Um romance pioneiro de uma escritora pioneira – que tem um dos desfechos mais tristes e dramáticos da literatura brasileira – acaba de ganhar nova edição quase nove décadas após o seu lançamento. Em 1937, a cearense Rachel de Queiroz (1910-2003) publicou “Caminho de pedras”, época em que estava engajada na política contra os desmandos do governo de Getúlio Vargas que virou a ditadura do chamado Estado Novo exatamente naquele ano.
Foi escrito, inclusive, quando Rachel estava na prisão no Rio de Janeiro, em 1935, acusada de ser “comunista”, embora já estivesse desfiliada do partido por não aceitar censura. O livro, com características modernistas, é o terceiro publicado pela escritora e forma uma trilogia de romances com críticas sociais iniciada com “O quinze” (1930) e “João Miguel” (1932).
Rachel de Queiroz surpreendeu o machismo do mundo literário ao lançar “O quinze” com apenas 19 anos. Tanto que foram levantadas “suspeitas” sobre a autoria da obra, que narra a fuga de uma família de retirantes da grande seca de 1915 no Nordeste. Naquela época, era considerado inadmíssivel um livro desse quilate ter sido escrito por uma mulher. Um exemplo dessa desconfiança partiu do escritor Graciliano Ramos, que se consagraria ainda naquela década com uma obra com o mesmo tema, “Vidas secas”, de 1938.
A dramática história da família de retirantes da miséria da seca, tendo à frente o simplório Fabiano, sua mulher, Sinha Vitória, dois meninos e a simpática cadela Baleia, assim como o “O quinze”, se tornou um dos grandes clássicos da literatura nacional. O autor alagoano só publicaria seu primeiro livro (“Caetés”) em 1933. Depois da suspeita sobre a autoria de “O quinze”, ele teve de se render e reconheceu o talento da jovem Rachel de Queiroz.
“O quinze” precede “Vidas secas” com a sina do vaqueiro Chico Bento, e sua mulher, Cordulina, que fogem com os três filhos do sertão. Grande contadora de histórias, Rachel desenvolve uma linguagem concisa e sensível que tira beleza da dor e da tristeza, capaz de arrancar lágrimas de leitores e leitoras. É o caso da morte por fome do menino Josias, filho do casal e enterrado no caminho da fuga da seca: “Lá se tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados, feita pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de fome, estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria à frente da vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra das mesma cruz.”
Prisioneiro da desgraça
Depois de “O quinze”, Rachel de Queiroz voltou a causar impacto com outro romance social. “João Miguel” tem como protagonista um trabalhador rural que comete um assassinato banal por embriaguez e vai amargar seus dias na cadeia numa cidadezinha do interior. Isolado pela solidão e pelo inconformismo, João Miguel, que nem sequer lembra mais do rosto do homem que matou a facada numa briga sem sentido, repassa sua vida de órfão de pai e mãe e sofre com a traição da mulher com quem mantinha relacionamento, enquanto convive com outros detentos inusitados e visitantes esquisitos. Rachel constrói uma envolvente narrativa de fundo psicológico.
(João Miguel desabafa: “A gente sofre muito mais depois de homem, dona Angélica. Menino não sente nada muito tempo: num instante se entretém! A senhora só pensa em sofrimento de menino, e se esquece que gente grande sofre dobrado. Eu, depois de homem, tenho padecido muito mais. Só o consolo de poder chorar, que todo menino tem”.) Fatalismo, injustiça social, abandono e frustração permeiam a vida de João Miguel nas trevas do seu sofrimento.
Em outro momento de desvario, João Miguel reflete: “Na idade de dez anos saí pelo mundo. Mas o pior desta vida não é a gente viver só não, dona. Em qualquer parte se acha companhia. O pior é a gente saber que não presta para nada no mundo, que só serve para andar se alugando, de patrão em patrão, feito burro de frete. Por isso é que se dá para beber. Pra que querer ser bom, ser cabra de confiança do homem, capaz de todo serviço? Só para patrão carregar mais, puxar mais”. Toda essa desilusão transborda enquanto João Miguel lembra seu crime. Conta o narrador: “Ele marchava, arrastado, inconsciente, sempre com o pensamento no morto, na faca, no seu gesto rápido, movido por um impulso estranho e novo, e aquele rasgão na carne mole, e sangueira roxa, e agora a desgraça sem remédio”.
Política e paixão
“Caminho de pedras”, o terceiro romance de Rachel de Queiroz, agora reeditado, é o único engajado politicamente. Reflete seu intenso ativismo no início da década de 1930. Não tem a densidade dramática, exceto no fim, de “O quinze” e “João Miguel”, mas apresenta características de pioneirismo tão ou mais importantes, como a inserção da mulher na militância política e na expressão dos seus desejos. Noemi, uma das protagonistas, participa ativamente de uma célula do Partido Comunista na resistência ao governo Vargas. Enquanto João Jaques, o marido, se afasta da luta desiludido, ela toma frente. Rachel de Queiroz transfere parte de sua experiência como militante para “Caminho de pedras”, livro em que deixa de lado a vida rural e foca a narrativa em Fortaleza.
Ao dar protagonismo a uma mulher, a escritora cearense expõe o machismo e o patriarcado opressor. Assim como outras personagens femininas de seus livros (“mulheres danadas”, como ela dizia), Rachel mostra que sempre esteve à frente de seu tempo ao antecipar histórias de liberdade que refletem nas mulheres de hoje. Conceição (“O quinze”), Santa (“João Miguel”) Dôra Doralina (“Dôra Doralina”), Maria Moura (“Memorial de Maria Moura”) estão distribuídas em centenas de páginas para confirmar essa realidade.
“Caminho de pedras” segue duas linhas entrelaçadas: a militância política e o triângulo amoroso formado por Noemi, o marido João Jaques e Roberto, que chega à capital cearense para recrutar operários para a militância. Logo, entretanto, ele e Noemi se tornam amantes. Também neste contexto, novamente Rachel é pioneira e expõe o machismo gritante. Noemi não se limita ao papel de mãe, esposa e dona de casa, leva adiante seus desejos, seja na política, seja na vida afetiva, e acaba sofrendo consequências e perdas irreparáveis.
Ela segue adiante, mas a culpa também a atormenta. “Duas vezes em dois dias um homem se aninhava assim em seus braços, buscando o calor e o conforto do colo, depois dos esforços do amor. Ontem o marido, hoje Roberto. Carne fraca e miserável. Ontem um, hoje o outro. De que lhe serviam as resoluções, o desejo desesperado de ser sincera e não enganar nenhum! No fundo, não tinha coragem nem energia, acabou sempre deixando-se levar pelo desejo deles compadecida e atormentada”, pensa Noemi sobre si.
É difícil escolher qual é o melhor dos três livros iniciais de Rachel de Queiroz, que 40 anos depois foi a primeira a mulher a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, em 1977, logo após lançar o romance “Dôra Doralina”, em meio a incontáveis crônicas. E contrastar o seu passado de militância de esquerda com o apoio inicial que deu início à ditadura militar, em 1964. Ela escreveria ainda o derradeiro romance, em 1992, mais uma vez com uma marcante mulher como protagonista: “Memorial de Maria Moura”.
Trecho de 'Caminho de pedras'
Na rodinha da praça é que se ia traçando o trabalho preparatório da organização. Isso entre o grupo “de gravata”, os intelectuais, que tinham lazer e facilidade para aqueles encontros. Os operários, esses nunca apareciam ali. Alegavam falta de tempo, mas a verdade é que só nas reuniões é que se sentiam com alma para discutir e ser revolucionários.
Nas horas de serviço eram apenas animais de trabalho e as curtas folgas mal lhes chegavam para ir do local do trabalho aos bairros longínquos onde moravam, como jantar às pressas, dormir cedo para acordar na madrugada seguinte. Já dessas curtas horas de descanso noturno precisavam tirar o tempo para as reuniões. Que o domingo, em geral, era tomado pelos sindicatos, pelo trabalho geral entre os camaradas “inconscientes”. E eram sempre os primeiros a chegar, calados, severos, misteriosos. Vinham com grandes precauções, não falavam a ninguém desconhecido e aos conhecidos mal batiam com os olhos.
Os outros, os intelectuais, surgiam em bando, eram ruidosos e alegres como estudantes (…) As reuniões agora eram sessões tumultuosas, cheias de choques violentos e de palavras azedas. (…) Naquela noite, a reunião foi particularmente acesa. Eram apenas sete, quatro operários, três intelectuais, Filipe, Roberto e Nascimento. O camarada Vinte-e-Um presidia. Filipe era o secretário. O camarada Luís de Souza começou por censurar amargamente Roberto, encarregado da propaganda, pelo descuido que mostrava na sua tarefa relativa a boletins. “ – O camarada não tem mais o zelo dos primeiros dias. Se diverte com questões particulares, frequentando intelectuais contrarrevolucionários”.
Ante a insinuação, Filipe olhou Roberto, sorrindo. Mas este protestou: “– Creio que não sou obrigado a prestar contas das minhas relações particulares”. O camarada Rufino saltou, com um fogo de luta nos olhos fundos de tísico: “– E por que não? Revolucionário de verdade não tem vida particular. Esse negócio de ser duas pessoas ao mesmo tempo não dá certo, camarada”. “– Mas que pode haver contra mim, se isso não prejudica minha atividade?' O Vinte-e-Um comiserado: “– O prejuízo que dá é o camarada não cumprir mais suas tarefas a tempo.” E Luís de Souza aconselhou: “-– Camaradas, vocês, pequeno-burgueses, vieram espontaneamente ao encontro do operariado e devem se orientar por ele”. Filipe interrompeu irritado: “– Parem com essa história de pequeno-burgueses! Isso é lá para fora. Dentro da organização, todos somos iguais.” Vinte-e-Um atalhou, acerbamente: “– Somos iguais, mas com os intelectuais governando”.
“O quinze”
• Rachel de Queiroz
• 208 páginas
• Editora José Olympio
• R$ 54,90
“João Miguel”
• Rachel de Queiroz
• 160 páginas
• Editora José Olympio
• R$ 54,90
“Caminho de pedras”
• Rachel de Queiroz
• 176 páginas
• Editora José Olympio
• R$ 54,90