'Triângulo das águas' traz três novelas icônicas do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu -  (crédito: Arquivo pessoal)

'Triângulo das águas' traz três novelas icônicas do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu

crédito: Arquivo pessoal

‘‘Triângulo das águas" (1983) é certamente o mais atípico dos livros escritos por Caio Fernando Abreu (1948-1996). O próprio autor gaúcho é quem o definia desta forma. “Simplesmente posso dizer que não o escrevi, fui escrito por ele. Ao contrário de todos os outros, não seguiu nenhum seguro plano prévio. Foi preciso escrevê-lo meio às cegas, correndo todos os riscos”, assinalava ele em um texto sobre a revisão que deu à obra em 1991 e utilizado como apresentação da edição lançada pela Companhia das Letras em 2023. Outra característica que o torna único foi o processo de escrita: o também cineasta e dramaturgo deixou São Paulo (SP), onde residia no início da década de 1980, rumo ao Rio de Janeiro (RJ) para concluí-la. “(O livro) exigia liberdade, solidão, desprendimento”, afirmava. O resultado são três novelas que o tornaram vencedor da categoria “contos/crônicas/novelas”, do 26º Jabuti, quatro décadas atrás.

 

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Virginiano, com ascendente em Libra, Lua em Capricórnio, Sol, Mercúrio e Netuno na casa 12, “uma pessoa organizada, com mania de eficiência”, como descrevia, Caio frisava em entrevistas e deixava transparecer em seus livros o quanto a astrologia tinha papel crucial em sua vida, estendendo essa paixão à construção de seus personagens e suas ficções. Em “Triângulo das águas”, ela não serviu apenas de inspiração, como também foi força-motriz. “Todo o livro, percebi depois aos poucos, estruturava-se sobre a simbologia dos signos da água: a emoção. Peixes em ‘Dodecaedro’, o inconsciente e o caos. Escorpião, em ‘O marinheiro’, a capacidade de redenção plutoniana pela destruição de todas as proteções; Câncer, em ‘Pela noite’, a desesperada busca da afetividade maternal perdida – aquele ‘no colo da manhã’ onde finalmente repousam exaustos os dois tresnoitados protagonistas, Pérsio e Santiago”.

 

Outro ponto não apenas neste livro, mas da obra do gaúcho de forma geral, é que ele se preocupava muito em detalhar os ambientes/cenários de uma história e a narrativa sob o olhar de personagens, como se escrevesse pensando em um filme, ou seja, adotava uma escrita cinematográfica. E não se limitava a inserir temas que perpassavam horrores psicológicos a questões LGBT+. Além de, como declarava, gostar de um “final feliz”, vide o que se via nas películas hollywoodianas.

 

A atriz, diretora, criadora do canal Vra Tatá I Arte e Cultura e do podcast Segredo de Liquidificador, Tarcila Tanhã, conta que mergulhou “em águas profundas com a leitura” da obra e que o sentimento que Caio descreve foi sentido por ela, enquanto leitora. “É um livro que diz muito sobre um destempero em relação ao mundo, um estado de solidão e desesperança. Lembrei um pouco daquele fragmento de Ana Cristina César (1952-1983): ‘É sempre mais difícil ancorar um navio no espaço’. Mas quando você chega à última frase de ‘Pela noite’, em que os dois personagens dizem ao mesmo tempo ‘quero ficar com você’ e depois ‘provaram um do outro no colo da manhã e viram que isso era bom’, esse falar junto tem tanto significado sobre o coletivo, o fazer junto, uma nesga de esperança. É isso que fica para mim. Acreditar que mesmo um navio desgovernado pode alcançar uma ilha”, ressalta.

 

O ator, diretor e professor de teatro na Universidade Federal de Uberlândia Daniel Furtado Simões, por sua vez, enfatiza que “Caio nunca recusou a emoção”. “Seus textos foram sempre permeados desse excesso, de uma entrega ao amor e ao sofrimento, ao imaginário e à loucura. Ele escrevia fundamentalmente a partir de suas próprias experiências, e se percebia como um cronista de seu tempo. Tendo criado a maioria de suas obras nos anos 70 e 80, elas refletem os temas, os problemas e as questões existenciais que ocorreram nessa época”, salienta.

 

“Questionador, não-conformado, se recusando a ser colocado em ‘caixinhas’ (nos anos 80 quiseram colocar Caio na prateleira da ‘literatura gay’, e ele sentia horror ao que dizia ser “reproduzir a ideia de gueto na cultura”; achava tudo isso “uma bobagem”), Caio Fernando Abreu primava pela emoção que imprimia a seus textos. Isso fazia parte dele e de sua literatura, a entrega e a intensidade, na vida e nos textos. Aceitava todas as experiências e as expressava em seus contos. Biógrafo da emoção e fotógrafo de seu tempo, Caio permanece como um dos maiores contistas brasileiros do século XX”, complementa o autor do livro “Do texto à cena: transcriações da obra de Caio Fernando Abreu

 

Portador do vírus HIV – descobriu em 1994 – e morto em 25 de fevereiro de 1996, com falência múltipla de órgãos, Caio deixou para a posteridade livros como “Morangos mofados” (1982), “Os dragões não conhecem o paraíso” (1988) e “Ovelhas negras” (1995) – estes dois últimos também vencedores do Jabuti. O Estado de Minas revisita as três novelas de “Triângulo das águas”, que, quatro décadas depois, segue cativando e emocionando leitores e pode servir de porta de entrada para aqueles que ainda desconhecem o trabalho do autor. “Gostaria que o livro fosse lido e sentido como murmúrio do rio, um suspiro do lago ou um gemido do mar”, afirmava.

 

Caio Fernando Abreu (1948-1996)

Caio Fernando Abreu (1948-1996)

Arquivo pessoal


'Dodecaedro'

Primeira das três novelas (ou noturnos), “Dodecaedro” começou a nascer em um Carnaval, no sítio de Ana Maria Braga e Ninho Moraes, perto de Itu (SP). Na história, 12 amigos convivem em uma casa, mas se deparam com uma situação inusitada quando ficam sabendo que alguém soltou “os cachorros loucos”, de modo que não podem deixar o local. Cada um então narra sua experiência do que estava fazendo naquele momento ou minutos antes da notícia, nos quais os fatos se conectam. No entanto, os tais “cachorros loucos” podem representar algo diferente de seu sentido literal. Ao longo da narrativa, em meio a dramas, desejos e anseios dos personagens, fica evidente a forte conexão de cada um deles com um signo do zodíaco.

 

“Há 12 xícaras, também dispostas como os signos. Há também um chamado para um evento que poderia ser ligado a rituais xamânicos quando temos um personagem mexendo com ervas. Há um espaço para o inesperado que é permanente na narrativa desse conto, que tem a ver com o imponderável, a magia da vida, do universo”, ressalta Tarcila Tanhã. “Acredito que a primeira influência de Caio para ele ir de encontro ao misticismo foi sua convivência com a poeta Hilda Hilst (1930-2004). Ele tinha por volta de 20 anos, quando foi morar na Casa do Sol porque acabou virando alvo da ditadura militar, e lá estaria protegido. Com Hilda teve contato com a astrologia e o sagrado. Também se interessava por I ching, tarô, búzios, orixás. Em seus textos, utiliza elementos simbólicos, mitológicos e principalmente astrológicos, ora como simples referência, ora como vetor na construção ficcional, de forma deliberada.”

 

A Casa do Sol, em Campinas (SP), se tornou moradia de Hilda, assim como espaço de encontro de artistas, jornalistas e pesquisadores. Dentre as personalidades que se estabeleceram ou transitaram pelo local estão as escritoras Lygia Fagundes Telles (1918-2022) e Olga Savary (1933-2020), além de Caio Fernando Abreu.


'O marinheiro'

A segunda novela do livro traz uma verve mais intimista e onírica, como o próprio Caio descrevia. De quebra, homenageia o português Fernando Pessoa (1888-1935). “Ressuscitei o marinheiro de seu poema dramático homônimo e me atrevi a concentrar suas três veladoras na figura de meu narrador”, dizia o gaúcho.

 

“’Dodecaedro’ e ‘O marinheiro’ se baseiam em uma linguagem cifrada e carregada de simbolismo, uma ‘linguagem do mistério’, que não está baseada em ‘estruturas racionais’ e abre caminho ‘para novas leituras do real’, como afirmou o próprio Caio”, pontua Daniel Furtado Simões. “Em ‘O Marinheiro’, temos uma personagem que se encerra em sua casa, afastando-se do convívio com outras pessoas. Carregada de símbolos, a narrativa é transformada pela chegada de um visitante, um marinheiro. São narrativas densas, que envolvem e apaixonam o leitor, mergulhando-o em nuances e possíveis significados, e mantendo-o ansioso pelo desenlace”, analisa.


'Pela noite'

“A que mais me perturba”, dizia Caio sobre “Pela noite”. “Essa trama tênue pela noite gay de São Paulo acabou dominada pelo personagem Pérsio. Descontrolado, ele fala e fala sem parar coisas com as quais nem sempre eu ou seu paciente interlocutor, Santiago, concordamos. Santiago conseguia revidar. Mas como autor – na verdade mais um ‘cavalo’, no sentido da incorporação do candomblé –, fui obrigado a neutralizar-me para deixa-lo ser. Pérsio, um excessivo, frequentemente abusa. Entrar em contato com ele me deixou exausto”, continuava. A trama gira em torno de dois personagens que combinam um encontro no apartamento de um deles, saem para curtir a noite e narram e debatem dramas pessoais, incluindo a solidão, até os nervos à flor da pele. O final: feliz e hollywoodiano, como apetecia seu autor

 

'Triângulo das águas', de Caio Fernando Abreu

'Triângulo das águas', de Caio Fernando Abreu

Reprodução capa

  


“Triângulo das águas”
Editora Companhia das Letras
222 páginas
R$ 68


 

Outras obras de Caio Fernando

Tarcila Tanhã e Daniel Furtado Simões apontam, cada um, outros três livros (um deles em comum) para quem quer conhecer Caio Fernando Abreu


Tarcila Tanhã

“Morangos mofados” (1982)
Foi o primeiro livro inteiro que li do Caio e é meu preferido. É dividido em duas partes. A primeira, ‘O Mofo’, possui nove histórias em que encontramos traços da Ditadura Militar e a repressão à liberdade e ao direito de opinião, escarafunchando sentimentos rejeitados pela sociedade e reprimidos nos indivíduos. Recomendo com devoção os contos ‘Terça-feira gorda’ e o ‘Dia em que Urano entrou em Escorpião’. Na segunda parte, ‘Morangos’, Caio nos lança ao átimo de esperança para os traumas impostos pelas circunstâncias sociais em oito contos. Não deixe para depois ‘Sargento Garcia’, ‘O dia que Júpiter encontrou Saturno’ e ‘Aqueles dois’.

“Cartas: Caio Fernando Abreu” (2002); antologia organizada por Italo Moriconi
As cartas do Caio são belíssimas, um excelente material biográfico e literário. Nesse livro é possível encontrar centenas de cartas que Caio enviou para Maria Adelaide Amaral, Hilda Hilst, Flora Süssekind, Cida Moreira, Gilberto Gawronski, Jacqueline Cantore, João Silvério Trevisan, Mario Prata, dentre muitos outros.

“Pequenas epifanias” (1996); organizado por Gil França Veloso
A primeira fase das “Pequenas epifanias” foi publicada no jornal O Estado de S. Paulo entre 1986 e 1989. Essas crônicas traduzem muito sobre o momento final da vida de Caio Fernando Abreu. Também considero uma excelente porta de entrada para quem não conhece nada de sua obra.


Daniel Furtado Simões

“Os dragões não conhecem o paraíso” (1988)
É um livro que não pode faltar para um leitor de Caio Fernando Abreu. Lá estão contos maravilhosos como ‘Linda, uma história horrível’, ‘Sem Ana, Blues’, ‘Dama da noite’, ‘Sapatinhos vermelhos’ e ‘Os dragões não conhecem o paraíso’.

“Ovelhas negras” (1995)
Livro dos contos que não couberam em outros livros, os “rejeitados”, guardados no fundo da gaveta, e que contém pérolas como ‘Anotações sobre um amor urbano’, ‘Creme de alface’, ‘Noites de Santa Teresa’ e ‘A maldição dos Saint-Marie’, conto escrito por Caio aos 14 anos, um “melodrama” que ele retomou anos depois para escrever, juntamente com Luiz Arthur Nunes, a peça “A maldição do Vale Negro”.

“Pequenas epifanias”, (1996); organizado por Gil França Veloso
Livro de crônicas publicadas originalmente nos jornais O Estado de São Paulo e Zero Hora. Lançado pouco depois da sua morte, em 1996, as crônicas eram para Caio como fotografias do cotidiano, e ele as escrevia “com a mesmíssima intensidade de um conto”, como afirmou certa vez. São de um lirismo, um humor e uma agudeza ímpares! Exemplares de um gênero no qual o Brasil é mestre, desde Machado de Assis, João do Rio e Lima Barreto, passando por Drummond, Clarice, Nélson Rodrigues, Fernando Sabino, Luís Fernando Veríssimo e por aí vai.