Tiago de Holanda
Especial para o EM
Excelentíssima pessoa que nos lê, vimos, por meio deste, mui respeitosamente, perguntar por que diabos alguém se deleitaria com relatórios administrativos feitos, há quase cem anos, pelo prefeito de Palmeira dos Índios, município do agreste de Alagoas. Mas vejamos: o redator da papelada oficial foi Graciliano Ramos (1892-1953), que depois se tornou um dos mais importantes criadores da literatura brasileira, afamado por obras como “S. Bernardo” (1934), “Angústia” (1936) e “Vidas secas” (1938).
Os transgressores relatórios, nos quais Graciliano exercitou sua faca verbal, compõem um livro lançado em 2024 pela editora Record, “O prefeito escritor: dois retratos de uma administração”. Apesar de o subtítulo referir-se a “dois retratos”, coligem-se três documentos. O mais antigo, endereçado a um órgão do município, é de março de 1928, cerca de dois meses e meio após o autor tomar posse da prefeitura. Os demais textos, direcionados ao então governador de Alagoas, Álvaro Paes, são dos meses de janeiro de 1929 e 1930.
Na nova edição, a orelha, de autoria anônima, afirma que os dois últimos relatórios são “publicados pela primeira vez em um volume independente”. Talvez haja, aí, uma referência implícita à forma como ambos foram originalmente incluídos em livro: em “Viventes das Alagoas” (1962), juntamente com trabalhos do mesmo escritor anteriormente estampados em veículos de imprensa.
Deve-se lembrar, porém, a antologia “Relatórios” (1994), organizada por Mário Hélio Gomes de Lima. Esta coletânea, também editada pela Record (em parceria com a Fundação de Cultura Cidade do Recife), reuniu os três documentos – foi quando o de 1928 estreou em livro – e outros escritos oficiais, bem mais curtos, do prefeito.
De todo modo, o novo lançamento tem o mérito de chamar a atenção para produções menos divulgadas do autor de “Vidas secas”. O prefácio é assinado pelo atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, para quem o gestor alagoano, ao redigir os relatórios, “incorporava o futuro escritor”.
O que resulta dessa espécie de mediunidade antevidente são documentos “nada burocráticos, quase literários”, acrescenta o prefaciador, insinuando ter havido apenas uma quase “incorporação”. No entanto, Graciliano já era escritor: iniciara em 1925 aquilo que se tornaria seu primeiro livro, o romance “Caetés” (1933), além de ter publicado, em revistas e jornais, crônicas, epigramas e outros gêneros.
Contra a prefeitura cordial
Graciliano trabalhava em “Caetés” e numa loja pertencente à família, quando recebeu o convite para concorrer, em 1927, à chefia da administração municipal. De acordo com a biografia “O velho Graça” (2012), de Dênis de Moraes, a candidatura foi proposta por um grupo dominante na política de Palmeira dos Índios. Esses padrinhos, “como bons coronéis, encarregaram-se de cabalar eleitores”, conta Moraes. Na época, o voto não era secreto.
Entrevistado pelo jornalista Homero Senna em 1948, Graciliano recordou: “Fui eleito, naquele velho sistema das atas falsas, os defuntos votando”. Nos relatórios coligidos em “O prefeito escritor”, não há menção à parceria com “coronéis” ou à votação fraudulenta. Os textos desenham um gestor que busca não transigir com aquele que, no clássico livro “Raízes do Brasil” (de 1936, com nova versão publicada em 1947), Sérgio Buarque de Holanda define como “homem cordial”.
O historiador e sociólogo observa que, no nosso país, tradicionalmente, os ocupantes de funções públicas tendem a usá-las para privilegiar seus próprios interesses e seus vínculos pessoais. Tal maneira de tratar o Estado é uma das expressões da cordialidade, sociabilidade que, avessa a princípios abstratos e formalismos, baseia-se em afeições, preferências íntimas.
Os relatórios de Graciliano configuram uma reiterada luta contra munícipes “cordiais”. No documento de 1928, dirigido ao Conselho Municipal (equivalente à atual Câmara de Vereadores, esclarece Moraes), o relator registra ter poupado determinada quantia monetária: “suprimi despesas e descontentei bons amigos e compadres que me fizeram pedidos”.
Já no texto de 1929, o autor, irônico, afirma que buscou corrigir um esfacelamento, pois no início da gestão havia “inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o comandante do destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular”. O escritor diz que, ao combater essas e outras irregularidades, não favoreceu ninguém e perdeu “vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome”. Sugere que se expôs a perigo: algumas pessoas “me davam três meses para levar um tiro”.
A funesta hipótese contribui para Graciliano fazer-se o herói dos três relatórios, protagonismo reforçado pelo uso frequente da primeira pessoa do singular. A prefeitura chega a unificar-se com o prefeito: “arrecadei mais de dois contos de réis de multas”; os “trabalhos realizados (...) muito me custaram”; “gastei com obras públicas”; “os meus empreendimentos” etc. Os textos de 1929 e 1930 indicam que a equipe do Executivo municipal quase se limita ao chefe, dedicado, inclusive, ao papel de tesoureiro. A equipe exígua e a pouca divisão das funções são alguns dos elementos que deixam perceber uma institucionalidade incipiente.
O tênue mecanismo estatal tende a confundir-se com Graciliano, desbravador que – com a eventual cooperação do Conselho Municipal – está construindo e defendendo uma prefeitura. Em referência ao pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, pode-se dizer que o herói relator, embora pretenda exceder o tradicional círculo familiar-privado, carece de um Estado não “cordial”, este fundado, descreve o ensaísta, em “normas antiparticularistas”, integradas ao cotidiano social. Assim, a administração de Palmeira dos Índios passa por um período ambíguo, uma ousada reordenação que depende da vontade de uma pessoa e, potencialmente, implica que tal dependência seja superada.
Textos sem cerimônia
Graciliano transgride o gênero relatório público e, mais amplamente, afasta-se da linguagem burocrática. Uma das mais notáveis propriedades dos documentos administrativos no Brasil foi e continua a ser a formalidade, como observa a linguista Maria Inez Silveira, autora do artigo “O burocratês: análise à luz de uma gramática retórica” (2008). Os relatórios do prefeito, embora não eliminem inteiramente marcas de formal polidez, exibem um aspecto geral de informalidade, de falta de cerimônia.
Citam até expressões idiomáticas, como numa passagem de 1930 que, alusiva a oposições sofridas pelo gestor, termina com uma imagem ainda hoje comum: “O Município, que esperou dois anos, espera mais um. Mete na Prefeitura um sujeito hábil e vinga-se dizendo de mim cobras e lagartos”. O mandato de prefeito deveria durar três anos, mas acabou após cerca de 27 meses: Graciliano renunciou em abril de 1930.
Ao registrar uma despesa, no documento de 1929, o relator vale-se da polissemia de um verbo: “No cemitério enterrei 189$000”. O funéreo lugar também é assunto no ano seguinte: “Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo.
São os munícipes que não reclamam”. A prosopopeia (os mortos são referidos como se vivos fossem) e várias outras figuras de estilo contribuem para os relatórios se afastarem da “impessoalidade” do burocratês. Este requer, Silveira indica no artigo citado, que “o escrevente se anule ou se apague enquanto sujeito da sua produção textual”, como se fosse emitida a voz da própria instituição ou a geral e neutra voz do serviço público.
Na prática, tal linguagem costuma ser fortemente excludente, muito distante dos modos mais disseminados de usar o idioma. O burocratês, constata Silveira, emprega com frequência expressões difíceis, inclusive termos técnicos e fórmulas antiquadas, pretensamente requintadas – até mesmo, “data venia”, locuções latinas. Às vezes, as palavras inusuais compõem eufemismos, que obscurecem ou atenuam dados desagradáveis.
Os relatórios de Graciliano, além de abrirem mão dessas complicações vocabulares, salientam o olhar peculiar, engajado, crítico, por meio de recorrentes ironias. “Constava a existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo, convenci-me de que o código era uma espécie de lobisomem”, conta um trecho, irônico e metafórico.
Descobre-se, afinal, o tal código, “encardido e dilacerado”: “Um furo. Encontrei no folheto algumas leis, aliás bem redigidas, e muito sebo”. Este e outros excertos mostram que o autor, em sua repulsa ao eufemismo, chega a empregar disfemismos, intensificando características indesejadas: “um furo”, “muito sebo”. Diversas críticas que o prefeito dirige à sua gestão também recusam eufemismos, como esse exemplo: “Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu”.
Impulso para a carreira literária
A autodepreciação, a ausência de eufemismos, os disfemismos, a informalidade, tudo isso pode colaborar para que os relatórios gerem uma impressão de rigorosa transparência: sem rodeios, sem disfarces, o autor exporia atos e pensamentos. Os mesmos elementos textuais podem, por outro lado, evidenciar o caráter de ficção – isto é, de algo construído – dos relatórios, não propostos como meros documentos.
A leitura pode dar relevo ao processo de recriação – à fabricação, termo com que Graciliano, em crônicas e cartas, designa a atividade escritural. Nessa perspectiva, a interpretação que atribui veracidade aos relatórios é problematizada, sem que a ligação entre as obras e os dados tematizados seja redutível à ideia de retrato fiel. É justificável que as afirmações do gestor sejam relativizadas, recebidas com cautelosa suspeição, inclusive porque – como o uso do pronome “eu” sublinha – ele presta conta de suas próprias ações.
Os dois documentos endereçados ao governador, tendo saído no Diário Oficial de Alagoas, foram noticiados em jornais e elogiados dentro e fora da província. Uma narrativa bastante difundida é a de que o então dono da editora Schmidt, Augusto Frederico Schmidt, após ler os relatórios no Rio de Janeiro, pressentiu que Graciliano tivesse um romance inédito – de fato, havia “Caetés” – e decidiu comunicar-se com o prefeito.
Porém, Dênis de Moraes coloca essa história em dúvida: com base em depoimento de Jorge Amado, julga mais plausível que, em meio ao entusiasmo gerado pelos relatórios, Schmidt e outros membros do círculo literário carioca tenham sabido da existência de um romance inédito por meio do escritor José Américo de Almeida. Como quer que essas coisas se hajam dado, Graciliano, a pedido de Schmidt, teve “Caetés” publicado pelo editor em 1933. Nesta e noutras obras, o autor continuou a experimentar novas maneiras de fabricar e observar o mundo.
Tiago de Holanda é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da UFMG, com uma tese sobre a obra de Graciliano Ramos.
Trechos
Relatório de 1928:
Não há listas dos devedores da municipalidade: a cobrança das contas atrasadas é impossível. De resto o contribuinte, que se desempenha bem para com a repartição estadual e a federal, está habituado a pagar à Prefeitura se quer, como quer e quando quer. Isto se explica pelo fato de sermos todos, prefeitos, conselheiros e contribuintes, mais ou menos compadres.
Relatório de 1929:
Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Devo muito a eles. Não sei se a administração do Município é boa ou ruim. Talvez pudesse ser pior.
Relatório de 1930:
Fiz reparos nas propriedades do Município, remendei as ruas e cuidei especialmente de viação. Possuímos uma teia de aranha de veredas muito pitorescas, que se torcem em curvas caprichosas, sobem montes e descem vales de maneira incrível.
“O PREFEITO ESCRITOR:DOIS RETRATOS DE UMA ADMINISTRAÇÃO”
• Graciliano Ramos
• 112 páginas
• Editora Record
• R$ 59,90