'Em meio a um mundo desabando (e desabando há muito tempo mais para uns do que para outros), enxergar um horizonte pode significar a própria sobrevivência', diz Fabiana Moraes -  (crédito: Marlon Diego/Divulgação)

'Em meio a um mundo desabando (e desabando há muito tempo mais para uns do que para outros), enxergar um horizonte pode significar a própria sobrevivência', diz Fabiana Moraes

crédito: Marlon Diego/Divulgação

Rosa costumava lavar roupas, que não eram suas nem da família, por horas em um rio repleto de sanguessugas em Sapé, na Paraíba. Era com a perna cheia delas que saía da água. Apavorada, a neta que ouvia o relato foi consumida pela cena. “E a senhora voltava no outro dia para a água? Não tinha medo?”, ela pergunta. “Ter medo de quê, Fabiana? Eu tinha que criar seu pai”. Essa conversa se alojou na mente daquela menina, que, desde então, carrega a força da avó como um amuleto. Um dos textos da jornalista e professora Fabiana Moraes, neta de Rosa, foi nomeado pela expressão, que também batiza seu novo livro, lançado neste ano pela Editora Arquipélago.

 

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Em “Ter medo de quê?: textos sobre luta e lantejoula”, a recifense reage, por meio da escrita, à história única que condiciona percepções no campo do eu e do outro. Os textos foram publicados desde 2018 em veículos como o Intercept Brasil e as revistas Piauí e Gama e compõem uma coletânea embebida pela ambição de traçar, e repetir, novos riscos no horizonte. Em um cenário estremecido e ameaçado pela extrema direita política, a repetição é recalculada pela autora a partir de novos enquadramentos, sacudindo de volta as estruturas de poder para fazer com que narrativas sejam novamente observadas. “É quase como colocar um espelho à frente e rebater com a própria força”, ela diz, em entrevista ao Pensar.

 

O livro apresenta teor crítico, tônica da maioria dos trabalhos de Fabiana, ao enfrentamento de grandes feridas intocadas e verdades não ditas em nome de imparcialidades, isenções ou neutralidades jornalísticas que buscam a eterna objetividade na profissão. “Não se trata de ‘destruir os pilares do jornalismo’, mas sim qualificar radicalmente a objetividade necessária para, assim, fortalecê-la. Entender, por exemplo, o quanto essa objetividade sempre teve cor, raça, gênero e classe é fundamental”, destaca em uma das colunas.

 

A força da curadoria está no desenho da urgência por um jornalismo que não se contenta em amolar facas; onde o manto neutro da profissão, dito isento, não se costura ao lençol curto da democracia, sem cobrir ou abarcar grande parte de subjetividades que marcam populações minorizadas frente a formas de poder, além de quase sempre imobilizadas por imagens entrelaçadas ao seu sofrimento. “Essas populações não são nichadas”, Fabiana ressalta. “Elas se entrecruzam e formam a maioria do povo brasileiro.”

 

As colunas da professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) são firmes na ideia de que precisamos ser salvos de representações que, repetidamente, criam únicas histórias. Dessa maneira, surgem como um fio que une lâminas cintilantes de metal em um bordado, amarrado por resistência e lutas, mas também feito de brilho e lantejoulas. “Em meio a um mundo desabando (e desabando há muito tempo mais para uns do que para outros), enxergar um horizonte pode significar a própria sobrevivência. Há mais: a reiteração das imagens de sofrimento serve muitas vezes não só para imobilizar, mas também para eleger candidatos a heróis. Por isso, falar também de felicidade é uma questão política central.”

 

 

Entrevista com Fabiana Moraes

 

Você posiciona a repetição não como um fenômeno inocente, mas um movimento político, às vezes precário e preconceituoso, mas também algo que, repensado, pode construir novos riscos no horizonte. Qual a importância de tensionar, e repetir, discussões atentas a raça, gênero, classe?

Tenho uma certa tendência de me repetir e me contrapor a alguma coisa, no sentido de questionar ou pelo menos fazer com que seja observada novamente, utilizando a mesma arma que fortalece ela ser presente e poderosa. Quase como colocar um espelho na frente e rebater com a própria força que isso tem. A gente carrega uma noção de humano que se deu pela repetição de imagens. Estou pensando a partir do aparato midiático, mas essa ideia tem uma relação com outras instituições. Ela tem a ver com a Justiça, a medicina, a Igreja. É uma noção que significou tantas vezes ser branco, proprietário e homem. Então, obviamente, a imprensa vai repetir essa imagem, essa ideia de humano. Eu vi, agora há pouco nas redes, que aquela influencer Kat Torres foi condenada a oito anos de cadeia por tráfico de pessoas. É interessante observar isso porque parece uma coisa desconectada com o assunto, mas não quando você olha para o que ela está falando na entrevista com o João Fellet, na BBC, vi ela dizendo: “Minhas clientes achavam que eu era Jesus; as pessoas decidiram acreditar em mim porque eu era bonita”. Ela é branca, loira e magra. Ela guarda vários elementos que transformam a pessoa em “mais humana”. Isso se dá por meio da repetição dessas imagens e do que disseram que constitui essa humanidade. Então, repetir outras imagens, sem que pareça que estão sendo repetidas através de outras roupagens, é muito interessante como estratégia para que essas outras comecem a craquelar, se fissurar.

 

O que motivou a curadoria das colunas?

Faz tempo que eu queria juntar algumas colunas, já olhava para elas e percebia essa repetição de assuntos. A gente não lida com questões simples em uma tacada só, em um único texto. Em 2018, comecei a escrever no site da Piauí, e foi justamente no ano que viria a confirmar a vitória de Bolsonaro, então, as colunas nascem com esse caráter de serem escritas a partir da inauguração do governo de extrema direita. Junto com isso, veio a pandemia. Então, esses dois momentos se atravessam. Sou professora, passo um bom tempo da minha vida dando aulas com alunos do interior de Pernambuco, escutando todo tipo de história, sofrimentos e sobrevivências. Também passo por dores de observar pessoas ao meu redor, e isso tem um impacto nessas escritas, como pensar no papel de uma celebridade, como Anitta ou Carlinhos Maia, presentes nessas colunas, e os papeis que essas pessoas desempenham nesse contexto de alto engajamento nas redes. E também falo de momentos de desilusão, ao mesmo tempo que também pontuo situações de esperança, tentando ultrapassar tudo o que Bolsonaro representou e representa. Por isso, falo da lantejoula (presente no título do livro), pois é interessante observar isso que a gente chama de democracia sendo mantida, apesar de todos os pesares.

 

Você menciona em seu livro que alguns grupos parecem não ser dignos de lugares bons, porque isso pode não viabilizar uma boa matéria, e cita Carolina de Jesus e essa insistência de mantê-la — sempre — no lugar de fome e miséria, dizendo que mostrar populações como infelizes e desesperadas também é uma forma marcar o próprio lugar de herói. Por que é tão importante os jornalistas evitarem esse lugar, marcando somente expressões de vulnerabilidades como noticiáveis?

Não se trata de nós que estamos cobrindo. Não se trata de instrumentalizar populações que já são muito vulneráveis para capitalizar você mesmo. Para fazer com que, na verdade, você apareça como essa pessoa heroica ou benevolente. É necessária uma visibilidade que respeite a multiplicidade de existências que uma pessoa tem. Se você pensa em Carolina, ela era uma multicriadora, pelas músicas que gravava, os livros que escrevia, os vestidos que inventava e, inclusive, os filhos que criava, mas sempre presa a esse lugar “exótico”. Essa era a notícia de Carolina: uma mulher negra e favelada criando. Fiquei muito impressionada quando li “Casa de alvenaria”, que, para mim, é um estudo incrível em que podemos observar como o jornalismo tratou muitas populações. Sobre uma imprensa que sempre foi muito antimulheres, bichas, trans, travestis, pretos, indígenas e pobres. Não acho que isso não esteja mudando, existe muito mais gente observando essas questões. Estou há 20 anos falando sobre isso, me repetindo, para colaborar com esse debate sobre populações geralmente visibilizadas somente por sua dor. Ao mesmo tempo em que temos uma sociedade pouco impactada por isso, como se fosse tudo tão natural. Isso é um desafio não só jornalístico, mas social: para o que estamos olhando?

 

Afinal, ter medo de quê, Fabiana?

Tenho medo que a gente se acovarde. Como no primeiro turno das últimas eleições presidenciais (de 2022). Quando não vencemos, quando o campo democrático não venceu no primeiro turno, fui para a rua no outro dia e vi as pessoas com bandeiras verde amarelas felicíssimas, como se elas tivessem ganhado 6 milhões de votos a mais. E não o contrário. A gente precisa se fortalecer mais em relação a esse campo de extrema direita que está aí porque eles (extrema direita) não estão para brincadeira, dominam muito bem as narrativas. Esse acovardamento me assusta, demonstra o quanto a gente, mesmo quando está ganhando, se comporta como se tivesse perdendo. O jornalismo também faz isso em suas próprias coberturas.

 

'Ter medo de quê?' foi lançado pela Editora Arquipélago

'Ter medo de quê?' foi lançado pela Editora Arquipélago

Reprodução capa

 

“Ter medo de quê?: textos sobre luta e lantejoula”

Editora Arquipélago
224 páginas
R$ 69,90

*Estagiária sob supervisão do subeditor Thiago Prata