Imagem da capa do livro -  (crédito: Reprodução)

Imagem da capa do livro

crédito: Reprodução

Uma peça teatral instigante, não apenas pela força lendária dos protagonistas, mas também pela fluidez e pelo talento literário da autora, que leva o(a) leitor(a) a “devorar” numa sentada as 154 páginas. Rachel de Queiroz (1910-2003) já era escritora consagrada – tinha publicado “O quinze”, “João Miguel”, “Caminhos de pedra”, “As três Marias”, O galo de ouro” e as crônicas reunidas em “A donzela e a moura torta” -– quando estreou na dramaturgia, em 1953, com “Lampião”, drama em cinco quadros.

 

Figura ainda hoje presente no imaginário popular do Nordeste quase nove décadas após a sua morte, o pernambucano Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938) se tornou Lampião e liderou o famoso bando de cangaceiros. Com senso de justiça bem subjetivo, Lampião espalhou crueldade e morte por 16 anos até ser executado e decapitado por militares com a companheira Maria Bonita (1911-1938) e outros nove cangaceiros na fazenda Angicos, em Sergipe. Era cego do olho direito, perfurado por um espinho de cacto, usava óculos de aro fino, trajes típicos de jagunços e vaqueiros da época, tinha postura autoritária e desafiadora.


Rachel de Queiroz se inspirou nos fatos e os adequou à sua fértil imaginação para criar um Lampião ao mesmo tempo valente e egocêntrico, frágil e desconfiado. Conseguiu resumir em apenas cinco atos, de forma bem objetiva, com diálogos curtos, os períodos mais marcantes da vida de Lampião, desde o dia em que ele conhece Maria Bonita e já parte com ela para o sertão, após abandonar o marido e os filhos, passando pelo medo de ser envenenado dentro do seu bando, inclusive de traição da mulher, a religiosidade duvidosa, o desafio ao interventor de Pernambuco para “governar” o sertão com suas próprias “leis” até o dramático desfecho.

 

“A peça” ganhou os palcos no ano seguinte e foi sensação no Brasil daquela época, com destaque para a montagem dirigida por Bibi Ferreira e com o ator Elísio de Albuquerque como o “rei do cangaço”. A nova edição da peça que chega agora ao mercado brasileiro, reproduz o projeto gráfico da primeira, de 1953, pela Livraria José Olympio Editora. Lampião e Maria Bonita são ilustrados na capa por Tomás Santa Rosa. Todas as páginas replicam o estilo antigo da impressão com tipos móveis. Quem ainda não conhece a história de Lampião com certeza vai se interessar após ler a peça que tão bem resume essa parte contundente da história do Brasil.

 

 

Trecho da peça

MARIA BONITA


– Guardei quentinho pra você
[Lampião senta-se em outro pedaço de madeira, posto como assento. Tira do cinto uma colher de prata e baixa o olho míope para a caneca, mexe o café e depois examina a colher, cuidadosamente.]


MARIA BONITA


– Credo em cruz, homem! Até de mim você desconfia?


LAMPIÃO


– Até do meu anjo da guarda.
[Enquanto eles falam, Ponto-Fino acaba de assar o milho, levanta-se e caminha em direção aos jogadores; acocora-se ao pé deles e fica a peruar o jogo (truco), enquanto mordisca a espiga.]

 


MARIA BONITA


– Se eu fosse você, não tinha essa fé tão grande nessa tal colher de prata. Já me disseram que existe veneno que não escurece a prata.


LAMPIÃO (que vai levando a caneca à boca, retira-a vivamente, e com a mão livre segura Maria Bonita pelo pulso.)


-– Quem te disse? Quem anda te ensinando a me dar veneno?


MARIA BONITA (livrando o pulso)


– Se eu quisesse matar você, não carecia ensino de ninguém. Há muito jeito no mundo de acabar com um homem.

 


LAMPIÃO


– Maria, quem te ensinou que existe um veneno novo que não escurece colher de prata?


MARIA BONITA


– Ninguém me ensinou. Faz muito tempo, o finado Antônio Ferreira, me vendo arear sua colher, disse que não é todo veneno que escurece a prata. Há muito veneno que deixa ela branca.


LAMPIÃO


– Coisa fácil é a gente encher a boca de defunto com conversa que ele nunca teve.


MARIA BONITA


– De primeiro, quando você começava com essas coisas, eu tinha raiva. Depois, sentia vontade de chorar. Agora, o que me dá é aquele desânimo! Será possível que depois de tantos anos... tanta luta... tanto sangue derramado.... sangue meu... seu... dos seus irmãos... dos companheiros... você ainda pense em traição? De que me servia a vida, você morto? Não vê que eu sou como outra banda de você... Quer que eu tire a roupa, lhe mostre as marcas de bala, que você esqueceu? Balas que levei correndo na frente delas, com medo que matasse você? Se você um dia cair morto ao meu lado, só o que me resta é ficar na linha de tiro e esperar que eles me chumbeiem também!

 


[Pausa]

– Você já pensou no que os “macacos” haveriam de fazer se apanhassem a mulher de Lampião?


LAMPIÃO


– O que eu sei é que um homem como Lampião é sozinho no mundo. Nem mulher tem. Nem filho, nem irmão, nem parente. Por ele, só mesmo os santos no céu.


MARIA BONITA


– Te benze, homem, te benze. Quem renega os seus morre sozinho.


LAMPIÃO


- Ah, isso é que não morro! Sozinho, não! No dia em que eu morrer, vai haver tanto defunto que até urubu enfara. Isso eu prometo. Porque o meu destino é morrer atirando – e, quando eu atiro, bala não se perde.

 

Capa do livro LAMPIÃO

Capa do livro LAMPIÃO

reprodução

LAMPIÃO
• Rachel de Queiroz
• Livraria José Olympio Editora
• 154 páginas
• R$ 54,90