Ney Anderson
Especial para o EM
No interior do Brasil, mais precisamente na cidade de Jenipapo, dois irmãos trabalham na lavoura de algodão. Os gêmeos Ivanildo, Sandro e os demais membros da família Trindade, junto com tantos outros da região, se submetem aos poderes da família Palmares, usineiros, donos da cooperativa local, que lhe garantem migalhas em troca do trabalho árduo feito por eles dia após dia. Algo que já vem acontecendo há séculos, fazendo daquelas pessoas escravas dos chefões que mandam e desmandam. É essa injustiça que Ivanildo, o caçula, tenta interromper, não mais se submetendo às ordens implícitas que reinam na cidade através daquele monopólio.
O livro é dividido em quatro partes. A primeira é para apresentar a história e ambientar o enredo. Aqui, o sertão se abre, com sonhos e esperanças de realizações. Na segunda parte reina a desesperança e o ódio, quando um dos irmãos (Sandro) é morto por engano, justamente porque o outro gêmeo, simplesmente não aceita a covardia que os poderosos fazem com os agricultores. Relegando pouco retorno financeiro ao trabalho honesto e suado. A morte de Sandro no lugar de Ivanildo faz a história tomar um outro rumo.
A partir desse fato se desencadeia a vingança. A terceira parte é o embate entre o oprimido e o opressor. O futuro ou a apagamento. O tudo ou nada contra o patriarcado. A sobrevivência. A única coisa que resta contra a injustiça. Aí o faroeste assume o caráter principal do enredo. A quarta parte é povoada por escombros, tanto físicos, quantos metafóricos, dos personagens que carregam a solidão nas entranhas.
“Jenipapo Western”, como o nome já diz, é um faroeste dos melhores, bangue-bangue de intensidade impressionante. Mas não apenas isso. É um livro povoado por pequenas solidões. Apesar disso, aquelas pessoas têm a liberdade a partir do pensamento delas, pois não concordam com a miséria que se impõe há muito tempo. No entanto, quem rompe com os desmandos acaba sendo mesmo Ivanildo. Ele é alguém que não acredita em milagres, mas sabe que sobreviver é o grande milagre da sua família e da sua própria vida. É o mistério da salvação. Mas que salvação é essa? Se pergunta em determinado momento.
Ivanildo não se conforma com aquela realidade. Ele sempre foi um estrangeiro do próprio deserto, um exilado. E as situações o modificam para sempre. O lado selvagem que brota desse personagem, assim como as flores que brotam em pleno deserto. Curiosamente, o personagem guarda o sonho em conhecer outros lugares. Mas, diferentemente do personagem principal do romance anterior, “Dilúvio das Almas”, depois de muito tempo fora da terra natal, que decide voltar e acaba inevitavelmente reencontrando pessoas do seu passado. Os dois, no entanto, são personagens em desalinho com o mundo.
Em “Jenipapo Western”, reina a linguagem do povo e os seus cacoetes, sem que esse recurso torne a narrativa amarrada. Muito pelo contrário. É um lugar de muita crueldade, terra de matadores, onde as palavras têm peso de juízo final no sertão, como diz o narrador. Apesar de tanto sangue derramado, tem um tanto de sonho e esperança residente nas figuras do romance. Em “Jenipapo”, essa cidade imaginária onde cabem todas as angústias e solidões, é um pedaço do mundo, microcosmo do país, com personagens profundos que revelam muita coisa, onde o sagrado e o profano caminham lado a lado. É muito bonito e sincero, aliás, como o autor, ex-monge beneditino, insere a religiosidade e a fé dentro da narrativa.
Sobretudo tentando compreender, através daqueles personagens, como é o rosto do mal, o que é o perdão e qual a aparência da justiça. Existe justiça? Existe perdão? Os personagens têm muito medo de morrer e também, contraditoriamente, de viver.
O único padre da localidade, por exemplo, que reza as missas de corpos presentes, parece esquecer o sacramento da misericórdia, quando consegue compreender as misérias do coração daquelas pessoas. Pois, em Jenipapo, até a igreja tem medo. Os moradores das cidades vizinhas afirmam que morar em Jenipapo é melhor do que assistir a um filme de tiroteio. É um livro que fala das raízes que os mantém naquele lugar. E também permeado por muita sexualidade. Existe, aliás, um bar onde tudo converge, onde os personagens circulam. Em “Jenipapo” transitam esses personagens todos, alguns sonhadores.
Outros, inconformados. Uns que querem viver a vida justa, enquanto se dão conta que isso pode nunca acontecer pacificamente. O suor que se mistura com o sangue na busca pela liberdade tão imaginada e ansiada. A morte. A vingança. Sempre ali, espreitando como um bicho do mato. Eles são fugitivos da fome e do caos. O romance do autor comprova que o sertão é algo que não se esgota, principalmente na dura metáfora onde reside a crueza.
É um sertão, sobretudo, não somente brasileiro, mas latino-americano. O sertanejo, por si só, é um homem de fé. Isso fica bastante claro na trama. A fome. A morte. A desesperança. Todos esses elementos de mãos dadas em cima da frágil linha de uma suposta esperança, de um futuro diferente, de salvação, que caminha não sob o rito da paz, mas da vingança a todo custo. Jenipapo é uma cidade forjada em misérias passadas, que surgiu tentando suplantar os mortos de outras épocas.
Tito Leite faz parte da tradição de contar uma boa história, sem querer reinventar nada, apenas dizendo o que tem de ser dito. As frases de abertura dos capítulos são provas disso. Muito bem construídas, quase pequenas rezas, como se para dar suavidade à brutalidade que se segue nas páginas seguintes. Cada capítulo abre com uma sentença metafórica que diz muito sobre a realidade daquele lugar.
Com personagens interessantes, como Rodrigo, que prefere viver na companhia da mata do que dos humanos. Essa atitude tem algo de bestial, primitivo, do fóssil dos antepassados, da natureza bruta, representando em boa medida a aspereza dos demais personagens. Ou então Ana, revoltada pelo rumo que a vida dela tomou na desavença entre os irmãos. A intriga entre os irmãos é algo marcante na obra.
Tanto o livro anterior, o elogiado “Dilúvio das almas”, quanto “Jenipapo Western” são ambientados no sertão nordestino. A referência geográfica existe, o leitor compreende que ambas as histórias se passam no Ceará. No entanto, são cidades fictícias entranhadas dentro do sertão mítico, das profundezas da América do Sul. Embora de tons diferentes (“Dilúvio” é mais calmo e “Jenipapo” mais vertiginoso), os dois romances estão dentro do mesmo universo, na ideia central de pertencimento, de lutas, perdas, de afirmação e aceitação pelo lugar de origem.
“Dilúvio das almas” é centrado na solidão do protagonista e no retorno dele à cidade. Leonardo, personagem principal, volta ao interior do Nordeste depois de ter ficado vários anos vivendo em São Paulo. Os habitantes da pequena cidade (de mesmo nome do título do livro) estão modificados pelo tempo, assim como ele está. O retorno, então, é carregado de surpresas, algumas bastante desagradáveis, principalmente por conta dos familiares deixados para trás na sua jornada pessoal. A terra da sua juventude se torna inóspita, não mais o lar que ele buscava encontrar e que ficou no passado.
Bastante elogiado pela crítica especializada e por diversos leitores, “Dilúvio das almas” foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2023. Enquanto “Jenipapo Western” é um romance composto por muitas vozes e pontos de vista, mas que não deixa de ser direto ao ponto e ter uma beleza diferente, com a poesia brotando da aridez, nas cenas fortes das mortes, para mostrar a banalidade da vida. Ivanildo, inclusive, tem ares de poeta. Um poeta com a alma em estado de guerra.
Um elemento surpresa povoa a história de “Jenipapo Western”, através de um personagem misterioso que sempre paga o velório das pessoas da comunidade. E já no final, o desfecho é impactante e inesperado. O livro, dessa maneira, encerra com um gran finale. É literatura cinematográfica do início ao fim. Só falta aparecer no final o letreiro com a frase “The end” e a tela se fechando com uma trilha de fundo à Sérgio Leone ou Tarantino, referências impossíveis de serem deixadas de lado. Mais apropriado, talvez, seria encerrar o romance com uma canção sertaneja de Luiz Gonzaga.
Ney Anderson é jornalista, escritor e crítico literário. Editor do site Angústia Criadora (www.angustiacriadora.com)
“Jenipapo western”
• De Tito Leite
• Todavia
• 152 páginas
• R$ 69,90