebi dele, como retribuição, uma das pequenas brochuras com seus contos, que ele mandava imprimir e dava aos amigos.

 


Em 1968, convidado a trabalhar no Jornal da Tarde como redator e repórter, deixei Belo Horizonte e fui para São Paulo. Pouco depois, no fim de junho, saiu o resultado do 1º Concurso Nacional de Contos, do Paraná. Muito concorrido, com três contos de cada autor, o concurso teve como ganhador Dalton. Além do ganhador, pelo regulamento mais cinco autores, sem ordem de classificação e com um prêmio de igual valor, foram contemplados. Eu fui um deles. (Um livro seria depois publicado, pela Bloch, com o título de “Os 18 melhores contos dos Brasil”.)


A par dos resultados do concurso, o jornal me liberou para ir a Curitiba receber o meu prêmio e me incumbiu de fazer com Dalton uma reportagem, alertando-me, porém, que, como se sabia, o escritor não gostava de dar entrevistas.


Fui, participei da solenidade de entrega dos prêmios, e depois, em contato com Dalton, falei da reportagem. Ele concordou na hora e sem qualquer restrição. No dia seguinte, com esse objetivo, nos encontramos e conversamos.


Voltei para São Paulo, redigi a reportagem, e no dia 6 de julho ela saiu no jornal, com o título de “A história do contador de histórias”.

 


(A reportagem foi novamente publicada em 2002 pela revista de cultura Radar, de Curitiba, e, agora, neste Pensar.)


Em 1971 publiquei meu primeiro romance, “Os novos”, e pensei em lançá-lo em algumas capitais, entre elas Curitiba. Escrevi ao Dalton, falando de minha intenção. Ele me respondeu com uma cartinha, reproduzida aqui, numa entrevista sobre o livro: “Grande alegria será bebermos umas e outras celebrando o seu romance”, escreveu ele.


O lançamento em Curitiba não aconteceu, mas pouco tempo depois, de passagem pela cidade, me encontrei com Dalton numa livraria, batemos um bom papo e em seguida ele me acompanhou até a rodoviária. Foi o segundo e último encontro pessoal nosso.

 


Em 1979 o repórter Marcos Barrero, da revista Status, foi a Curitiba e, sem revelar a sua identidade, passando-se por um professor de jornalismo, conversou com Dalton em frente a uma banca de jornais. A conversa, juntamente com um perfil do escritor, foi depois publicada na revista, com o título de “Conseguimos caçar o vampiro”.


Na conversa, a certa altura, depois de Dalton dizer que não se julgava um grande contista, o repórter perguntou: “Quem é, então?” A resposta: “Bom, o Machado de Assis. Dos novos tem muitos: Rubem Fonseca, Luiz Vilela, Clarice Lispector. Pelo menos são três excelentes.”


No dia 14 de junho último, Dalton fez 99 anos, o que foi devidamente lembrado e comemorado pela mídia nacional. Ao encerrar estas linhas, aqui deixo para ele o meu abraço — do leitor, colega e amigo.

 

 

Nascido na cidade mineira de Ituiutaba em 1942 e onde reside até hoje, Luiz Vilela é um dos maiores escritores brasileiros surgidos na segunda metade do século 20, autor de livros como “Tremor de terra”, “Os novos”, “A cabeça” e “Você verá”

 

A reportagem de Luiz Vilela com Dalton Trevisan, publicada originalmente no Jornal da Tarde em 1968.

 

O encontro de Vilela e Trevisan em Curitiba: admiração mútua e  revelações sobre as fontes de inspiração do contista paranaense

O encontro de Vilela e Trevisan em Curitiba: admiração mútua e revelações sobre as fontes de inspiração do contista paranaense

edison jansen/reprodução


“O escritor é um monstro moral”

O professor de Português, no ginásio, tinha marcado uma redação para casa. Um dos alunos escreveu sobre uma criança pobre passando fome. O professor disse que o menino era “comunista e neurótico”. Comunista ele já sabia o que era (isso foi no tempo do Estado Novo); neurótico, ele foi em casa olhar no dicionário. Agora, aos 43 anos, ele lembra: "Foi esse o meu primeiro contato com os julgadores literários". Mas os críticos de hoje não pensam como aquele professor: eles acham que Dalton Trevisan é o maior contista brasileiro vivo, e há oito dias lhe deram o maior prêmio do maior concurso nacional de contos.

 

Magro, de cabelos claros e alguns já brancos, óculos de lentes grossas, vestido de maneira simples e meio displicente, ele vai pelas ruas de Curitiba com alguns amigos, falando de sua vida e de sua literatura. De vez em quando a conversa é interrompida por um conhecido, que lhe dá os parabéns; mas isso acontece pouco: para quase todas essas pessoas ele é apenas um cidadão comum, sem nada de especial.

 

Numa praça, sentados num banco de madeira, estão quatro bêbados, sujos e barbudos; Dalton Trevisan aponta para eles e diz, referindo-se a um de seus contos: “Aí o ‘cemitério de elefantes’...”
Ele continua a lembrar coisas de quando começou a escrever. O que aconteceu no ginásio não o desanimou, pelo contrário. “Os elogios são inúteis, uma crítica me estimula quando é negativa.”

 

Quando uma grande editora publicou pela primeira vez seus contos, um crítico importante falou mal deles. “Isso foi ótimo para mim”, diz Dalton. Não é que concordasse com o crítico: mais tarde, já reconhecido por quase toda a crítica como um dos maiores escritores brasileiros contemporâneos, Dalton, ao publicar um novo livro por outra grande editora, pensou em “pôr aquele artigo como orelha do livro”.

 

“Vejam”, continua Dalton, “meu conto ‘Últimos dias’ é sobre a morte de minha avó. Era uma pessoa por quem eu tinha a maior afeição. No entanto isso não aparece no conto, só aparecem coisas negativas. Não sei, talvez fosse inabilidade literária minha.”

 

Um breve silêncio para o uísque. Dalton fica de cabeça baixa, olhando para a mesa coberta com um forro vermelho. O bar está na penumbra. “Mudar a vida”, ele diz: “Quando comecei a escrever, eu pensava nisso: changer la vie, como disse Rimbaud. Mas isso esvanesceu logo.”

 

Rimbaud, aos vinte e poucos anos, parou de escrever e foi ser mercador na África. “Dalton, você já pensou em parar de escrever algum dia?”, um amigo pergunta. "Bom, eu às vezes passo meses inteiros sem escrever nada; mas parar definitivamente, não. Tenho fases: há ocasiões em que escrevo três, quatro contos em poucos dias. Mas, depois, passo muito tempo sem escrever uma linha. Também reescrevo sempre os meus contos. Às vezes me dá medo de morrer: então disparo a escrever.”

 

“Escrever é a única justificativa que encontro para estar vivo. Meus gestos cotidianos são vazios. Mesmo o amor e o sexo; o sexo dura muito pouco tempo. As outras coisas? Eu não tenho o dom de ganhar dinheiro; nem ambição de poder. Escrever é uma atividade inútil, mas, para mim, ainda é a menos inútil de todas e a que me faz continuar vivo. E qual a compensação de escrever? Uma frase boa que a gente cria, uma imagem, coisas assim, que agradam num momento e no dia seguinte já nos deixam insatisfeitos. O escritor troca a sua vida por nada.”

 

A noite de Curitiba está fría mas agradável. Alguém sugere um cafezinho. Dalton sorri: “Eu não. Não quero tirar o gostinho bom do uísque.”

 

Na redação de um jornal, um repórter lhe dá algumas fotos suas. Ele olha uma por uma com atenção: “Puxa, não é que estou bacana aqui? Estou começando a gostar dessa coisa toda...” Mesmo quando está mais sério, Dalton não parece ter 43 anos. Ele não tem nada de um quarentão; lembra um jovem professor universitário, calado, atento, extremamente simpático.

"umas e outras": Reprodução de carta de trevisan para Vilela no início dos anos 1970

"umas e outras": Reprodução de carta de trevisan para Vilela no início dos anos 1970

reprodução

Mas a fama custou a chegar, e foi preciso muita luta. Depois das redações no ginásio – “eu fazia não só as que o professor marcava, mas também as que o livro sugeria no fim da lição, porque eu gostava de escrever” - veio a Faculdade de Direito, onde ele era bom aluno e bom atleta: ganhou várias medalhas nas competições. Ao mesmo tempo, era repórter de polícia: “Foi a primeira vez que eu vi um morto.”

 

Apareceram os seus primeiros livros, “Sonata ao luar” e “Sete anos de pastor”, que não tiveram quase nenhuma repercussão entre os críticos e que ele hoje diz arrepender-se de ter publicado. Ele criou também, com outros, a revista literária Joaquim, que ficou famosa e revelou nomes hoje importantes em nossas artes.

 

Mais tarde, já em 1959, a Editora José Olympio publica “Novelas nada exemplares”. Tiragem: 1.000 exemplares. O livro quase não vende. Os editores fecham as portas a Dalton. Ele perde algumas ilusões, mas não perde a vontade de escrever. Tem a ideia de fazer algo parecido com a literatura de cordel, do Nordeste: são pequenas brochuras, em papel de qualidade inferior, que ele distribui de graça a alguns amigos. “Eram duzentos exemplares; eu me sentia realizado: em poucos dias a edição se esgotava.”

 

Alguns críticos comentavam com entusiasmo os contos do estranho e misterioso escritor que morava em Curitiba e que ninguém conhecia. A curiosidade dos leitores aumentou. Começou a nascer um mito. Os editores se interessaram. O resto da história é conhecido: outros livros (“Morte na praça”, “Cemitério de elefantes”, “O vampiro de Curitiba”), prêmios, antologias, traduções para o estrangeiro. Mas, para muitos, o mito continua: Nelsinho, o vampiro que desliza pela noite fria de Curitiba, à procura de mulheres, não é outro senão o próprio Dalton Trevisan.

 

O vampiro sorri e confessa: “Eu sou casado, muito bem casado.” Ele tem duas filhas e diz: “Gostaria de ver o nome delas na reportagem; se chamam Rosana e Isabel.” As outras pessoas da família: dois irmãos, que, como ele, trabalham na cerâmica do pai. A mãe morreu no ano passado, e depois disso ele ficou seis meses sem escrever.

 

Alguém pergunta se eles leem os seus contos; Dalton responde que sim, mas diz que às vezes preferiria que não lessem. “Eles devem pensar: como que uma pessoa educada com carinho, nos melhores sentimentos, virou esse monstro moral?”

 

É meia-noite num bar, e o garçom acaba de pôr mais uma dose de uísque nos copos. O rosto de Dalton, vermelho, tem um aspecto carregado e trágico: lembra alguns retratos de Giovanni Papini no fim da vida, um Papini mais moço. “É isso o que o escritor é: um monstro moral.” Sua voz, que é interior, dá um ar mais sombrio ainda à frase.

 

“O escritor é uma pessoa que não merece nenhuma confiança. Um amigo chega e me conta as maiores dores; eu escuto com atenção, mas estou é recolhendo material para mais um conto. E eu sei disso na hora. Surge então a má consciência. Sei que estou fazendo assim e não desejaria fazer, mas não há outro jeito. O escritor é um ser maldito.”

 

Diz que é um tímido e que foi essa uma das razões por que se criou a lenda em torno dele. Seus amigos são poucos mas escolhidos. Alguns moram no Rio: Hélio Pellegrino, Otto Lara Rezende, Fernando Sabino, José Carlos Oliveira, Fausto Cunha. De vez em quando ele viaja e se encontra com eles; mas não pensa em mudar-se para o Rio: “Tenho pavor da cidade grande.”

 

Sobre o isolamento em Curitiba: “Não posso me comunicar com escritores que estão ainda na pré-história da literatura.” E conta: “Acho que Curitiba é a capital do Brasil onde menos se vendem os meus livros.”

 

Já é quase de madrugada, e Dalton, depois de conversar sobre literatura, rir, comer, dançar numa boate, prepara um manuscrito para a entrevista. “Qué que eu digo?”, ele pergunta. Pensa um pouco, e escreve: “Meu lugar é entre os últimos dos contistas menores.”