Edma de Góis
Especial para o EM
O asfalto risca todo “O céu de Suely”, filme de Karim Aïnouz que conta a história do regresso de Hermila, uma jovem de 21 anos, a Iguatu, no interior do Ceará. De volta de São Paulo, com um filho de colo, ela rapidamente percebe que o namorado, que prometera chegar dias depois, a abandonou.
Sem dinheiro, vivendo com trabalhos precários e com desejo de ir embora, Hermila rifa o que ela mesma chama de “uma noite no paraíso” com o objetivo de comprar uma passagem para o Sul do país.
De uma ponta a outra do longa-metragem, a personagem caminha pela estrada, desloca-se de motocicleta, aguarda a parada dos ônibus que chegam de São Paulo ao terminal rodoviário. A escolha do diretor não é por acaso.
A BR não apenas comunica as regiões do Brasil, mas também é pouco defini-la como cenário. No país em que as rodovias são sua cervical, como pudemos constatar na greve dos caminhoneiros em maio de 2018 que colapsou muitos estados, as estradas percorrem o cinema, a canção e a literatura, compondo assim um imaginário que muda seus contornos conforme muda o km. Sem estrada, fica difícil imaginar o que muitas narrativas pretendem contar.
Se fizermos uma comparação ligeira com os mais conhecidos romances do século 19 ambientados no Nordeste, veremos uma mudança significativa de representação da geografia e das pessoas. Apesar da aridez do clima, sobretudo nos meses de setembro a dezembro, as narrativas do presente não mais se apoiam nas sombras de personagens masculinas e as femininas passam a contar sua própria viagem ou ser protagonistas do enredo, como vemos no filme de Karim, não à toa lançado nos anos 2000.
As perspectivas renovadas nos últimos 20 anos dão conta de alterações que aconteceram na sociedade brasileira e como desdobramento em nosso campo literário. É também sintomática, em especial, o avanço das mulheres, das mulheres negras, indígenas, dissidentes de gênero, em vários setores, ainda que cotidianamente tenhamos certeza de que a vigília pelas conquistas de direitos deve ser ininterrupta.
Dez anos depois de Hermila, outra personagem, Maria, também pega a estrada para contar sua história. “Outros cantos” (2016), da paulista Maria Valéria Rezende, radicada na Paraíba desde os anos 1980, abre com a descrição de uma cena de viagem. “Olho de novo o perfil do homem sentado do outro lado do estreito corredor deste ônibus no qual, hoje, cruzo mais uma vez o sertão, qualquer sertão”. “Outros cantos” recebeu o Prêmio Casa de Las Américas, São Paulo e o terceiro lugar no Jabuti.
O romance conta a travessia de uma educadora que retorna à fictícia Olhos d'Água quatro décadas depois, inspirado nas experiências da própria autora, embora o livro não seja declarado como autoficção. A presença da viagem partindo do sertão ou voltando para ele tenta recuperar um elo desfeito normalmente quando a personagem viaja pela primeira vez. Há ainda os percursos internos, entre casas ou terrenos vizinhos, do gado, das peregrinações religiosas como as dos romeiros devotos de Padre Cícero, no Cariri cearense, ou de uma mototaxista encontrados no volume de contos “Redemoinho em dia quente” (2019), de Jarid Arraes.
Na prosa contemporânea, os deslocamentos são menos associados ao trabalho e mais às questões individuais dos personagens, casos dos romances “Galileia” (2008), de Ronaldo Correia de Brito, e “Nossos ossos” (2013), de Marcelino Freire. Este também acontece em “Salvar o fogo” (2023), de Itamar Vieira Junior, para citar um exemplo mais recente. O novo impulso nas representações do Nordeste, no entanto, sempre esbarra numa certa herança de tradição modernista em que a necessidade de trânsito das personagens é assegurada.
Ou seja, elas até podem retornar aos seus locais de origem por novas razões, mas saem por um motivo comum, como se o Nordeste, o sertão, os expulsasse dali. Por isso, são significativas as histórias que, sem negar os desafios socioeconômicos da região, apresentam outros imaginários do lugar, em que a escassez não é a última flâmula, onde é possível uma vida por escolha e não subjugação.
É nesse ponto que a produção de autoria de mulheres tem dado um salto. Sem fazer vista grossa aos problemas regionais, opta por conciliar essas realidades com outras que costumam ser invisibilizadas ou, quando muito, tratadas como exótico ou pitoresco, caso da exploração da culinária, da música e da dança quando descontextualizadas.
A escolha da escritora Calila das Mercês, baiana de Conceição do Jacuípe, por nomear cada um dos contos de “Planta oração” (2022) com um nome de árvore ou planta da região, convoca o leitor a perceber o Nordeste como um lugar rico em muitos sentidos, dos saberes repassados pela oralidade, de heranças comunitárias e de uma geografia de onde se colhe o que lhe especifica.
Nesses contos, tem-se fartura de alimento, histórias de amor e de revelação, mas há sobretudo nutrição das personagens que se compreendem parte do mesmo ecossistema de onde advém limoeiros, jambeiros, castanheiras e mandacarus. Ao final, um “sumário-floresta” afetivo explica, além de gêneros e espécies, cada planta que nomeia os contos.
Constelações de sentidos
Qualquer tentativa de recuperar na literatura brasileira contemporânea personagens relativas ao Nordeste naturalmente deve citar “As mulheres de Tijucopapo”, de Marilene Felinto, publicado em 1982, mas que segue referência para gerações de escritoras no país. A menção é certíssima, uma vez que a protagonista Rísia é uma das primeiras narradoras em primeira pessoa que, no contrafluxo Sudeste-Nordeste, é a dona absoluta do seu destino. "Vou ter que ver por que minha mãe nasceu lá em Tijucopapo. E, caso haja uma guerra, a culpa é dela", justifica. Lembro que em 1977, uma nordestina que também migrou para São Paulo é, propositadamente, narrada por um homem, Macabéa, de “A hora da estrela”.
No romance de Felinto, temos dois deslocamentos igualmente importantes pela BR, o primeiro de Recife a São Paulo, até então um signo de esperança e desenvolvimento, e depois de São Paulo à revolução onde as mulheres de Tijucopapo são feitas reais. Quando personagens mulheres percorrem estradas, de modo similar ao que vemos nos road movie, o desejo de liberdade – dos padrões sociais e da sua geografia de origem, é evidenciado. Vale menção ainda o fato de “A hora da estrela” normalmente ser lida como exceção na obra de Clarice Lispector, como se o componente humano, já demasiadamente experimentado em seus livros anteriores, chegasse ao limite com Macabéa e Rodrigo S.M, escoando para a própria forma literária, revelada para os leitores enquanto artifício.
Como bem define Durval Muniz de Albuquerque Júnior no trabalho de referência “A invenção do Nordeste” (1999), todo o Brasil é feito a partir de “recortes naturais, políticos ou econômicos apenas, mas, principalmente, construções imagético-discursivas, constelações de sentido”. E o Nordeste não foge a essa afirmação. É certo contudo que na história da literatura brasileira, com exceção de Rachel de Queiroz, as representações da região foram feitas majoritariamente por homens, restringindo as possibilidades imaginativas da região, afinal um lugar tornar-se espaço, como nos ensina Michel de Certeau, a partir da transformação provocadas pelos sujeitos. Se considerarmos a noção de regionalismo (não restrita ao Nordeste, porque podemos falar dele em outras regiões), há ainda a sustentação da tríade modernização, desenvolvimento e urbanização como denominadores comuns a uma série de obras literárias.
Mesmo em livros que, à época, o mote parecia progressista, a um olhar mais apurado, observamos de modo evidente a distância entre o proprietário de terra e o trabalhador, além do lugar do patriarcado e do racismo na punição das mulheres e nas posições sociais das mulheres negras. “Dona Guidinha do Poço”, por exemplo, baseada em uma história real, conta o triângulo amoroso de Guidinha que, herdeira do pai, casa-se com o Major Quinquim e apaixona-se pelo sobrinho do marido. Apesar de protagonizar o livro, Guidinha repete o lugar feminino ocupado por outras personagens subalternizadas pelo machismo.
Além do romance de Manuel de Oliveira Paiva, publicado 60 anos após a sua morte, em 1952, veremos personagens femininas dividindo a cena em “Luiza-Homem”, de Domingos Olímpio, e no modernismo brasileiro, com destaque para Sinhá Vitória em “Vidas secas”, de Graciliano Ramos, e Marta, em “Fogo morto”, de José Lins do Rego.
Todos esses casos estão radicados em experiências que não quiseram ou não souberam elaborar um imaginário em que as mulheres ganhassem contornos positivos, no máximo foram neutralizadas diante da maior relevância de personagens masculinas. Nesse sentindo, a ampliação da “perspectiva social”, termo da cientista política Iris Marion Young, é um dos detonadores da virada nas produções artísticas contemporâneas em geral, potencializando narrativas de sujeitos invisibilizados ou tratados como de segunda classe (mulheres, mulheres negras, indígenas, dissidentes de gênero).
Outros olhares
Outras estratégias são utilizadas na construção de rasuras nas tradicionais representações do Nordeste do país. Imaginem que diante de uma casa localizada entre os biomas da Mata Atlântica e a Caatinga, um roseiral faz-se enfeite e sombra. Bem longe dos imaginários em que, no Nordeste, a todo lado, o que há é falta de água, terra esturricada, comida de sobrevivência, e pássaros que sobrevoam atrás da carcaça de alguma espécie morta. O roseiral de “Mata doce” (2023), de Luciany Aparecida, rejeita as representações engessadas sobre a região e que deslizam para os próprios indivíduos.
Além de um lugar que exala beleza, traz personagens dispostas a causar um curto-circuito na cartilha de gênero que pauta as dinâmicas sociais e grande parte do romance brasileiro. A composição familiar conduzida por um casal de mulheres negras, a alusão a um quilombo formado por mulheres e os espaços de destaque dado a essas personagens dão azo para representações que naturalizam muitos dos avanços já observados no tecido social. Em “Boi Neon” (2015), de Gabriel Mascaro, o vaqueiro de curral Iremar sonha ser estilista de moda, enquanto o caminhão que desloca gado é conduzido por sua colega Galega.
Se no filme, a subversão do sertão patriarcal é protagonizada por um homem, em “Mata doce” é anunciada por sua narradora, Maria Teresa, depois Filinha Mata-Boi, que intercala o tempo de narração de modo similar ao que se passa em “Outros cantos”, ora a personagem jovem falando, ora a mulher idosa que passa a vida em revista.
Aliás, a aposta em uma narradora idosa é um dos grandes trunfos do romance, visto que as personagens mulheres com mais de 70 anos são também raridade. Há ainda personagens masculinos como Mané da Gaita, Thadeu e Venâncio, com os quais adentramos um território imagético em que a força sede lugar ao acolhimento das próprias fragilidades e o individual sem propósito perde espaço para as lutas do coletivo.
O manejo do tempo narrativo também é bem executado pela baiana Karina Buhr, que se mudou aos sete anos para o Recife. Cantora e autora também do livro de poemas “Desperdiçando rima”, em seu romance de estreia “Mainá” (2022), cuja narradora é uma criança com espírito de velho e como definiu Andréa Del Fuego “ao mesmo tempo antiga e futurista”. “Mainá” também traz uma nova mirada sobre o Nordeste, sem abrir mão de tesouros incontestes como a tradição oral e os cordéis. Como boa contadora de histórias, Buhr consegue reunir também um repertório próprio de quem cresceu na região.
Já Socorro Acioli, bastante conhecida por “A cabeça do santo” (2014), desenvolve seu romance mais novo “Oração para desaparecer” (2023) a partir de um enredo pronto – o soterramento da Igrejinha de Almofala, no interior do Ceará, e a personagem verídica Joana Camelo, que teria lutado ao lado dos Tremembé.
Neste romance, que evoca as relações do Nordeste com o Continente Europeu e com a África, a língua portuguesa é o fio invisível de reencontro da protagonista com sua própria história, uma vez que o romance começa com ela sendo desenterrada num lugar desconhecido e desmemoriada. Mais uma vez a viagem é fator estruturante da narrativa, em torno do qual se encontram personagens, diferentes tempos e espaços.
De tudo, fica a confirmação de que a literatura brasileira contemporânea e a produção de autoras do Nordeste, longe de repetir protocolos do naturalismo e do modernismo (e no caso deste segundo, quando o faz é como elogio aos grandes romances da geração de 1930), seguem a trilha que desemboca no conjunto de temas que ainda são caros para o país e que o estruturaram até aqui: o racismo, as questões agrárias, a violência de gênero. Reimaginar o país a partir do Nordeste é, portanto, reimaginar personagens registrados por outros ângulos ou que, até agora, sequer tinham entrado no retrato oficial.
Edma de Góis é jornalista, doutora em Literatura (UnB) e pós-doutora em Literatura e Cultura e em Estudo de Linguagens (UFBA/UNEB). É coorganizadora de “A literatura na berlinda:ensaios para uma crítica contemporânea” (EdUFBA, 2021).