“Aqui, na minha rua e em todas as outras que eu passasse, onde quer que eu pisasse havia uma fome, a que me pertencia. Mesmo depois de eu engolir um prato cheio, da mesa posta com arroz, feijão, macaxeira e carne. A fome que eu carregava por onde andava, meio tonta, o cérebro pra lá e pra cá, plec, plec, plec, porque fome é uma venda ajustada perfeitamente nos olhos a ponto de cegar a gente, e eu caminhava subnutrida, apesar de saudável, de ter carnes sobre meus ossos e cor na minha bochecha. Eu comia de tudo e a fome me mordia de volta. Esse vão aqui dentro, engolindo o que houvesse às voltas com aqueles dentes de trator que me esmagavam e a garganta sebosa que me vomitava. Minha rua foi só começo. Essa fome, na verdade, criou tudo que eu tenho, conduziu minha história, fez existir tudo que eu sei”.
Esse grito faminto de sofreguidão pela vida é de Dora, a menina/adolescente protagonista de “O amor e sua fome”, o segundo romance da escritora cearense Lorena Portela, que está sendo lançado pela editora Todavia. Depois que a mãe a abandona, sai de casa na pequena cidade de Rio do Miradouro e nunca volta, Dora fica aos cuidados do pai, que não deixa faltar nada material em casa, mas a deixa órfã de afeto até se definhar para a morte.
Sem irmãos ou irmãos, Dora se agarra à transgressora prima Esmê (“A mãe dela e meu pai eram meus dois pedaços de família e eles nem se gostavam. Não tinha mais gente vinda de nenhum lado”), que se torna sua amiga inseparável, seu norte para sobreviver e crescer numa vida sem rumo ( “A Esmê era inteirinha, cabia muita coisa nela. O que também a tornava diferente dos outros é que ela virava uma mula raivosa se alguém dissesse que isso era assim assado e não pode ser diferente e pronto e acabou”).
Com uma narrativa linear, sem idas e vindas nem arranjos ou desarranjos linguísticos, Lorena Portela constrói um romance fluído, contundente, ousado e contemporâneo, que vai transformando a menina inocente e abandonada afetivamente numa adolescente perspicaz que descobre as múltiplas possibilidades de crescer pelo prazer num triângulo amoroso, formado também por Jaime, o rapaz “ajeitadinho” que começa a namorar Esmê e é introduzido entre ambas.
Quem manda
O que impressiona no livro com um nome tão sugestivo é o desamparo afetivo de Dora, que no processo de depurar seu abandono para Esmê expõe sua solidão, sua fragilidade, sua angústia e sua tristeza, muitas vezes de forma rancorosa, com sentimentos vingativos e até invejosos, por não ter o aconchego de uma família. Lorena Portela conta que não tinha o abandono afetivo em mente quando começou a escrever “O amor e sua fome”.
Mas acabou se rendendo a uma realidade que envolve escritoras e escritores, em que a personagem principal toma as rédeas da narrativa e a conduz por outros caminhos: “O livro ir se mostrando com o tempo, de ter vida própria… acontece de fato com muitos escritores, aconteceu comigo nesse”, disse ela ao Pensar.
De qualquer forma, o drama de Dora é latente e desolador, como no dia em que vai ao supermercado com Esmê e, num delírio furtivo, enche o carrinho de alimentos para o pai preparar em casa. (“Precisamos de canetinhas e de um caderno novo, porque meu pai disse ontem, quando me ajudava a fazer as tarefas da escola, que eu preciso de canetas e cadernos novos”).
Mas o pai nunca deu essa atenção a ela, é estático dentro de casa. Dora também quer levar hidratante, revistas de novela, roupas para a mãe e até ração (“Ela pediu pra eu não esquecer de levar comida pro nosso cachorro. O Bidu tá crescendo muito rápido e comendo cada vez mais, tá virando uma bola”). Mas a mãe já a abandonou há muito tempo e ela nunca teve um cachorro.
Dora sofre, mas não se enquadra no perfil de uma simples coitada, diz Lorena Portela. “A cena do supermercado é bastante gráfica não apenas sobre o buraco que a Dora carrega, mas também sobre tudo que ela tenta criar, porque a Dora é uma coitada sem ser. Ela tem uma dor terrível, perene, mas é uma sobrevivente, tem muito dente naquela boca. Ela é meio o carcará da música, ‘não vai morrer de fome’”, afirma a escritora. A salvação pode estar no amor e é por aí que Dora segue.
'O rio era o céu'
Seja na cama ou no rio com Esmê e Jaime, Dora vai em busca de uma catarse no prazer e no amor para compensar sua desolação. “O rio era o império, nosso reino. Foi o rio que trouxe o amor enquanto eu olhava Jaime abraçar a Esmê, que retribuía o abraço e beijava o Jaime de um jeito que dava pra ver a língua e ele arrumando o calção toda hora. Coisa linda. A Esmê vinha, ainda molhada, e me abraçava, me puxava para a água, agarrava as pernas na minha cintura. O Jaime beijava a boca da Esmê enquanto as pernas dela ainda estavam em mim.
O Jaime deitava meu corpo em cima das mãos dele, me suspendia e deixava a água me sustentando por baixo. (…) Eu amava a Esmê e o Jaime junto, comigo. Era amor porque era amizade, no mundo inteiro só havia nós três. (…) “Não tinha uma cartilha, descrevendo, um sábio guiando, a gente só entendia, amor é isso aqui. A Esmê, o Jaime, eu. Inventando outro planeta, dando novos nomes às plantas, repovoando as terras vazias, os vazios da gente, esses que todo mundo tem, criando poderes, vencendo as guerras, os carrascos, construindo um atalho pro céu. O rio era o céu, o único que existia”.
O amor dessa tríade, entretanto, tem rumo incerto e Dora, tragada pelas consequências devastadoras do abandono afetivo, está à mercê de um acontecimento surpreendente para ela mesma e para quem chega ao desfecho da leitura de “O amor e sua fome” sem fim. No decorrer do livro pode vir à memória de quem o lê, mesmo num contexto diferente, mas de efeito similar, versos da canção “Comida”, composta no fim dos anos 1980 para a banda Titãs por Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto, que poderia ser também um mantra para Dora:
“Você tem sede de quê? / Você tem fome de quê? / A gente não quer só comida / A gente quer comida, diversão e arte / A gente quer saída para qualquer parte / A gente quer a vida como a vida quer / A gente quer inteiro e não pela metade / A gente não quer só comer / A gente quer comer e quer fazer amor / A gente quer prazer pra aliviar a dor”.
Entrevista
LORENA PORTELA
Escritora
“Nunca, nem por um único dia, cuidou de mim”, desabafa Dora sobre seu pai, que, entretanto, até ficar doente, não deixava faltar nada dentro de casa. Essa realidade é comum em muitas famílias e uma característica que parece fazer jus ao título “O amor e sua fome”, ou seja, cuidar não é apenas se preocupar com bens materiais, mas também dar afeto. O abandono afetivo pode ter consequências devastadoras e permanentes na vida de crianças e adolescentes, como no caso de Dora. O amor de que ela precisa vai além de casa e comida, tem outra fome, de carinho, de colo. Adota Esmê como família e até como “mãe”. Você já tinha essa ideia em mente quando começou a escrever o livro? Ou o livro surgiu de outra ideia?
Não, eu comecei o livro pensando em outro tema, numa relação de mais subserviência entre a Dora e a Esmê, mas no decorrer dos três anos de escrita, o verdadeiro livro foi se impondo. Eu mesma tomei um susto quando percebi o rumo que essa história estava tomando, inclusive evitei, durante alguns encontros de uma oficina de escrita que fiz, falar esse tema em voz alta. Era uma ideia que me assustava um pouco, mas eu precisei respeitar esse espaço que o livro real impôs sobre o inicial.
“Que me devolvam a noite, o espaço / de me sentir tão vasta e pertencida / como se as águas e madeiras de todas as barcaças / se fizessem matéria rediviva, adolescência e mito / que eu te devolva a fome do meu primeiro grito”. São belos versos de Hilda Hilst. A história de Dora me lembrou de “a fome do meu primeiro grito”. A fome de Dora que grita pelo amor da mãe que não a criou e pelo pai indiferente dentro de casa pode estar representada na ilusão do carrinho cheio no supermercado para uma família de fantasia?
Confesso que me emocionei com essa tua citação porque, não sei se tu sabes, mas o título desse livro foi retirado do último verso do “Cantares do sem nome” e de “Partida”, da Hilda Hilst, que é uma autora que muitas vezes eu nem sei se entendo direito, mas que me comove mesmo assim.
Sim, a cena do supermercado é bastante gráfica não apenas sobre o buraco que a Dora carrega, mas também sobre tudo que ela tenta criar, porque a Dora é uma coitada sem ser. Ela tem uma dor terrível, perene, mas é uma sobrevivente, tem muito dente naquela boca. Ela é meio o carcará da música, “não vai morrer de fome”.
Você morou em Lisboa e agora mora em Londres, mas é a realidade do Ceará e do Brasil que se apresenta em “Primeiro eu tive que morrer” e em “O amor e sua fome”, embora tenham temas universais também. Você pretende expandir essas fronteiras em futuras obras ou o Ceará e o Nordeste são fontes inesgotáveis de inspiração?
Eu ainda não sei se consigo expandir essa fronteira, essa é a verdade. Ao mesmo tempo que eu fui alargando o mundo em que vivo, me tornei, paradoxalmente, mais cearense do que nunca. Parece que olhando daqui eu vejo melhor e isso se traduz no que escrevo.
O Nordeste brasileiro é a coisa mais linda que existe, uma fonte de inspiração múltipla, rica, tradicional e também moderníssima. Estamos todos – ou quase – olhando para o Nordeste de um jeito diferente hoje em dia. No futuro, sim, quero testar outros cenários, só não vai ser nos meus próximos dois livros que serão ambientados no Ceará de novo e de novo, mas mais pra frente eu pretendo tentar, vamos ver se consigo.
Rachel de Queiroz, sua conterrânea, foi uma mulher pioneira na literatura brasileira com “O quinze” e a primeira a tomar assento na Academia Brasileira de Letras. Ela a inspirou como escritora? Quais são os autores e as autoras que influenciaram sua obra? E os livros de sua cabeceira?
Não tenho uma dimensão real da influência da Rachel de Queiroz porque isso passa também pelo intangível, sabe? Li “O quinze” na escola e esse talvez foi um dos livros – dentre outros – que me mostrou que a literatura poderia ser simples, não necessariamente excessiva, erudita. Mas não sei em que medida isso desembocou na autora que estou me tornando porque sempre li muito e li de tudo, de revista adolescente a Kafka.
O que me guia um pouco pra próxima pergunta que são os autores/autoras que me influenciam. É difícil fazer essa análise dos que me inspiram, mas lembro bem de quando eu li aquela coleção Para Gostar de Ler, que foi um marco na minha vida. Aquilo tinha um frescor, parecia que escrever era fácil porque ler era fácil e talvez o tanto de vezes que eu li e reli aqueles contos, crônicas, poemas, tenha tido mais poder sobre mim do que eu mesma sei. Recentemente fiquei bastante obcecada pelo autor italiano Domenico Starnone pelo mesmo motivo, pela falsa impressão de que escrever é fácil.
Também tenho um certo fascínio pela Lygia Fagundes Telles, porque ela tem um lado cínico e sombrio que me agrada muito. Porém, hoje, o que mais me inspira são as autoras que estão escrevendo este momento fervoroso da literatura brasileira, latino-americana e do restante do mundo. Nada me dá tanto oxigênio quanto isso.
Hoje é perceptível a presença de mais mulheres escrevendo excelentes obras. A que você atribui esse boom? Menos preconceito contra mulheres? Mais talentos femininos...?
Não sei se o preconceito é tão menor assim, está melhorando, mas ainda considero que há uma resistência bastante dura às histórias que estamos contando. Por outro lado, o que vejo com muita clareza é que estamos levantando umas às outras.
Para mim, foi fundamental que escritoras bastante sérias me dessem a mão, se posicionassem às vezes à minha frente, acendendo um farolzinho ali adiante pra eu seguir, outras vezes do meu lado, me puxando pra perto. Isso tem mudado radicalmente o mercado, fez uma enorme diferença pra mim e imagino que para outras escritoras iniciantes também. É bom ver que somos uma tribo forte e que estamos no tempo da inquietude.
“O AMOR E SUA FOME”
• Lorena Portela
• Editora Todavia
• 136 páginas
• R$ 54,90 (impresso)
• R$ 39,90 (digital)